MAIS VALE A "FÉ" QUE O PAU DA BARCA

MAIS VALE A “FÉ” QUE O PAU DA BARCA

Solano Brum

Muitas vezes contamos uma história com o intento de levar ao leitor algumas belas horas de leitura, porém, outras, nos levam aos píncaros das distrações. Por isso, contarei uma passagem acontecida num domingo, na casa de um amigo.

Estávamos conversando na hora do café, pela manhã; eu, encarregado de fazer as omeletes para os esfomeados da varanda, - um total de oito pessoas, algumas delas, ainda dormindo – os quais, além de esperarem pelas iguarias, esperavam, também, pelos pães que um dos sobrinhos fora comprar. O lugar era perto de Angra dos Reis – Rio de Janeiro, e, justamente nos dias mais quentes do ano, recebe, prazerosamente, enorme massa de visitantes, - Os ônibus chegam cheios durante o dia inteiro e poucos retornam aos seus lugares de origem, no mesmo dia -, o que deixa as casas comerciais, inferiorizadas quanto a mantimentos, pois, seus estoques, são, somente para quem mora naquela localidade e adjacências; daí, além da Pararia ser longe, o horário era próprio para uma bonita fila de espera. - Possivelmente, quero crer, sejam todos os Municípios e seus Distritos, afastados dos grandes Centros, os quais orbitam as orlas marítimas, como o que visito. Todos têm o direito a praia, e o lugarejo, despreparado para tantos visitantes, começa a se afundar na falta da coleta de lixo, na falta de redes bancárias, na falta de tudo, praticamente. - Seria injusto de minha parte, deixar as padarias de fora – Primeiro, entrar na fila para pagar; depois, outra fila para receber o alimento e como sempre, a fila (não obstante ao que dizem) não anda! Lá de fora – a mesa está posicionada numa enorme varanda, onde passamos quase que o dia inteiro – caia chuva, faça sol ou que seja dias frios, lá estamos nós, pois, situa-se afastada do beiral; ali, bebemos a cerveja, comemos nossas iguarias – qualquer que apareça - além do que, é protegida por um toldo, à disposição de quaisquer intempéries – ouvi a voz de meu anfitrião, sorrindo de alguma piada e completando à minha pessoa:

– Não precisa correr com as panquecas; o pão não vai chegar tão cedo!

Calmamente preparei oito omeletes as quais foram cuidadosamente colocadas uma sobre a outra, separadas pelo papel toalha. De repente, minha mulher, vindo do quarto, juntou-se a nós reclamando de muitas dores. Não conseguia expelir a urina sem ser molestada por forte ardência. Tratava-se de uma infecção urinária, a qual, além de deixá-la abatida, tirava-lhe o prazer de tomar cerveja com os demais. Pronto, foi o bastante para eu deixar as omeletes – ainda bem que já estavam prontas - e seguir o anfitrião até aos fundos da casa para colhermos algumas ervas.

- Não se preocupe – dizia ele – vou colher algumas ervas e logo, logo, ela ficará boa!

Quando chegamos na horta, ele ficou olhando para uma moita de mato. Parei junto dele e lhe perguntei – Você se esqueceu qual a erva hás de colher?

- Não. Só estou procurando as folhas mais novas! - Ele sabia de tudo. Tinha lá seus conhecimentos sobre medicina caseira, como a que vi em um livro em sua estante – As plantas Curam...

Mas aquilo não me contentou. Daí, eu comecei a pedir aos donos das ervas sobre a retirada das folhas...

- Olha meu amigo. Não se colhe ervas sem pedir aos seus donos... Os donos das ervas, repliquei. Tudo neste mundo tem um representante. Se você quer curar alguém com ervas, tem que obedecer ao ritual de “licenças.” Você não percebe, mas, estamos sendo observados por seres invisíveis.

Caprichei na conversa. Tentei convencê-lo sobre o “algo errado” de sua pessoa. Eu também não sou muito cego quanto aos rituais, e, como ele começou a rir – sem muito acreditar no que havia ouvido – enquanto colhia as ervas, eu fui pedindo as “licenças.”

Rapidamente ele fez bom apanhado, virou as costas e começou a sair.

Eu, obedecendo ao que aprendi, agradeci a mãe natureza, aos donos das ervas e saí. De repente ele virou-se e seu rosto de ceticismo transformou-se num outro mais ameno, revelando-me já com a mão no portão.

- Você sabe que “você” está com a razão.

- Claro que sim. Mas, porque você riu?

- Eu ri porque o dono dessa horta sou eu... Quem cuida dela, sou eu... daí, eu não vi nenhuma razão de você dizer que ela tem dono!

Argumentar com ele, seria inútil. Calei-me por estar de visitas e ele, por sua vez, tentava curar minha esposa. De repente, não sei se com seriedade ou zombaria, ele pronunciou uma irrelevante pilhéria para a ocasião:

- Vale mais a fé que o pau da barca!

