*O matador de dragões
O matador de dragões
Os lendários castelos europeus, com suas imponentes torres que se transformavam em fortalezas para aprisionar as filhas dos reis medievais, castelos suntuosos, cercados de água por todos os lados, com pontes levadiças, cavaleiros dentro de armaduras de metal reluzente, com seus cavalos adestrados, armados de lanças, arcos e flechas, tudo isso ficou no passado.
Mas nem tudo, infelizmente. Os dragões que protegiam as pontes, soprando fumaça pelas ventas e fogo pela boca, foram, em grande parte, transferidos para Itália. Os mais destemidos fizeram morada em Monte Castello, outros em Castelnuovo, outros em Montese, Belvedere, Torre di Nerone, Gorgolesco, La Torrachia, Dela Croce, Marzzangana.
Dragões enfurecidos, adestrados para matar sem complacência, estavam dispostos a esfrangalhar, não apenas quem os desafiasse, mas qualquer um que se lhe aparecesse pela frente. Qualquer vivente ao alcance de suas garras não sobreviveria para sair contando pabulagens.
Para vencer a fúria desses monstros, da América do Sul apenas o Brasil se dispôs a mandar um exército de Quixotes e, assim mesmo, a contragosto. Eram combatentes despreparados, ainda assim combatentes. Iriam enfrentar o inimigo em seu terreno, com tudo contra, exceto o povo já dominado. Pracinhas armados de espingardas que, de tão obsoletas, foram logo desprezadas. Viajaram sem barracas, sem fardamento adequado ao frio, sem provisões, sem armamento e sem munições, ludibriados, pois apenas o comandante do Regimento sabia o destino.
Desembarcaram em Nápoles, sem apoio de transporte, por isso tiveram que viajar a pé trinta quilômetros, até Agnano. Durante a caminhada, chegaram a ser confundidos com prisioneiros alemães.
Em outras palavras: já chegaram derrotados. Eram soldados que nunca tinham participado de um treinamento de guerra, saíram para pegar os dragões à unha. Somem-se a isso as dificuldades de um idioma desconhecido, de uma terra desconhecida.
Ah, e os dragões? Sim, esses estavam famintos de sangue, tais morcegos hematófagos em jejum. Muito bem aboletados em seus redutos, lambiam os beiços de tanta fome, só esperando as presas se aproximarem.
No dia 16 de setembro de 1944, quando nossos bravos combatentes partiram para
sua primeira batalha no Monte Bastione, nos Apeninos, havia, no meio deles, pelo menos um piauiense matador de dragões. Era meu tio João.
Sua arma mais potente era um violão de dez cordas, que contagiava os companheiros entre um tiro e outro, quando tocava Tico-tico no fubá, Nega do cabelo duro, Amélia... Entre um samba e outro, o fuzil doado pelo governo norte-americano cantou alto, vomitou chumbo, na mais estúpida forma de procurar a paz. Viu a morte de perto não raras vezes e, não raras vezes, teve que recuar, diante da insanidade do dragão.
Eram soldados despreparados em todos os primitivos conhecimentos bélicos. A grande maioria, convocada sobre pressão, se apresentou muito afoita, livremente, sem saber debaixo de quais arapucas estavam se metendo.
Meu tio João, com vinte anos de vida, era o mais novo de três irmãos e foi o único voluntário de nossa família. Gostava de uma serenata, mas diante do perigo, pensando que a Europa era ali na esquina e que Hitler andava dando sopa, prometera a si mesmo que iria lhe arrancar aquele bigodinho ridículo de alicate, fio por fio.
O destemido sangue nordestino, feito à base de cuscuz de milho, beiju de tapioca, carne de bode com piabas do Parnaíba e feijão com pequi não se abateria diante de qualquer petulante rosnador, metido à besta.
De cada dez voluntários, nove foram reprovados nos exames físicos em Teresina. Tio João embarcou de trem para São Luiz do Maranhão e, de lá, de navio para o Rio de Janeiro, prometendo matar aquele fi duma égua (Hitler) e ainda roubar a fia dele e trazer para o Piauí. Cabra macho é assim mesmo!
Mas a guerra não é brincadeira, nem é para os racionais e, menos ainda, para os despreparados. Se hoje o Brasil não tem balas para um dia de luta, em 1944, só tinha a cara e a coragem, talvez só a ousadia. Inúmeros pracinhas nunca tinham sequer visto o mar, só conheciam navios pelas gravuras das revistas, de forma que, quatorze dias de viagem num navio com alto grau de desconforto, dormindo uns sobre os outros, por si só, já era uma guerra.
Dos 100.000 combatentes prometidos pelo governo brasileiro, só viajaram pouco mais de um quarto, 25.445 soldados. Dentre esses, meu tio João, um homem de paz que atirara duas ou três vezes com baladeira (estilingue), tentando matar lagartixa, e errara na pontaria. Foi, enfrentou o dragão cara a cara, acostumado com as altas temperaturas de agosto a outubro no Piauí, não teve o prazer de ver a neve pela primeira vez como divertimento e sim, como adversidade. Teve os pés atolados na neve até os joelhos, num frio de ferir os lábios.
Era-lhe uma situação não somente impensada, como temerária. Ajudou a matar os dragões, tocou viola, cantou, rezou, rezou e como qualquer mortal, chorou...
E agora me dou conta de que ele nem sabe que escrevi isso sobre ele. Acho que, em 1964, e nem me recordo o mês, encontrei em Teresina meu tio João, o matador de dragões. Que alegria demonstrada, quando soube de quem eu era filho!
Morava em São Luiz do Maranhão e eu conhecia suas escaramuças na Itália, contadas por minha mãe. Ele estava em Montese, no dia (28/04/1945) da rendição da 148ª Divisão nazifascista alemão, que contou ainda com a interlocução do Pároco de Novianodi Rossi, Dom Alessandro Cavalii.
Embora tenha ido para matar, evitou que alguns dos inimigos morressem. O dragão morto agora estava.
Recebi o abraço mais emocionante de minha vida e retribui com o carinho de quem nasceu numa paz que ele ajudara a construir e que eu tinha o dever de conservar. No abraço, pude cochichar em seu ouvido:
– O senhor é meu maior herói, meu matador de dragões preferido.
Ele sorriu, ficou sério e sorriu novamente. Sabem o que ele me disse?
– Meu filho, eu fiz apenas o meu dever, por isso acho que ainda lhes devo alguma
coisa.
Além de matador de dragões, era filósofo. Em uma frase, aprendi que quem faz apenas o que é de obrigação, tem por dever fazer bem mais.
Os dragões mataram 450 pracinhas, 13 oficiais da F.E.B, 8 pilotos da F.A.B e se fala entre 5000 a 12000 feridos.
Relembrando meu tio João, que retornou sem arranhões, creio que homenageio todos os nossos heróis, (especialmente os que tombaram), muitos desses não acreditados e, ainda hoje, ridicularizados.
Um repórter carioca costumava dizer que era mais fácil uma cobra fumar, que o Brasil ir à guerra. Daí o distintivo da F.E.B. ser uma cobra verde fumando cachimbo. Pois a cobra fumou e o Brasil venceu.
Contradizendo os infames e injuriosos, a população de Montese, anualmente, se reúne na praça principal da cidade, especialmente as crianças, para cantar em português a Canção do Expedicionário Brasileiro (confiram isso no youtube), agradecida por ter sido libertada do nazifascismo.
Eu sei e orgulhosamente conto, porque são coisas de minha terra.