NEM TE CONTO ESTE CONTO
Otaviano era um homem introspectivo, solitário e depressivo, que há muito tempo sobrevivia da pouca luz de esperança, que vez outra, teimava adentrar pelas frestas do telhado de sua casa. Antes, porém, já foi altruísta, defensor da coragem e jardineiro de sonhos. Mas os fortes tombos e a as muitas decepções vividas foram lhe quedando ao longo do caminho.
Há dores que fazem sentido! Cansado das muitas traições, dos “disse me disse” envoltos de fuxico e fofocas, das intrigas e falsidades que o cercava diariamente, além de toda a maldade humana, resolveu um dia se isolar feito ermitão em uma caverna escura e úmida que ele mesmo criou para si mesmo. E neste lugar sombrio e tristonho, desde então fez sua morada!
Anos a fios se passaram, mas as chagas psicológicas continuavam cultivando sentimentos escurecidos em sua alma. Infelizmente ontem foi mais um daqueles dias buliçosos em que Otaviano chorou todas as suas mazelas. Foi mais um dia solitário em que foi deitar assombrado com as fatídicas desilusões que o inquietavam. E como de costume, ao som das batidas do velho relógio de parede - que quebravam as entediadas horas da madrugada-, adormeceu profundamente. Logo viu surgir em sua volta os primeiros fragmentos de seus sonhos. Por intermédio deles seu subconsciente o transportou a vários mundos, todos diferentes daquele universo cujo céu angustiante o aterrorizava.
Entre os muitos reinos que visitou, teve um que ficou por mais tempo. Nele vivenciou a contradita de suas nuances depressivas. Lá, viu que os risos, as flores, as alegrias, a fraternidade, o amor, e tantas outras espadas, sempre conseguiam vencer as procelas e as batalhas criadas pela própria ambição do homem, pela vaidade e cegueira do dito pseudo-poder que teima ofuscar a beleza da vida em todo lugar que se respira a humanidade. Lá, alguém bem de longe anunciava as boas vindas a todos que chegavam. Prontamente eram também convidados a conhecer o grande Teatro da Vida, onde o espetáculo da tragédia, encenado na amargura do mal grotesco, finalizava sempre suas apresentações com voluptuosas comédias, e ao final fechavam-se as cortinas oferecendo ao público presente, sementes floridas de esperança e um jarro com terra fértil para que todos voltassem, por intermédio destes, cultivar a confiança e o amor ao próximo perdidas em batalhas de desilusões pretéritas.
Logo, um grito desconexo vindo do horizonte surgiu quebrando o encanto e o silêncio daquela madrugada fria. Repentinamente Otaviano acordou assustado! Não pelo grito, agora emudecido, mas pela vivencia de uma experiência que lhe encheu de vida. Talvez tenha acordado assustado por não está acostumado a tantos risos, romances, jardins e flores de primavera; nem mesmo com as suaves chuvas que costumeiramente saudavam o por do sol brilhante e dourado dos lugares onde visitou em sonho. Talvez o seu ego não tenha conseguido suportar por muito tempo as angustias daquele mundo sorridente onde as arirambas cruzavam o silêncio do céu em festivos gorjeios enquanto o dia se aninhava para dormir seu canto.
Do lado de fora o galo ousou mais uma vez despertar a madrugada com seu cacarejo estridentemente melódico. Logo mais os apitos das fábricas teimaram pintar de cinza a sonoridade colorida das madrugadas frias de desejos, inclusive do desejo que Otaviano tinha de dormir um pouco mais!
Ao levantar-se sentiu que o seu corpo franzino ainda coberto por mil retalhos de sonhos precisava tomar um bom banho de café quente para acordar o dia que se escondia dentro dele.
Ao lado da costumeira rede que soturnamente embalava sua alma e acolhia seu corpo fatigado, percebeu que suas decepções adormecidas nas gavetas do velho baú de guardado pareciam já querer despertar. Mas hoje ele não permitiu! Pelo menos até o final do seu café, não! Hoje o dia parecia ter raiado diferente, como se uma fragrância inebriante de vida tivesse aromatizado sua existência.
Com o velho bule de café fervente, aromatizando o seu ambiente, voltou-se a uma das janelas sem vidraças -Das tantas janelas desvidraçadas que lhe cercavam- para saudar o dia ainda nublado de orvalho perfumado.
Ao primeiro gole do negro chá -néctar dos deuses-, Otaviano ousou inconscientemente brindar o novo dia!