Eu ouvi, porém, não quis espichar a conversa, mesmo porque de nada havia entendido. Trouxemos as folhas e após serem lavadas e maceradas, foram depositadas em um recipiente já com água fervente e abafadas por uns trinta minutos. O pão, chegou sendo aplaudido de pé por todos e, ao ser posto na cestinha de vime, foram sendo devorados um a um, com as omeletes, queijos e uma espécie de pasta de amendoim. Comeu quem quis e quem não quis. Ficamos conversando, relembrando coisas antigas e resolvemos sairmos para apreciar a praia; todavia, meu propósito era passar na Farmácia, comprar o remédio que o médico, dias atrás, havia receitado para ela, pois, a mesma já lhe havia assaltado anteriormente e a crise fora mui forte. Mas, como teria que ser com ele, a ida à farmácia, ficou sabendo e não me deixou gastar o dinheiro.

- Que nada de comprar remédio... Então você não confia na minha porção? Sai da mesa, entrei na horta, procurei a erva, fiz o chã e você não acredita? - Olhou para a rua movimentada e faz cara de desgostado. Bem, aceitei não comprar o remédio.

Voltamos para o almoço e os ponteiros marcavam às quinze horas. Lembro-me de que, o carro, ao estacionar na porta da garagem, a notícia veio sem perguntas.

- Nem precisa remédio. - Pareceu-me que alguém havia escutado o meus pensamentos antes de sair. E gritaram: - O chá é milagroso!

Compreendo a força do chá, porém, o remédio ajuda e muito. É um antibiótico que reduz a infecção. O chá, teria que ser tomado por um longo tempo, e onde eu arranjaria tantas ervas para a continuidade das porções?

Olhei para ele e seu rosto deixou escapar um sorriso malicioso. Será que ele havia colhido qualquer folha e... Mas, calei-me ante a sua afirmação:

- Vale mais a fé que o pau da barca!

- Então me diz, o que é isso?

“- Então...” – Começou ele, sentando-se do lado oposto ao sol, na mesa que agora estava vazia, a espera do almoço -

“Havia um senhor que buscava remédios caseiros em uma ilha. - Porções mágicas - Sempre às terças feiras, e, às sete horas em ponto, impreterivelmente ele saia com uma pequena barca rumando o leme para a tal ilha, onde um indivíduo morava sozinho. Era ali que o morador da ilha conseguia colher as ervas e fazer garrafadas para todos os tipos de doenças do corpo humano. Mas, para quem se dirigia à Ilha, o dia e a hora, era preponderante, pois, lhe trazia sorte. Nunca havia burlado aquele seu habito. Atravessava o pequeno estreito e ao chegar, comprava as garrafadas devidamente rotuladas para os males físicos. Mas, um dia, ao entrar na barca, já faltando alguns minutos para as sete horas, um senhor aproximou-se dele e lhe recomendou uma garrafada.

- É para que?

- Tenho sofrido muito com dores nas costas. Acho que é coluna... Já tomei muitos remédios e a dor não passa. Preciso de uma garrafada, pois, disseram-me ser um santo remédio. Pode me trazer que pago bem!

Como não esperava, como nunca esperara alguém lhe pedir poções do nativo sem antecedência, argumentou: - Olha Senhor, primeiro que, tenho de levar os pedidos anotados, e, para cada pedido, levo uma garrafa de vinho; e segundo, é que já estou atrasado. Saio, impreterivelmente as sete e já são sete e quatro – disse olhando para o relógio de marca “orient”, de visor azul – e completou - tenho que içar a vela e rumar...

Mas o homem, em desespero, não lhe deixou completar a frase:

- É só o que te peço, por favor!

Bem, - disse o contador da história, tentando resumir o acontecido – entre ficar pelejando em não aceitar o pedido, calou-se na condição de “sim” e entrou na barca. Forçando o remo para que ela avançasse, logo depois, viu a vela inflar-se. Certo de que o vento levaria seu barco ao encontro da Ilha, sentou-se no banquinho perto do leme e entre manejá-lo e fumar seu cachimbo, o viu deslisar sobre as águas serenas. E lá ficou o Senhor, na areia, com a esperança de conseguir o remédio e ficar bom das dores das costas, assim que começasse a tomar a garrafada. Cada vez mais o barco ficava miúdo ao longo da sua vista. Que fazer? Ficar esperando ali mesmo até o entardecer? E foi o que fez.

O barqueiro ao chegar na ilha, começou a arrumar as garrafas cuidadosamente para que não se quebrassem. O preparador das garrafadas, antigo conhecedor das ervas medicinais para todos os tipos de doenças, pouco falava. Entregava as garrafas e exigia outras tantas para serem usadas e permutava com os garrafões de vinho barato que exigia do barqueiro. O ancião, de longa barba e corpo acima da cintura em descoberto, músculos rígidos, demorava na conferência das garrafadas. Tinha boa visão e olhando-o bem, não se apresentava tão idoso quanto iziam. Enquanto ele se preocupava em deixar bem acomodados as garrafas, para depois entregá-las ao barqueiro, se distraia vendo os pássaros que comiam migalhas, bem mansos naquele quintal. Mais tarde, quando tudo estava acomodados no barco, não acostumado com pedidos em cima da hora, despediu-se do morador solitário e manipulador de ervas, esquecendo-se do pedido daquele senhor, em cima da hora e entrou na barca, rumando para a praia do litoral. O mar começou a se encrespar. Passava das quatro horas da tarde. Barqueiro de longos anos e pescador renomado, acendeu cachimbo e firmou a mão no leme. E já bem longe da ilha, lembrou-se do prometido ao Senhor que nem conhecia. Falara bem das garrafadas...

