Imagem: © Fátima Rocha Perini
UMA FORASTEIRA EM SHANGRI - LA
Pra ser bem sincera com você, eu, em um momento de misantropia, daqueles que nos tornamos insuportáveis por não suportar o outro, resolvi me distanciar de todos e de tudo, me isolando dentro do meu carro em uma estrada qualquer da vida. Quase sem preparativos. Apenas me liberei dos compromissos profissionais. Abandonei tudo. Peguei minha bolsa com documentos, dinheiro, chaves e, em outra bolsa maior, joguei algumas roupas confortáveis. Desliguei a eletricidade, coloquei o lixo pra fora, enrolei em torno do meu pescoço uma echarpe azul e fechei a porta. Sentada ao volante, enviei alguns emails para aqueles que, eventualmente, pudessem se preocupar com a minha ausência e retirei a bateria do celular. Pronto. “Pé na estrada”, quer dizer… “mãos na roda”. Comecei a viver os primeiros minutos do resto da minha viagem. Já era noite, mas isso não tinha a menor importância naquele momento. Liguei o motor e acelerei.
O mundo estava banhado em trevas, inclusive o posto, exceto a luzinha da bomba de gasolina. Enchi o tanque e pensei que, talvez, fosse melhor ter um rumo do que ficar sem “norte”. O senhor que completou o combustível no tanque do meu carro — eu já o conhecia de outros carnavais — me deu um mapa, umas orientações e, finalmente, resolvi continuar na rodovia Belém-Brasília. Não sou de Bagé, mas foi de lá que saí, portanto — imagine você — eu tinha diante de mim, mais de 4.000 km de estrada pra percorrer. Deleguei o comando da minha vida ao meu bem querer. Fiquei à mercê dos desejos e do devir. Inconsequente. Submissa. Irresponsável. Livre. O carro era a extensão do meu corpo e tudo que me interessava era estar ali, rodando, devagar e sempre. Você pode não acreditar, mas eu não pensava, não falava, não cantava, não ouvia, não tinha sede e minha fome era de chão. De asfalto. De terra. Saboreava cada metro desejando ardentemente que essa estrada fosse infinita.
Depois de ter varado a noite e atravessado o dia, vinte e quatro horas de viagem ininterrupta, parando unicamente pra encher o tanque sem mesmo sair do carro, resolvi descer um pouco. Enquanto o frentista fazia o serviço, fui até o pequeno restaurante do posto pra fazer xixi, lavar as mãos e tomar um bom café. Um rapaz se aproximou de onde eu estava, falou alguma coisa que não me interessei em ouvir, tentou chamar minha atenção de várias maneiras, mas preferi continuar apreciando meu café. Pedi outro que tomei sem pressa até a última gota. Cafezinho do tipo “puro prazer” que me deixou completamente alheia ao resto. Paguei e saí. Dei o troco pro frentista que lavou o para-brisa e ainda jogou uma água no capô. No capricho. Sabe quando você acorda com ótimo humor depois de uma noite muito bem dormida? Pois é, era assim que eu me sentia. E foi dessa forma que voltei pra rodovia. Cheia de disposição.
Não sei se você é do tipo que pratica meditação, mas era exatamente nesse estado que eu me encontrava. Em paz. Com a mente esvaziada. E mesmo depois de ter rodado mais de três mil Km sem parar, sequer sentia qualquer necessidade de descanso desde que saí de casa. Absolutamente nada. Entretanto, eu estava totalmente sem noção de data, perdida no fluxo temporal. E era incrível como tudo me parecia diferente. As velhas e típicas paisagens se tornaram extraordinárias, inéditas para os meus novos olhos. Dei seta pra entrar à esquerda numa estradinha de terra — Por quê? Essa é uma pergunta que eu não poderia lhe responder nem àquela hora e nem agora. Mas entrei —. Fui rompendo o chão de terra bem devagar no meio de um silêncio onde tudo estava em harmonia perfeita. Respirava profundamente para que àquele perfume delicioso que exalava do tudo chegasse até as minhas células mais profundas. Foi aí que comecei a sentir vertigens. Vi uma casinha à beira da estrada, estilo porta janelinha, com uma grande árvore frondosa à sua direita. Estacionei debaixo dela. Fatal. O mundo começou a rodopiar em volta de mim. Apoiei minha cabeça no volante e, em uma fração de segundo depois, ouvi uma voz que me dizia: “fique tranquila”. Realmente, senti o mundo se imobilizando e minha atenção passou a se dirigir para o lado de fora de mim. Uma pessoa completamente nua, hermafrodita, abriu a porta e me estendeu a mão. Saí perplexa, porém, sem medos ou questionamentos. Antes de me afastar da porta do carro, retornei pra pegar minha echarpe azul que estava no encosto da poltrona e aí, levei o maior susto! — Você pode duvidar, mas é verdade —, eu continuava lá, com a cabeça apoiada no volante. Aquela cena me perturbou muito e tudo que eu queria era fugir dali o mais rápido. Peguei minha echarpe e, sem razão ou lógica evidente, simplesmente enrolei no pescoço dessa pessoa de beleza singular de gênero plural. E a segui.
