UMA FENDA NO TEMPO

Há quanto tempo sofro os horrores deste lugar horrível? Um dia? Um ano? Um século? Não sei! Perdi a noção do tempo. Perdi a noção de tudo. Ninguém fala comigo. Ninguém me diz nada.

- Dois anos!

- O quê? Quem falou? Por favor, responda! Que lugar é este? É o inferno? Quem me trouxe para cá? Estou aqui há dois anos?

Nada! Nenhuma palavra como resposta. Mas há ruídos, vozes estranhas, murmúrios, sons enlouquecedores.

Devo estar morto, penso corroído pelo desespero. Menos pelo fato da morte como tal, mais pelo destino insano que me foI reservado.

Seres maltrapilhos, rastejantes, se lamentam, gemem, choram, imploram, praguejam. São meus companheiros de infortúnio. Odores fétidos, pestilentos, entram-me pelas narinas como fogo e viram-me o estômago pelo avesso. Vomito.

Procuro o céu para implorar, mas não há céu. Nuvens escuras limitam a visão. Nada vejo para além delas. O solo é úmido e escorregadio. Caio. Levanto-me, torno a cair e sou pisoteado, chutado. Sento-me e choro, como jamais chorei um dia.

E já estou aqui há dois anos! Mas não sinto o tempo passar. Não há tempo. Nem noite, nem dia. Sei, todavia, quem sou, ainda me resta um fio de consciência... e lembranças... lembro-me da esposa, uma mulher linda, que me ama (ou amava?); filhos, amigos, uma casa, trabalho.

Agora estou aqui, não sei até quando. Quem sabe para todo o sempre, como um dia me ensinaram.

-Três anos!

- Quem falou? Responda! Responda, satanás! Grito, movido mais pelo desespero que pela coragem que tento fingir.

Nada! Ninguém me reponde. Alguém, no entanto, está se importando comigo, tanto que registra meu tempo e, de ano em ano, anuncia-o com voz tonitruante e cavernosa, para mais me torturar.

O tormento continua interminável e cruel, e eu já nem consigo administrar meus pensamentos. Paulatinamente sinto que perco a faculdade da consciência. O cansaço me empurra para dentro de um arremedo de sono e sonho (ou é apenas um resquício de lembrança?): estava na sala de espera de um aeroporto, aguardando o voo, quando acometido por uma ligeira vertigem, perdi a consciência e despertei nas entranhas deste mundo infernal.

Foi isso que aconteceu.

Agora só me falta o coisa-ruim aparecer, de tridente e tudo, para decretar a sentença.

- Quatro anos!

É ele! Quer me deixar louco, o trevoso. Mas não vou cair na armadilha de perguntar-lhe coisa alguma.

No auge do desespero, rezo. Imploro por misericórdia e o faço a plenos pulmões, tanto que alguém me sacode, a princípio de leve e finalmente aos safanões.

Retorno do mundo sombrio num salto, indeciso e assustado, sem entender nada, com uma plateia enorme me olhando.

Me localizo e constato que dei show.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 09/07/2017
Reeditado em 10/07/2017
Código do texto: T6050151
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.