O RECICLADOR de GALINHAS

6 horas. Céu irradiante pelo lusco fusco da aurora. Lá vai ele, fazendo uma força descomunal para empurrar o carrinho de materiais recicláveis, morro acima. Dividindo espaço com os carros e motocicletas, a carga fétida, enferrujada e asquerosa, está acima dos limites da tela que demarca a altura e as quatro laterais. Por onde caminha, o mal cheiro acompanhava-lhe implacavelmente. Em semelhantes condições de uso, está o seu meio de transporte, que geme a impossibilidade de estar e ser conduzido por melhores mãos. Aquele sujeito que no passado fora andante e beberrão, agora é um ser desprezado socialmente. Senhor supremo da invisibilidade.

Os músculos de braços e pernas esperneiam, rebolam, sambam e fincam no aquecido asfalto, de onde sobe uma miragem ao longe, em resposta ao que lhes é impostos. De sua cara, o suor desprende-se em bicas, empapando o pescoço, limpando-lhe a pele da barriga e acumulando no profundo vazio do umbigo. As unhas de seus pés parecem felpas pontiagudas. Seus cabelos fazem um nó, tamanha a impregnação da sujeira e sebo, e o tamanho da bolsa tiracolo, não representa o sintoma da escassez, o vazio e o ar absoluto que transporta. Demasiadamente pesada para pouca utilidade. Porém, o homem reciclador não desgruda dela; afinal, os mistérios rondam e escondem-se onde o improvável está.

- Garrafeiro; ferro-velho; compro todo e qualquer tipo de materiais recicláveis!

- Maldito Reciclador, berrando à esta hora!

Como de costume, essa idiotice de eco aos berros rompe os ares todas as manhãs de domingos, despertando a ladeira. As baterias de seu relógio biológico são infalíveis, não precisando, portanto de serem recarregadas; no máximo, um cantar de galo no quintal, isto quando havia galos e galinhas cacarejando em quintais. As fazendas migraram-se para o conglomerado de prédios dos condomínios e os animais e bichos foram depositados nas portas de geladeiras e gabinetes, misturando-se aos avisos e lembretes domésticos. “Médico oculista no dia 13. No dia 30, Cardiologista. Dia 5, data limite para o pagamento da faculdade da Malu”. Embora que, no quintal do Pilgrim recycling, não há geladeira e gabinete, mas o galo, um imponente carijó de crista sanguínea e espora felpuda, dono do pequeno território, cantava esfuziantemente, despertando o reciclador e as galinhas para o trabalho. No decorrer do dia, o significado do cantarolar é outro: cortejar impondo respeito às suas infiéis esposas.

Aquele homem rústico de costumes e visual, durante as quatro estações do ano, transportou muitos quilos de materiais. Vasculhou e limpou toda espécie de restolho. Uma vez que não tinha o aval dos proprietários para levá-las para o depósito, virou de cabeça para baixo muitas vasilhas, pneus e latas. Arrastou cadeiras, mesas e sofás; esses, no momento de cansaço extremo, serviam para sentar e relaxar. Calçou os sapatos, tênis e botinas, ainda que sem cadarços, mas com os solados e o couro em razoáveis estado de conservação. Roubando água de certa torneira, regou árvores em outras. O resto de cascas e lixo orgânico, cuidadosamente eram separados e levados para alimentar o galinheiro; quando não, abria uma vala e os depositava, lá. “Minha horta, jardins, minhocas, fungos, bactérias e o solo agradecem. Sustento a tese que sustentabilidade se faz com ações sustentáveis”.

Acompanhou, ouviu o choro e ofereceu a chupeta carcomida à perpetuação e renovação da raça residente nas ladeiras e ruas. Com o fracasso dos materiais recicláveis, o homem sentiu-se obrigado a apelar e iniciou vendendo as galinhas e os filhos que já impunham domínio e divisão de território ao galo (agora ancião). Sua glória reinava em saber que em algum instante deixaria de trabalhar fielmente em troco da sobrevivência, sustentabilidade e construção de novas ladeiras e ruas; no entanto, ao adentrar o galinheiro, soliloquiava: “Quanto eu deveria ganhar pelos meus míseros e imprestáveis serviços? Uma galinha talvez, para mim seria o suficiente! Como ficaria contente! A infeliz que acompanha o galo, está na fase do climatério e o calor da menopausa está consumindo-a, impossibilitando de procriar. E se não houver renovação e perpetuação de boas e excelentes espécies, quem morrerá é o arrebol do arco-íris planetário”!

Mesmo dotada de pouca utilidade e serventia, tomada pelos problemas da senilidade, O Reciclador nutria profundo respeito, carinho e admiração pela galinha; principalmente agora que sobrara somente ela. Não teria que dividir suas emoções e sentimentos com mais ninguém, a não ser ela. “Vem, pule no meu ombro que é o seu poleiro; deixe-me escovar-lhe os cabelos, afagar-lhe a cabeça, cortar e passar esmalte em suas unhas. Mais tarde iremos ao shopping completar o banho de loja. Quero você sempre bonita, elegante e majestosa rainha; somente para mim! Talvez aceite hoje o meu insistente convite para o motel; porque o amor platônico nos compraz, mas não é suficiente e supera o sexo carnal; aquele que revigora, limpa os poros e renova as emoções! Sexo animal! Assim feito, continuaremos vivendo nosso eterno platonismo...mas de vez em quando...você sabe como é!...A mente se perde, o corpo palpita e a incontrolável fome bate à porta! Temos que deixá-la entrar, porque somos seres humanos frágeis. E fazer uso da fragilidade nos fortalece e conforta!

Insaciável às carícias, meio tremula e molenga, ela compensou-lhe com um longo e demorado beijo na boca. Provavelmente, ela iria ceder ao tão esperado dia por ele.

A tarde caia jubilosamente, nada diferente do Reciclador. Tudo transpirava testosterona e núpcias! Ambos galantes, de mãos dadas e brincantes como duas crianças livres, por fim, saíram do galinheiro.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 07/04/2015
Reeditado em 11/04/2015
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