AZUL LUNAR
Faz muitas horas que estamos nesta estrada apocalíptica sem encontrar uma viva alma. Olho a agulha do medidor de gasolina que começa a se aproximar da zona vermelha de uma maneira inquietante. Procuro me distrair observando as margens da velha rodovia passando por nós, um pouco de vegetação desfocada aqui e ali e grandes rochedos sobre uma terra plana e ressequida. Dentro desse espaço aberto de visão longínqua tudo é monocrômico, em tons de grafite pálido que, pouco a pouco, se acentuam cedendo lugar a um universo pesado e monótono. A luz do sol no meio da tarde se torna cianótica, exatamente como se fosse uma calma noite de outono em pleno dia. O cansaço, o silêncio e o movimento do carro criam certo torpor, parece que até os anjos adormeceram ao som do mantra mecânico, ruído regular e tedioso do motor.
Apesar da atmosfera bizarra, não é amedrontadora, não existe nenhuma sensação de perigo, como em um poema misterioso, simplesmente aquela emoção do surpreendente misturado à uma curiosidade que aumenta ao avistarmos na distância o que se assemelha a uma habitação. E claro, com a autonomia da combustão chegando ao fim, desejamos, ardentemente, que tenha uma bomba ou gasolina estocada em barris, como é característico em estradas deste tipo.
À medida que nos aproximamos cresce a impressão do “déjà vu”, de reconhecer em um cantinho da minha memória de cinéfila, a imagem de um ponto de parada às margens da rodovia do filme “Paris Texas”. Estacionamos em frente a uma casa de madeira em um triste estado de conservação. Mais ou menos vinte metros à sua direita, pra nossa imensa felicidade, uma bomba de gasolina manual, caindo aos pedaços, completamente descascada, suja, onde deciframos a sílaba “GAS”. Ao fundo, um carro americano abandonado, muito velho, de formas arredondadas, robusto, de cor cobre pela cobertura de ferrugem que, visto de lado com o capô levantado, parece uma escultura de bronze de um tubarão com uma grande boca aberta pronto para abocanhar o que passar por perto. O mundo aqui é disforme e cheio de enigmas. Ligamos novamente o carro, manobramos e nos posicionarmos ao lado da bomba.
Descemos, eu e Alain, para estabelecermos contacto. Somos os únicos elementos coloridos contrastando dentro deste ambiente onde só a ferrugem e as nuances do cinza sobreviveram. Com o motor desligado e o ar quente totalmente imóvel, tomamos ainda mais consciência do silêncio absoluto que nos circunda, como se apenas os sons de nossos deslocamentos e vozes tivessem o direito à existência. Girando o corpo sem sair do lugar, circulo, subo e desço o olhar até perceber duas crianças nos observando às escondidas, atrás da casa. Um casal que parece ter a mesma idade, entre nove a dez anos. Automaticamente, me dirijo na direção deles, mas antes de esboçar um sorriso ou qualquer palavra, ao perceberem que haviam sido descobertos, fogem pra dentro da segurança do lar. Alain se aproxima e, lado a lado, numa troca de olhares, decidimos espontaneamente irmos à residência para propor a compra de alguns litros de gasolina, nosso objeto de desejo que nos parece cada vez mais improvável…
Transpomos a escada de três marchas da varanda e batemos três vezes na porta. Nenhum retorno sonoro. Nem presencial. Na verdade, o que nos parecia ser uma porta, observando melhor, não passa de uma falsa porta, pintada e esculpida numa madeira aprisionada no interior da parede entre duas janelas de vidro. Idênticas. Corremos cada um pra uma janela na esperança de vislumbrar alguém. Mas do interior, nada podemos ver além de uma intensa escuridão, meio incompreensível. Com a vista um pouco mais acostumada com as sombras, entendemos a nossa nebulosidade inicial. O que existe é um grande vazio, um espaço abismal, infinito de trevas profundas. Pra chamar a atenção de nossas presenças, tentamos gritar e, surpreendentemente, nenhum som se manifesta, mas a comunicação entre nós permanece intocável, não sabemos ao certo se ela se faz através da transmissão de pensamento ou por outro canal qualquer. Uma grande confusão começa a se instalar — talvez ela tenha se inserido já a algum tempo (?) —, em nossos espíritos, possivelmente pela perda gradual de referências habituais.
Voltamos pra perto do nosso carro procurando no entorno por uma presença humana ou um mínimo sinal de vida, mas nada se manifesta além do zumbido nos tímpanos provocado pelo imenso silêncio. Nenhum movimento, sequer um sopro de ar, tudo absolutamente imóvel, somos os únicos a quebrar a letargia dentro de nossas roupas coloridas.
De repente, Alain se distancia de mim, atravessa a estrada e passa pro outro lado. Eu pergunto pra onde ele vai e o que vai fazer (?). Ele se retorna e me faz um gesto pra esperá-lo onde estou. Antes de perdê-lo de vista, apesar de sua recomendação, decido ir até ele. Uns cinquenta metros nos separavam um do outro quando desvio meu olhar de suas costas para pular um buraco à minha frente e, em um piscar de olhos, eu o perco de vista. Aperto o passo, corro pra conseguir alcançá-lo. Em vão. Ele desapareceu completamente. Grito sem nenhum sucesso sonoro. Só consigo visualizar galhos finos, terra seca, rochedos cinzas e tudo iluminado por esta luz azul lunar…
Minha boca é invadida por um forte amargo, puro fel, consequência da séria ebulição interior. Tento ponderar como pode uma presença se ausentar em um passe de mágica e em um lugar aberto. Desértico. O sol já está quase morto e isso só piora o meu nervosismo, mas tento manter o controle e continuo a chamar por Alain. Minha voz soa estranha e não tenho certeza se realmente ela ressoa fora de mim mesma. Lembro do meu celular dentro do carro, dou meia volto e retorno em disparada, extremamente ansiosa. Minha intenção é de pedir por socorro o mais rápido possível. Abro depressa a porta do carro e vejo Alain sentado ao volante que me pergunta:
— Onde é que você estava?