Clécio Controverso E Jeremias Companhia

Clécio era uma criança muito ativa. Mas não dizia coisa com coisa. Vivia misturando alhos com bugalhos. Não se decidia e quando fazia, era em sentido contrário ao que havia dito no início. O moleque era tão ao avesso que dormia de bruços. Um dia começou a andar de trás pra frente. Os pais achavam que era faceirice de molecote. Acabou ficando com os pés virados ao avesso. A molecada da escola passou a chamar o guri de Curupira. O apelido pegou e o menino seguia deixando um rastro que enganava um perseguidor. Já que quando se achava que estava andando para frente, era para trás que ele caminhava e vice-versa. Um dia brigou com um outro aluno e na hora de aplicar uma pezada no traseiro do outro, sua perna virou e acertou o seu próprio rabo. A situação foi triste e deixou Clécio inconformado. Chegando em casa foi fazer xixi e acabou acertando a parede de azulejos nas suas costas. O pinto do menino estava tão torto que parecia o cabo de uma bengala. Os olhos começaram a revirar e só e via o branco das órbitas.

Foi quando os pais ficaram preocupados e levaram a criança no médico. O doutor disse que era uma anomalia rara. Passou uns medicamentos e mandou que os familiares rezassem. Quando o menino passava na porta de um boteco, o pessoal dizia que o “Curupira com olho branco de capeta” estava passando. Nunca se soube que o diabo tivesse olhos brancos. Mas dizem que o conhecimento popular está muito além de historiografias e cientificismos de qualquer espécie. A coisa ficou tão séria, que um dia o menino foi cagar e a bosta voltou, fazendo com que sentisse dores fortes na barriga. Parecia mesmo uma maldição. Curandeiros de plantão foram chamados e as autoridades contra qualquer tipo de maldição apareceram com seus diagnósticos. Não conseguia calçar sapatos por ter pé invertido. Vestia os chinelos ao avesso e ia embora amassando barro pelas estradas de terra. Não deixou de aprontar das suas. Adorava dar sustos nas beatas, que diziam uma praga quando se recuperavam do espanto.

Clécio fez amizade com um menino negro da sua escola. O menino chamava Jeremias e havia perdido uma perna ao ser atropelado por um automóvel. Ficou conhecido como Saci e adorava andar com um boné vermelho do Chicago Bulls. Os dois eram unha e carne. Fumavam um cigarrinho juntos, escondidos dos adultos. Roubavam doces na mercearia e atiravam cajá manga nas pessoas do ponto de ônibus. Curupira, ou seja, Clécio, arrumou um cachorro feio pra diabo. O bicho tinha um pelo todo emaranhado e nem tosando dava jeito. Apelidaram o bicho de Cuca e os três andavam juntos pela cidade, chamando a atenção da comunidade. Um dia o Saci tentou, de brincadeira, dar um chute na bunda do Curupira e acabou caindo de rabo no chão. Eles riram tanto que Clécio se mijou todo. Por ter o pinto torto, deu um respingada no Jeremias. Os dois eram tão felizes que nem viram a infância passar.

Quando adultos. Clécio operou e consertou os pés. Ah, claro, arrumou o pinto também. Passou a trabalhar em um escritório de contabilidade e se casou com uma moça míope que era arquivista. Dizem que a mulher, com aquela cara de santa, esfolava o Clécio. Jeremias ganhou uma prótese e passou a dar aulas na cidade. Seu cabelo era cortado baixinho e não usava mais bonés. Acabou se casando com uma professora que disseram ter três tetas, mas ninguém nunca tirou a prova dos nove. O cachorrinho Cuca, que na verdade se chamava Rex, como todo bom cão vira-lata, faleceu de velhice. O bichinho bem que tentou resistir ao passar dos anos, e o fez bravamente. Mas chegou o seu dia e o deus dos cães o convocou para o canil do céu. As outras crianças cresceram e ninguém mais comentou sobre aqueles apelidos. A vida deles perdeu aquela alegria de quando eram pequenos e só pensavam em pagar contas botar o que comer na mesa. Clécio teve um casal de filhos com sua esposa e Jeremias foi pai de um só. Uma vez, na reunião de escola, um diretor disse não acreditar que Jeremias só tivesse um filho. Mas o professor, de forma categórica, disse que é comum associarem preto e pobre com uma penca de filhos. Deram uns sorrisos tímidos e não se tocou mais no assunto.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 19/03/2014
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