À medida que nos aproximávamos de uma espécie de fronteira, íamos perdendo corpo físico. Atravessamos o portal de um tipo de mundo paralelo e adentramos em um castelo insólito de teto a céu aberto, divinamente estrelado e com luas em todas as fases. Tinha arquitetura prismática, as paredes eram cortinas formadas por fios de uma água que de tão fluida era impenetrável. Parecia mercúrio, inclusive na cor, prateando o lago onde caíam e duplicando as aves esplêndidas, uma mistura de Guará e Colhereiro, que deslizavam mansamente sobre a reflexão de um magnífico firmamento. Essa lagoa resplandecente era o chão do castelo, ocupava toda a superfície em que estávamos e sobre a qual, dois a três centímetros acima, flutuávamos lindamente ao som de músicas com vozes e instrumentos que jamais tinha ouvido, mas que ressoavam nas esferas do anímico. Sim, estávamos em plena festa, humanamente inconcebível pela sua peculiaridade, incrivelmente excitante. Àquele universo era regido por ondas eletromagnéticas, porém, havia uma espécie de gás atmosférico com lindos tons lilases, variando do rosa ao azul bem clarinhos, que nos permitia o controle de nossos deslocamentos. E nós, nós tínhamos a mesma forma da aparência corpórea tridimensional, porém, sem a densidade. Éramos não físicos. Imateriais. Parecíamos hologramas coloridos. Éramos seres vibracionais, cada um de nós possuía seu padrão vibratório. Único. Sua própria identidade. O hermafrodita que me acompanhava ofereceu-me uma “bebida” numa taça extremamente fina, uma delicada e bela escultura de cristal verde cristalino, tinha na sua parte côncava uma substância bifásica, líquido-gás, de cor dourada rubro, indo da vaporização à condensação num processo suave e permanente de decantação. Instintivamente, aspirei pela boca um pouco daquela porção mágica, bem devagar, e aí — juro pra você — ela me fez oscilar numa outra frequência e sentir o indefinível. Olhei pro meu benfeitor e, intuitivamente, lhe dei um abraço. Algo surpreendente aconteceu, uma penetração, literalmente, um dentro do outro. Interagimos com uma vibração orgásmica de enorme poder sensorial.
Depois de recuperar minha frequência padrão, tudo que eu queria era conhecer mais, experimentar mais, viver intensamente essa aventura. A festa rompia esfuziante e minha echarpe azul virou um brinquedo que passava de um corpo etéreo a outro, com os quais eu ia fazendo contato de diversas formas. Telepaticamente, estabelecemos relação, eu e um iluminado de sabedoria Rara, vindo da décima primeira dimensão, cujo mínimo contato altera e expande nossa consciência. Apesar da cognição que o encontro exigia, foi inevitável a imensurável força das emoções que fluíram entre nós. Mas subitamente, rodopiando pelo salão, alguém retirou do sábio a echarpe azul e lançou-me a outra ponta. Segurei nela e fui envolvida numa coreografia fantástica. Dancei como jamais havia feito. O ritmo, os movimentos, tudo era tão fascinante que todos vieram e se uniram a nós em um grande encontro, ardentemente amoroso e profundamente vibrante. Cores brilhantes emanavam de nossas freqüências. Linguagem feita de códigos luminosos. Estávamos no mundo das possibilidades onde a missão existencial parecia ser a de carregar sentidos. Sensibilidades.
Eu transpirava de forma anormal. As roupas estavam coladas no meu corpo. Confusa, levantei a cabeça do volante, sem saber muito bem onde estava e, fiquei ainda mais pasma, ao ver-me cercada por inúmeros rostos matutos de crianças e mulheres que fechavam totalmente meu campo de visão. Eles estavam por todos os lados, para-brisas, janelas laterais e traseiras. Pareciam ter saído do quadro “A família” de Tarsila do Amaral. Eu me sentia como uma extraterrestre. Meus olhos ardiam com o suor que escorria testa abaixo. Pra enxugá-los, tentei pegar a echarpe azul no encosto da poltrona do carro, mas, estranhamente, ela havia desaparecido.
