Coisas Que Só Acontecem Comigo - XXII. Duque de Caxias

Peço antecipadas desculpas, pois sei

que irei desapontar muita gente.

Estávamos no ano de mil novecentos e não me lembro. Eu estudava o terceiro ano primário, que eu nem sei o que isso representa hoje. A minha Escola “São Francisco de Assis”, que pertencia aos Frades Capuchinhos, era próximo à Igreja de São Benedito, no centro da cidade. Ora, eu morava pra lá donde Judas perdera as esporas, próximo onde hoje é o aeroporto de Teresina. Não tinha linha de ônibus urbanos, nem passes escolares e nenhuma das facilidades de hoje. A merenda escolar era uma gororoba feita com leite em pó e flocos de milho, de gosto desagradável. Meu transporte era mesmo a “mocotocicleta”. Se estudasse pela manhã, teria que madrugar, se estudasse à tarde e era o meu caso, teria que almoçar muito cedo.

Por esse tempo, existiam duas figuras que eram o tormento de todos os meninos da cidade: o inspetor do juizado de menores e o inspetor da Secretaria de Educação. Todos nós conhecíamos o carro do juizado de menores, quando esse passava não ficava um só menino na calçada. Menino que se fizesse arruaceiro sofria mais que bode embarcado. O inspetor de educação costumava dá umas “incertas”. Chegava à escola sem prévio aviso, apresentava-se e arguia os alunos. Era uma espécie de ENEM sem hora marcada, ao vivo e sem direito a gaguejar. Não tinha quem não se borrasse com suas visitas.

Garoto que fosse apanhado gazeando aula, a diretora da escola mandava pelo próprio aluno um bilhete aos pais e estaria automaticamente suspenso, voltando às aulas somente com o comparecimento de um dos tutores à escola. Na sala de aula a professora era autoridade máxima, ninguém desmanchava o que ela fizesse. Bons tempos! As professoras primárias não tinham especialização universitária como hoje. Foram normalistas com curso pedagógico, ainda assim, peço desculpas aos professores de hoje: não dá para comparar. Uma normalista dava aula de todas as matérias com incrível competência. Outra grande figura da Educação de minha época era a palmatória, sua presença nas sabatinas das sextas-feiras era indispensável.

Numa dessas sextas-feiras eu que eu não tinha estudado nadinha de nada, estava indo para a escola na velocidade de um cágado manco. A minha vontade de chegar era nenhuma e para me distrair mais a atenção, no átrio lateral da igreja de São Benedito, um bando de meninos batiam bola, aquilo me era uma tentação. De repente, vejo passar na direção da escola um jeep da Secretaria de Educação e pensei comigo mesmo: agora é que não irei lá de jeito e maneira. O portão da escola que estava apenas a uma quadra de distância, fechava pontualmente às 13 horas e ainda tínhamos uns trinta minutos de folga. Um fato mudou meu pensamento rapidamente, foi que ao lado da igreja parou também outro carro e desta vez, do juizado de menores. Nossa! Não ficou uma viva alma, evaporaram como éter ao calor. Eu estava agora entre o inferno e o purgatório, dei a volta no quarteirão oposto para ganhar tempo. Minha esperança era de encontrar o portão fechado e quando dobrei a esquina, o jeep estava estacionado à porta. O porteiro já pronto para executar seu ofício, quando me viu fazendo corpo mole.

- Anda depressa menino, não vês que já vou fechar o portão?

- E eu com isso? Pode fechar, não vou tirar sua razão, sei que estou atrasado.

- Anda logo rapaz, deixa de lenga-lenga...

- Não! Eu sei que estou errado, não vou lhe prejudicar, não quero que a diretora brigue com o senhor por minha culpa!

Impaciente com minhas chateações, o porteiro pegou-me pela orelha e me jogou de escola adentro, com uma delicadeza! Pronto, eu agora estava no inferno em vida.

