*Diário de Uma Puta

Diário de Uma Puta

Bom dia, para quem é de bom dia; saravá, para quem é de saravá!

Muito prazer (e com prazer é mais caro), meu nome é Miguelina de Jesus Santos. Moro num condomínio de classe média alta. De profissão, sou prostituta. É claro que, com esse nome, eu não faria sucesso nem vendendo bananas na feira livre, por isso, arranjei um nome de guerra e hoje me chamo Shirley Rockefeller. Perspicazmente, esse é um nome mais charmoso e soberano e satisfaz, especialmente, aos brasileiros imbecilizados por essa nefasta cultura norte-americana.

Resolvi trocar de identidade, porque nas minhas atividades, puta dos Santos e de Jesus, não seria nada coerente. Embora eu não seja religiosa no sentido lato, nem no sentido metafórico, também não sou ateia, sou agnóstica. Respeito todas as religiões, até pelo meu envolvimento mercadológico, já que tenho clientes de diversas correntes de fé.

Hoje uso perfume francês, mas a vida nunca me foi fácil. Já tomei banho com sabão de coco e usei sandálias ruins e emprestadas. Já dormi com cães disfarçados de homens, elementos imundos, surrados pela vida. Sofri, chorei, berrei e quanto mais berrava e chorava, mais sofria. Foi quando eu resolvi investir em mim, estudando.

Eu tinha o segundo grau completo, mas sabia que estava completamente desatualizada em decorrência do longo tempo que passei fora da sala de aula. Consegui emprego no comércio e, um dia, bati à porta de um colégio de freiras.

Não foi difícil falar com a Madre Superiora. Contei-lhe minha vida tim-tim por tim-tim, desde o útero de minha mãe, não ocultei nada. Disse que queria estudar e que não tinha dinheiro para pagar os estudos. Quando acabei de falar, eu estava exausta.

A Madre era uma mulher de ferro, hirta e glacial, que não se dilatava nunca. Era inacessível, não batia cílios com cílios, não esboçava sentimentos e sequer afagava o crucifixo que pendia de seu pescoço. Assentada imponentemente por trás de sua escrivaninha, fuzilava-me a alma com seu olhar tipicamente nazista. Parecia-me que, por suas veias, corriam salmoura. Era-me impossível observar qualquer resquício de comiseração e eu já estava arrependida de ter entrado ali. Como eu pudera abrir-me com uma desconhecida tão insensível como aquela!

A Madre usava um hábito impecavelmente bem passado, sem uma dobra, sem uma única mácula, sem uma ponta maior que a outra, o que lhe dava, ainda mais, um ar de superioridade. Foi quando ela levantou-se com a lentidão de uma lesma e, colocando as duas mãos para trás, caminhou em minha direção, contornando a grande mesa que nos separava. O paulatino toc, toc dos saltos de seus sapatos no assoalho de madeira varava-me os tímpanos, dava-me a visão de Hitler... E ela caminhava com a impassibilidade de quem não queria chegar, mas chegou. De pé, por trás de mim, colocou uma mão em cada um dos meus ombros, abaixou-se um pouco e, beijando-me a cabeça perguntou-me com a voz mais suave que o farfalhar das folhas levadas pela brisa, mais delicada que o orvalho da madrugada e tão melíflua quanto a mais sublime das sinfonias angelicais:

- Perdoe-me, minha filha, perdi-me durante sua fala. Como é mesmo o nome de minha mais nova e linda aluna interna?

Quase desfaleço e cairia se não estivesse assentada. Eu estava mais preparada para ouvir um “não” do que aquilo. Eu não estava entendendo nada e, trêmula, consegui, não sei de onde, tirar forças para perguntar:

- A Senhora vai me aceitar?

Em resposta, ela me disse ter todos os motivos do mundo para não me jogar fora. Chorei, chorei e não foi pouco. Durante todo esse tempo, ela permanecera de pé atrás de mim, segurando-me o rosto com as duas mãos e respeitando silenciosamente o meu prato, até a minha última lágrima. Depois, ajoelhou-se diante de mim e, com um lenço azul perfumado de rosas, limpou-me o rosto.

A Madre adotara no convento o nome de Irene, nome grego, que significa “paz” e eu duvido que no mundo todo alguém justifique tão bem o nome que carrega. Todos os seus atos contrastavam absurdamente com seu perfil físico. Era a ternura personificada, envolvida por um hábito de freira.

No colégio, refiz os três anos do científico e, neste período, fui a melhor aluna entre as quarenta. De quebra, aprendi Francês, Italiano, um pouco de Grego Clássico e ainda ganhei um mês de férias em Roma, como um prémio extra. De volta, entrei para o curso de Psicologia na Universidade Federal com a terceira melhor nota geral e só então me desliguei do colégio.

Graduada e preparada para a vida, voltei a ser prostituta. Instalei em meu apartamento o meu consultório e só atendo homens. Trabalho com hora marcada e pagamento antecipado. Recebo clientes de todas as idades, iniciantes inclusive. Ouço suas histórias, aconselho e devolvo-os melhores. Mas em alguns casos, retornam piores. Se antes eu dormia com cães disfarçados de homens, hoje durmo com porcos travestidos de cães. Elementos que chegam para fazer comigo o que não fazem com as esposas. Alguns deles são daqui mesmo do condomínio. Infelizes que perderam a cabeça por causa de um par de pernas torneadas ou de uma bunda farta e, assim, fazem as esposas muito mais infelizes. O diabo é que, muitas delas também saem para fazer com os amantes o que não fazem com os maridos. Alguns me causam nojo, com outros me divirto e com outros tantos me dou bem.

Quanto a Madre Irene, ela não sabe que tipo de assessoria psicológica eu desenvolvo. Visito-a normalmente a cada mês e levo-lhe doces, carinho e agradecimentos.

Para o ano, irei fazer mestrado em Milão.