UMA FORASTEIRA EM SHANGRI - LA
Pra ser bem sincera com você, eu, em um momento de misantropia, daqueles que nos tornamos insuportáveis por não suportar o outro, resolvi me distanciar de todos e de tudo, me isolando dentro do meu carro em uma estrada qualquer da vida. Quase sem preparativos. Apenas me liberei dos compromissos profissionais. Abandonei tudo. Peguei minha bolsa com documentos, dinheiro, chaves e, em outra bolsa maior, joguei algumas roupas confortáveis. Desliguei a eletricidade, coloquei o lixo pra fora, enrolei em torno do meu pescoço uma echarpe azul e fechei a porta. Sentada ao volante, enviei alguns emails para aqueles que, eventualmente, pudessem se preocupar com a minha ausência e retirei a bateria do celular. Pronto. “Pé na estrada”, quer dizer… “mãos na roda”. Comecei a viver os primeiros minutos do resto da minha viagem. Já era noite, mas isso não tinha a menor importância naquele momento. Liguei o motor e acelerei.
O mundo estava banhado em trevas, inclusive o posto, exceto a luzinha da bomba de gasolina. Enchi o tanque e pensei que, talvez, fosse melhor ter um rumo do que ficar sem “norte”. O senhor que completou o combustível no tanque do meu carro — eu já o conhecia de outros carnavais — me deu um mapa, umas orientações e, finalmente, resolvi continuar na rodovia Belém-Brasília. Não sou de Bagé, mas foi de lá que saí, portanto — imagine você — eu tinha diante de mim, mais de 4.000 km de estrada pra percorrer. Deleguei o comando da minha vida ao meu bem querer. Fiquei à mercê dos desejos e do devir. Inconsequente. Submissa. Irresponsável. Livre. O carro era a extensão do meu corpo e tudo que me interessava era estar ali, rodando, devagar e sempre. Você pode não acreditar, mas eu não pensava, não falava, não cantava, não ouvia, não tinha sede e minha fome era de chão. De asfalto. De terra. Saboreava cada metro desejando ardentemente que essa estrada fosse infinita.
Depois de ter varado a noite e atravessado o dia, vinte e quatro horas de viagem ininterrupta, parando unicamente pra encher o tanque sem mesmo sair do carro, resolvi descer um pouco. Enquanto o frentista fazia o serviço, fui até o pequeno restaurante do posto pra fazer xixi, lavar as mãos e tomar um bom café. Um rapaz se aproximou de onde eu estava, falou alguma coisa que não me interessei em ouvir, tentou chamar minha atenção de várias maneiras, mas preferi continuar apreciando meu café. Pedi outro que tomei sem pressa até a última gota. Cafezinho do tipo “puro prazer” que me deixou completamente alheia ao resto. Paguei e saí. Dei o troco pro frentista que lavou o para-brisa e ainda jogou uma água no capô. No capricho. Sabe quando você acorda com ótimo humor depois de uma noite muito bem dormida? Pois é, era assim que eu me sentia. E foi dessa forma que voltei pra rodovia. Cheia de disposição.
Não sei se você é do tipo que pratica meditação, mas era exatamente nesse estado que eu me encontrava. Em paz. Com a mente esvaziada. E mesmo depois de ter rodado mais de três mil Km sem parar, sequer sentia qualquer necessidade de descanso desde que saí de casa. Absolutamente nada. Entretanto, eu estava totalmente sem noção de data, perdida no fluxo temporal. E era incrível como tudo me parecia diferente. As velhas e típicas paisagens se tornaram extraordinárias, inéditas para os meus novos olhos. Dei seta pra entrar à esquerda numa estradinha de terra — Por quê? Essa é uma pergunta que eu não poderia lhe responder nem àquela hora e nem agora. Mas entrei —. Fui rompendo o chão de terra bem devagar no meio de um silêncio onde tudo estava em harmonia perfeita. Respirava profundamente para que àquele perfume delicioso que exalava do tudo chegasse até as minhas células mais profundas. Foi aí que comecei a sentir vertigens. Vi uma casinha à beira da estrada, estilo porta janelinha, com uma grande árvore frondosa à sua direita. Estacionei debaixo dela. Fatal. O mundo começou a rodopiar em volta de mim. Apoiei minha cabeça no volante e, em uma fração de segundo depois, ouvi uma voz que me dizia: “fique tranquila”. Realmente, senti o mundo se imobilizando e minha atenção passou a se dirigir para o lado de fora de mim. Uma pessoa completamente nua, hermafrodita, abriu a porta e me estendeu a mão. Saí perplexa, porém, sem medos ou questionamentos. Antes de me afastar da porta do carro, retornei pra pegar minha echarpe azul que estava no encosto da poltrona e aí, levei o maior susto! — Você pode duvidar, mas é verdade —, eu continuava lá, com a cabeça apoiada no volante. Aquela cena me perturbou muito e tudo que eu queria era fugir dali o mais rápido. Peguei minha echarpe e, sem razão ou lógica evidente, simplesmente enrolei no pescoço dessa pessoa de beleza singular de gênero plural. E a segui.
