AMADEUS

A família Pereira sempre viveu modestamente da agricultura, num pequeno sítio de cinco hectares. A vida, para eles, nunca foi fácil, recorda-se Luís Paulo, que não gostava da roça, da qual, só em sonhos via-se livre. Nas asas do sonho, ele se transportava, ia para longe, transfigurava-se, virava gente importante, era ator famoso, dava autógrafo. Esses enlevos, todavia, não passavam de quimeras, de cujas asas erra abruptamente arrancado por um chamado autoritário do severo pai ou de qualquer um dos quatro irmãos. Eles, os irmãos, sim, nasceram para as lidas na lavoura, não ele.

Diferente dos irmãos, Luís Paulo era frágil, meio raquítico, desmilinguido, como o chamavam. Vivia no mundo da lua, não produzia nada. Apenas um leve descuido e lá encontravam desmilinguido, apoiado no cabo da enxada, perdido em pensamentos, viajando...

- Não adianta, mãe - desabafou com dona Lídia – eu não nasci para a roça. Estou no lugar errado, fazendo o que não gosto e que me deixa infeliz. Preciso sair daqui, estudar, fazer o que preciso fazer.

- E o que tu precisas fazer, meu filho?

- Estudar para ser ator. É isso que eu quero, é nisso que penso o dia todo, todos os dias. Por favor, mãe, converse com o pai, para que ele me autorize a ir para a cidade grande, atrás de meus sonhos.

- Tens apenas dezesseis anos, mas parece que tens menos ainda, quase uma criança, não conheces ninguém para fora daqui. A capital é muito longe. Quem te ajudará?

- Sou inteligente, sei o que procuro, nada me impedirá. Um dia, a senhora ainda há de se orgulhar de mim. Todos aqui haverão de se orgulhar de mim. Vou me dar bem. Por favor!

- Prometo que quando completares dezoito anos, falarei com teu pai, porque, então, serás maior de idade, aí será mais fácil.

- Não, mãe! Daqui a cinco meses completarei dezessete anos e irei embora, com ou sem consentimento.

E assim aconteceu.

Só deram por sua falta na manhã seguinte, quando o chamaram. Os outros sempre se acordavam muito cedo, antes de clarear o dia. Na roça é assim. Não para ele. Se não o chamassem, ficaria na cama sabe-se lá até que horas.

A mãe tinha certeza do que acontecera e relatou para a família a conversa que tivera com o filho do meio, alguns dias atrás. Discutiram sobre o ocorrido e chegaram à conclusão de que deveriam deixá-lo seguir seu destino. Um dia, talvez não muito distante, seu Sebastião iria até a capital à procura do filho desnaturado.

Luís Paulo, havia alguns meses, vinha guardando um dinheirinho, pouco, é verdade, porque ganhava menos que os irmãos, já que trabalhava também menos. Era o certo. Por ocasião do aniversário, julgou que já dispunha do suficiente para a viagem e não perdeu tempo. Pôs o que tinha numa mochila e meteu o pé na estrada. Andou durante umas duas horas e pegou uma carona, até a cidade mais próxima. O restante da viagem fez de ônibus.

Chegou à capital no dia seguinte. Eram dezessete horas, fez um lanche e pediu informações sobre curso para ator. Ninguém sabia de nada. Ele não desistiu, nem pensou nessa possibilidade. Tinha certeza de que, em algum lugar daquela cidade haveria um curso para formar atores e ele descobriria. Ali estava seu futuro, tinha certeza.

Na busca do caminho para a realização de seu mais caro sonho, ele perambulou pelas ruas, incansável, perguntando para um e outro, até que alguém lhe informou sobre uma faculdade de artes dramáticas. Se tivesse ensino médio completo, já poderia candidatar-se ao concorridíssimo exame vestibular.

Essa fora uma notícia bem triste, que o desanimara. E agora? Não completara nem o fundamental! Quantos anos isso demoraria? Voltar para casa, derrotado, estava fora de cogitação. Viera para a capital para ser ator e seria, custasse o que custar.

Assim, perdido nesse mar de pensamentos confusos, passou em frente a um teatro. Como as portas estivessem abertas, entrou. Havia uma senhora fazendo limpeza, para quem contou sua história e ela o encaminhou ao diretor, que ouviu o rapaz, gostou de sua determinação e prometeu ajudá-lo.

Havia no teatro um pequeno quarto desativado, onde Luís Paulo poderia ficar. Ajudaria Luiza na limpeza, assistiria as peças, colaboraria com o que pudesse e assim iria se familiarizando com a arte, ao mesmo tempo que voltaria aos estudos, para um dia, quem sabe, cursar artes dramáticas.

Esse foi o primeiro passo para o nascimento de um grande ator.