Eu sempre tive a mania de tomar assento nas primeiras filas. Naquele dia especificamente, as carteiras do fundo foram rapidamente ocupadas. A notícia que o diabo estava na escola já correra mundo. Nunca as carteiras da frente foram tão minhas. A pessoa mais estudiosa da turma era uma menina loirinha, homônima da professora. Também se assentava na primeira fila. Nossa turma foi a última a ser visitada, o que aumentava cada vez mais a ansiedade. A professora Maria do Carmo Rodrigues ministrava sua aula com a delicadeza de sempre, avisou-nos da presença do Inspetor e que ninguém se apavorasse. Ele não poderia arguir-nos sobre matérias de outros anos. Nisso a fera chegou e nossa porta. Cumprimentou a professora, pediu licença polidamente e entrou. Todos de pé, automaticamente como recrutas na inspeção do coronel, era o costume da época. Ele a professora apertaram-se as mãos, trocaram algumas gentilezas e ela lhe passou o comando da turma.

- Como é seu nome meu rapaz? Perguntou-me e respondi.

Que diabo dera naquele diabo para me ver primeiro? Logo eu que pagaria para não estar ali. A menina mais brilhante da turma estava até mais perto dele que eu. Era simples, de uma elegância discreta, mas que não passava despercebida.

- Você será o representante dessa turma maravilhosa. O senhor sabe o que é um General?

Senti que o mundo todo me cravava os olhos como o florete no touro na arena. Na verdade eu não lhes seria um bom representante. Eu nunca tinha passado por uma experiência daquelas. Ouvi falar apenas e agora eu estava atolado naquele imbróglio até o pescoço. Se já estava nervoso antes, agora mesmo tinha lascado tudo!

Respondi meio tímido: Sei sim, é um soldado que comanda os outros.

- Muito bem, gostei! Quem foi o General Luís Alves de Lima e Silva?

- Foi um assassino de guerra.

Dessa vez ele não gostou. Se o silêncio que reinava na sala era absoluto, passou a ser perturbador. Vi que a professora arregalara um pouco os olhos, como que assustada e o inspetor, ao contrário, franziu os deles como para me ver melhor. O Inspetor virou-se lentamente para a professora, talvez querendo ver se ela me fazia algum sinal e perguntou-me em seguida se eu aprendera aquilo na escola.

- Não. Aprendi em casa com meu pai. Professor Napoleão, um argentino que mora perto de nós, confirmou tudo. Conheço essa história da Guerra do Paraguai de cor e salteado, de trás pra frente e de frente pra trás. O Brasil fez essa guerra mandado pela Inglaterra e junto com Uruguai e Argentina inventaram uma tal Triple Aliança. Duque de Caxias é o principal responsável por uma matança brutal de paraguaios. Aqui a gente sabe apenas aquilo que nos contam. É fácil ser heróis quando três se juntam para bater em um.

- Você não acha que está exagerando?

- Não senhor. Não falei quase nada ainda do que sei.

O inspetor estava vermelho, parecia um pouco perturbado a professora impassível. Ainda me chamou no quadro negro, passou uma regra de três simples, que matei a pau. Ele ainda tinha uma carta pra jogar e me perguntou: O senhor sabe o nome do rio que banha Manaus?

- Sei. É o Rio Negro.

- Não é o Rio Amazonas? Redarguiu.

- Não, não é. O Rio Amazonas corre pelo lado direito, o Rio Negro pela esquerda, margeando a terra, as águas não se misturam, nossa professora já esteve lá e nos contou...

Não sei qual a avaliação do Inspetor, mas seguramente, a partir daquela data passei a ser olhado com admiração e com desconfiança. Se eu já não gostava do Duque de Caxias antes, passei a desgostar ainda mais. Tanto que hoje, sei que quem deveria ser o Patrono do Exército Brasileiro por direito, seria o Mal. Cândido Rondon. Rondon demarcando as fronteiras do Brasil, na iminência de um confronto com os índios dizia: “morrer se necessário, matar nunca”. Entre um pacifista e um beligerante eu ainda fico com o primeiro.

Se tem um dia para esquecer, aquele me foi para ser lembrado sempre.

Um Piauí Armengador de Versos
Enviado por Um Piauí Armengador de Versos em 29/03/2017
Reeditado em 08/11/2019
Código do texto: T5955658
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