À medida que nos aproximávamos de uma espécie de fronteira, íamos perdendo corpo físico. Atravessamos o portal de um tipo de mundo paralelo e adentramos em um castelo insólito de teto a céu aberto, divinamente estrelado e com luas em todas as fases. Tinha arquitetura prismática, as paredes eram cortinas formadas por fios de uma água que de tão fluida era impenetrável. Parecia mercúrio, inclusive na cor, prateando o lago onde caíam e duplicando as aves esplêndidas, uma mistura de Guará e Colhereiro, que deslizavam mansamente sobre a reflexão de um magnífico firmamento. Essa lagoa resplandecente era o chão do castelo, ocupava toda a superfície em que estávamos e sobre a qual, dois a três centímetros acima, flutuávamos lindamente ao som de músicas com vozes e instrumentos que jamais tinha ouvido, mas que ressoavam nas esferas do anímico. Sim, estávamos em plena festa, humanamente inconcebível pela sua peculiaridade, incrivelmente excitante. Àquele universo era regido por ondas eletromagnéticas, porém, havia uma espécie de gás atmosférico com lindos tons lilases, variando do rosa ao azul bem clarinhos, que nos permitia o controle de nossos deslocamentos. E nós, nós tínhamos a mesma forma da aparência corpórea tridimensional, porém, sem a densidade. Éramos não físicos. Imateriais. Parecíamos hologramas coloridos. Éramos seres vibracionais, cada um de nós possuía seu padrão vibratório. Único. Sua própria identidade. O hermafrodita que me acompanhava ofereceu-me uma “bebida” numa taça extremamente fina, uma delicada e bela escultura de cristal verde cristalino, tinha na sua parte côncava uma substância bifásica, líquido-gás, de cor dourada rubro, indo da vaporização à condensação num processo suave e permanente de decantação. Instintivamente, aspirei pela boca um pouco daquela porção mágica, bem devagar, e aí — juro pra você — ela me fez oscilar numa outra frequência e sentir o indefinível. Olhei pro meu benfeitor e, intuitivamente, lhe dei um abraço. Algo surpreendente aconteceu, uma penetração, literalmente, um dentro do outro. Interagimos com uma vibração orgásmica de enorme poder sensorial.
Depois de recuperar minha frequência padrão, tudo que eu queria era conhecer mais, experimentar mais, viver intensamente essa aventura. A festa rompia esfuziante e minha echarpe azul virou um brinquedo que passava de um corpo etéreo a outro, com os quais eu ia fazendo contato de diversas formas. Telepaticamente, estabelecemos relação, eu e um iluminado de sabedoria Rara, vindo da décima primeira dimensão, cujo mínimo contato altera e expande nossa consciência. Apesar da cognição que o encontro exigia, foi inevitável a imensurável força das emoções que fluíram entre nós. Mas subitamente, rodopiando pelo salão, alguém retirou do sábio a echarpe azul e lançou-me a outra ponta. Segurei nela e fui envolvida numa coreografia fantástica. Dancei como jamais havia feito. O ritmo, os movimentos, tudo era tão fascinante que todos vieram e se uniram a nós em um grande encontro, ardentemente amoroso e profundamente vibrante. Cores brilhantes emanavam de nossas freqüências. Linguagem feita de códigos luminosos. Estávamos no mundo das possibilidades onde a missão existencial parecia ser a de carregar sentidos. Sensibilidades.
Eu transpirava de forma anormal. As roupas estavam coladas no meu corpo. Confusa, levantei a cabeça do volante, sem saber muito bem onde estava e, fiquei ainda mais pasma, ao ver-me cercada por inúmeros rostos matutos de crianças e mulheres que fechavam totalmente meu campo de visão. Eles estavam por todos os lados, para-brisas, janelas laterais e traseiras. Pareciam ter saído do quadro “A família” de Tarsila do Amaral. Eu me sentia como uma extraterrestre. Meus olhos ardiam com o suor que escorria testa abaixo. Pra enxugá-los, tentei pegar a echarpe azul no encosto da poltrona do carro, mas, estranhamente, ela havia desaparecido.