- Hum... Que fazer? Pensou ele, já preocupado com o que dizer ao chegar. Daí ao olhar para o lado, viu uma pequena garrafa vazia. Ora, se ele a encher de vinho... Mas, onde encontrar o vinho? E a erva?

O barco já despontava aos olhos dos esperançosos... Eram muitos os que o esperavam na praia. A preocupação ficava ainda maior em dizer ao Senhor que havia se esquecido do pedido. Então, com o canivete na mão direita, antes de picotar o fumo de rolo para encher o cachimbo, começou a tirar algumas lascas de madeira, da proa do barco e colocá-las dentro da garrafa. Um total de sete... Seu número de sorte. As lascas eram vivas e alongadas, posto que, o barco já apresentava sinal de velho, daí, sua proa, queimada do sol, não oferecia resistência. Guardou o canivete, tapou a garrafa e esperou o barco aproximar-se da praia. O alvoroço foi grande, como sempre. Trazia uma preciosidade em remédios que eram vendidos nas biroscas e apreciados por muitos. E tinha as encomendas... Mas, a do Senhor...

Assim que desceu da barca, lá estava ele. Sem muito esforço, começou a distribuir as encomendas e assim que acabou, segurou a garrafa vazia. Aproximando-se dele, estendeu-lhe a garrafa. Ele a segurou e se espantou, pois a mesma não era como as demais. Não tinha o suco avermelhado.

- Mas eu lhe pedi uma garrafada! Retrucou.

- Então. Como fazer uma garrafada em especial para o Senhor, em tão pouco tempo? - Disse-lhe em tom afirmativo, coerente das palavras e com firmeza. - Comentei com o manipulador e ele, sem tempos para o preparo, apiedou-se do que lhe havia dito sobre o Senhor e resolveu mandar-te essa garrafa com essas lascas aí dentro... e que o Senhor, despeje um bom vinho dentro dela. Deve deixar por sete dias curtindo. Depois, - preste bem atenção, Senhor - beber todos os dias às sete horas da manhã, em jejum, por sete dias seguidos e repetir, enchendo a garrafa por sete vezes, a contar da primeira, do mesmo vinho. O Senhor entendeu? Além de ser uma garrafada, conta, também, a conveniência dos números. Sete vezes... Sete vezes, tá bom? Ah! Ia-me esquecendo: Antes de tomar as colheradas, rese um "Pai Nosso" - Faça com fé - Com muita fé, ouviu?

O homem – que ao aceitar a garrafa vazia e ouvir as palavras, já se sentia bem - continuou a balançar a cabeça aceitando os dizeres enquanto que o barqueiro, virando-se para alguns retardatários que o aguardava, passou a atendê-los.

A ação de atender e vender, não deixou o barqueiro acompanhar a retirada do homem com a garrafa vazia. Passados longos meses, já havia se esquecido da “boa ação” feita ao Senhor. Sempre que se lembrava, dava de ombros, pois, fez a sua obrigação.

Um dia, estando o barqueiro de pé, ao lado de um caíque azul, a beira da praia, avistou um senhor de terno azul-marinho, com os sapatos na mão e que de longe, já lhe acenava. Logo veio a lembrança do mesmo Senhor. “- Que fazer?” Não podia sair correndo, pois, do lado direito, o encontro de um largo rio despejando suas águas no mar e as suas costas, o mar propriamente dito e à sua frente, o Senhor... Que fazer, senão encrespar os lábios num simulado sorriso?

- Bom dia, Senhor! Adiantou-se.

- Muito Bom dia! Procurei muito pelo Senhor. Já se passaram quatro meses e só hoje pude vir.

- É. Estive muito ocupado por muitos dias. Mas, porque a procura?

- Para lhe agradecer o empenho! Fiz exatamente o que o Senhor recomendou e fiquei curado. Nunca mais senti dor nenhuma! - Imagina o Senhor – completou - que as garrafadas desse Senhor, são procuradas por muitos da região!

- Não fiz mais que minha obrigação em atendê-lo. Se é somente isso, passar bem, Senhor!

- Obrigado e bom dia!

Ao se ver livre daquela embaraçosa situação, o barqueiro não acreditou no que havia ouvido e pensou: realmente, a “fé, vale mais que o pau da barca.” ou o Pai Nosso que o curou!

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Solano Brum
Enviado por Solano Brum em 10/04/2016
Reeditado em 17/07/2024
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