Luiza, a moça da limpeza, tornou-se uma espécie de tutora de Luís Paulo e o ajudou com carinho e desvelo, como a um filho. Matriculou-o em um supletivo e o levou para sua casa, onde ele passou a fazer as refeições. À noite, dormia no quartinho do teatro. Em pouco tempo, estava familiarizado com tudo, como se aquele fosse seu local de origem. Ajudava Luíza, assistia as peças de teatro, conversava com atores e atrizes; queria saber de tudo, até que começou a ser contemplado com pequenas participações, o que ele fazia exemplarmente. Na escola ia bem e no teatro melhor ainda; estava motivado.

Com o passar do tempo, o grande ator que seria ia se revelando e já participava de papéis significativos em peças importantes. Terminara o ensino médio e ingressara no curso de artes dramáticas, no entanto continuava dormindo no quartinho do teatro e fazendo as refeições em casa de Luiza, a quem considerava como sua própria mãe.

Quando concluiu sua graduação, Luís Paulo já era um ator respeitado, mais que isso: respeitadíssimo. Vivia cada papel como se, dessa representação dependesse sua vida. A partir do momento que era incumbido de uma atuação, seu nome de batismo desaparecia, em favor do personagem. Sua fama crescia... tornou-se o orgulho de sua terra natal, de amigos e familiares. Quando os visitava, o prefeito decretava ponto facultativo, para festejá-lo.

O teatro que o acolhera, ficou pequeno para ele. Precisava de novos horizontes e assinou um contrato com a maior televisão do país, para um papel importante, numa novela. Foi a primeira de muitas, nas quais era sempre destaque. Já era ídolo incontestável. Assumia de forma tão profunda, tão definitiva, os personagens de seu papel, que o fim das novelas não significava, necessariamente, o fim dos mesmos, que insistiam em permanecer incorporados, como uma entidade do além, alguns bastante inconvenientes. Tanto que se viu, numa dessas oportunidades, constrangido a fazer terapia para desalojar um gay de sua personalidade, que teimava em não sair e do qual precisava livrar-se com urgência, porque nova missão o aguardava.

A bordo das novelas, sua fama atravessou fronteiras, até aportar em Hollywood e ele foi convidado para o papel principal em um grande filme.

Outro ator em seu lugar largaria tudo e iria correndo, mas ele não. Ainda mais agora, que estava fazendo laboratório para viver o papel mais importante de sua vida, uma história linda, comovente, parecida com a sua, de um garoto pobre, que saíra de sua terra natal e, sozinho, numa cidade estranha, ultrapassara barreiras incríveis, até se tornar o maior ator do país.

Amadeus era o nome do novo personagem.

À medida que os trabalhos de laboratório avançavam, Luís Paulo morria e Amadeus despontava, poderoso, forte, obstinado, até tomar completamente aquele corpo e utilizá-lo como mero veículo para a glória.

Quando amigos ou familiares tentavam convencer a quem conheciam como Luís Paulo largar tudo e ir para Hollywood, a resposta não deixava dúvidas:

- Luís Paulo morreu, eu Sou Amadeus. Nada me importa, para além do cumprimento de minha missão nesta novela, da qual fiz minha própria vida.

Dava a conversava por encerrada e só voltava a atender quando o chamavam de Amadeus, a quem pertenciam os pensamentos, a visão de mundo, as falas, as roupas, os gestos, a vida, enfim. Porque Luís Paulo estava decididamente morto, pelo menos enquanto durassem as filmagens.

A novela, O meteoro, fazia o maior sucesso. O fim, porém, se avizinhava, já deixando saudades. A última cena, a mais impactante, seria realizada na cidade natal do famoso astro, com o objetivo precípuo de deixar uma marca indelével na vida dos fãs. Amadeus saltaria de paraquedas, de um helicóptero, pisaria suavemente o chão e, assim, delicadamente, sem nenhum motivo aparente, partiria deste mundo, para eternizar-se na história nacional das artes dramáticas.

Dia e hora marcados, uma multidão eufórica esperava o espetáculo. Era tanta gente, como a pacata cidadezinha, que marcara feriado para o evento, jamais vira e jamais voltaria e ver.

Como planejado, aconteceu. Amadeus tocou o solo, olhou para a multidão que o ovacionava e começou a curvar-se lentamente, dobrando os joelhos, até que o paraquedas o cobriu por completo e ali ele ficou, imóvel. Quando retiraram de sobre ele o manto sagrado constataram, consternados, que Amadeus de fato acabar ali. Estava morto.

Luís Paulo morrera bem antes, com o nascimento de Amadeus.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 16/05/2017
Reeditado em 09/01/2024
Código do texto: T6000720
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