Seus olhos, ainda suados de pretéritas lágrimas, viram surgir na aurora luzida dos girassóis, a sofreguidão enquadrada nos muitos rostos escondidos por detrás das horripilantes máscaras que trafegavam pelas vielas próximas ao centro industrial. Mesmo assim, hoje ele ousou acreditar que o mundo poderia ser melhor.
Mesmo distante pode ouvir uma dezena de murmurinhos que se misturavam aos risos escuros e vazios dos sacrossantos pensamentos que por ali vagavam. Estaria ele ainda sonhando ou a loucura fez de sua consciência, morada? Talvez Otaviano ande mesmo desatinado! Talvez esteja apenas dormindo sua vida mais que devia!
Otaviano voltou-se a si mesmo, e em um daqueles copos de bar ousou tomar mais um gole de café. Parecia está embriagado, pois a cada gole que dava, saltitava de dentro de sua xícara imaginária o cheiro forte daquela vã filosofia sofista que sempre teimou ditar o mundo silencioso que o habitava.
Olhou para o chão e percebeu que os seus velhos e calejados pés descalços já não sustentam mais a dor do corpo estarrecido que o vestia. Voltou a olhar pela ventana da parede, e abaixo dela um menino maltrapilho, que afeito um daqueles reis despostos insistia sentar em seu pequeno trono feito de caixa de verdura.
Sim! Agora ele se lembrou. Era aquele mesmo menino que todos os dias cruzava a rua estreita do beco de sua casa carregando nos ombros toda a inocência do mundo! Era aquele menino que muitas vezes viu espelhado no reflexo de sua própria infância perdida!
Da janela Otaviano gritou por ele, e ao ter sua atenção, perguntei-lhe se aquele jornaleiro da praça ainda vendia frutas frescas vindas lá daquela terrinha mágica conhecida como chão de encantos.
Tirando seu maltrapilho chapéu, e saudando-o com muito respeito, respondeu-lhe ,que seu Antônio, o jornaleiro, já não mais trabalhava lá pelas bandas da praça, e que ouviu falar que ele teria se mudado para outra cidade!
Mas se for do seu agrado, disse o menino, posso ir comprar lá na feirinha a beira do rio e depois subir ai com o senhor para engraxar suas botas e lhe vender algumas palavras vestidas com o sorriso do pão quente que escrevi nesta madrugada!
Imbuído de um sentimento intimo de alegria, Otaviano aceitou a oferta do singelo préstimo ofertado pelo menino. Mas antes lhe deu umas moedas e pediu que fosse ao mercado comprar uma cambada de barco escamado bem fresquinho para o almoço mais do que especial que ele mesmo iria preparar. E que o menino e toda sua inocência de criança seriam seus convidados especiais. Queria Otaviano festejar o júbilo deste novo momento, este dia especial em que soava nele, feito cascata, a vontade de acreditar na vida, nos sonhos e na amizade.
O sol agora parecia aquecer sua alma dormente, e seu corpo havido por mais um gole de café parecia se rejuvenescer pela euforia de sentir pela primeira vez em muitos anos de vida, a vontade de acreditar que vale a pena viver longe do mundo infausto da solidão e das angustias.
Hoje Otaviano acordou em si mesmo! Acordou em um mundo despido das torturas e de todas as mazelas que lhe assombravam! O fato é que Otaviano há tanto tempo já não sentia mais sua vida, há tanto tempo que os dias para ele já não eram tão mágicos. Que o florir do vento não despertava como antes o canto das águas que regavam as pétalas rubras de suas nuvens floridas!
Apesar de todo esse alvoroço que floria seu dia, sabia que o mundo lá fora continua o mesmo. Entretanto, algo mágico acontecia. Até as rosas plantadas nos ninhos de pássaros já não são eram tão opacas como outrora. Agora Otaviano enxergava que elas floresciam mais que cores, elas emanavam vidas.
Ao termino do último gole de café, Otaviano viu a manhã passando sorrateiramente com o interstício dos ponteiros tediosos do relógio da parede. De repente o entediante som das doze badaladas anuncia que o sol estava em zênite.
Logo, o chicote de sua razão estalou. Até agora o menino não retornou. E provavelmente nunca mais retornará. Otaviano percebeu que lá na esquina alguns bêbados gargalhavam zombando dele. Sim! riam de mais uma vítima da ignorância e da maldade humana desmedida!
Otaviano voltou seu olhar ao chão de sua antiga realidade. Sim, o menino se foi e com ele suas ultimas moedas de esperanças.