Foto: © Fátima Rocha Perini
Dante e o arcanjo
Dentro da minha boca a arma do crime.
Caminho em direção à cela que ocupo, a última deste longo corredor transfigurado em túnel do tempo, por onde projeto os descaminhos, os desvios tortos, toda a mediocridade de minha existência passageira, fracassada, oposta àquela idealizada, desejada, e que não vivi.
Há uma ausência de mim mesmo onde nenhuma palavra humana chega, onde nada mais pode me alcançar. Estou tão distante.
No momento final não há sonhos, a cada passo à frente, a realidade vai se exibindo numa retrospectiva acelerada e caótica, os acontecimentos fora de ordem se sucedem como em um filme com trinta e um bilhões, cento e quatro milhões de quadros da vida, um ano de imagens por segundo exibidas no fundo da retina, carregadas de sentidos bem definidos pelas emoções que dilaceram a alma.
Desfila o sofrimento constante pela busca estúpida e sôfrega do pão de cada dia, das noites dormidas entre ratos, baratas e fedor, da agonia por todas as telas que não pintei e das matizadas que não me deixaram expor. O altruísmo do amor por Lúcia, a frase concebida que levou a mulher mais bela da Rocinha a cair sucumbida, nos braços burgueses, daquele que é o pai de seus filhos. Lú, lembrança cálida que me faz sorrir. E chorar.
O mundo capital me levou à casa da indignação. Da agonia. Da raiva. Do desespero. Veio a decisão. Meu espírito se engravidou para gerar o homem Dante, aquele que libertaria o arcanjo, Miguel, que me faria imergir e emergir na pintura, transbordante de uma serenidade sem fim. Mas o beco, cruel, só possuía duas saídas: trafico ou assalto.
Escolhi a mais perigosa e digna dessa dualidade.
Senti o frêmito de quando se parte pra guerra.
Senti o frêmito de quando se volta da guerra.
Senti o frêmito de quando tudo se encerra.
A confecção em gesso do cofre, um porquinho, com a arma dentro. A mochila repleta de dinheiro. Catástrofe. O duelo perverso. O vento da bala tangendo minha têmpora. Incontroverso, o impulso a jato voa na superfície da minha consciência submissa. O horror do brilho funesto se apagando no olho do outro. Dante assassino. A esperança do arcanjo se dissipando. A condenação. Arresto.
Ninguém me responde
Ninguém me defende
Ninguém me entende.
Eu, Miguel, não nasci para o que me tornei. Agora, nem importa de onde vim, só pra onde irei. Guiado pela certeza do definitivo. O resto é uma história cheia de culpa que não sei até onde sou responsável. Punitivo. Adentro minha cela e retiro da boca o cadarço, a arma do crime que comprei do Rambo no terraço, no mais prazeroso de todos os banhos de sol. É o efeito “ecstasy” da vida por um fio. Espantoso !
Subo no beliche de cima. Amarro o mais longe possível uma das pontas do cadarço de nylon no ferro da minúscula janela gradeada, quase no teto, onde a pintura do meu autorretrato, dois perfis, serve de cortina decorativa. Testemunha da derrocada. Em equilíbrio instável, em silêncio, Dante laça a outra ponta no alto do pescoço, implacável, e sem prenúncio, impulsiona forte meu corpo pro fundo da morte.
Dante e o arcanjo
Dentro da minha boca a arma do crime.
Caminho em direção à cela que ocupo, a última deste longo corredor transfigurado em túnel do tempo, por onde projeto os descaminhos, os desvios tortos, toda a mediocridade de minha existência passageira, fracassada, oposta àquela idealizada, desejada, e que não vivi.
Há uma ausência de mim mesmo onde nenhuma palavra humana chega, onde nada mais pode me alcançar. Estou tão distante.
No momento final não há sonhos, a cada passo à frente, a realidade vai se exibindo numa retrospectiva acelerada e caótica, os acontecimentos fora de ordem se sucedem como em um filme com trinta e um bilhões, cento e quatro milhões de quadros da vida, um ano de imagens por segundo exibidas no fundo da retina, carregadas de sentidos bem definidos pelas emoções que dilaceram a alma.
Desfila o sofrimento constante pela busca estúpida e sôfrega do pão de cada dia, das noites dormidas entre ratos, baratas e fedor, da agonia por todas as telas que não pintei e das matizadas que não me deixaram expor. O altruísmo do amor por Lúcia, a frase concebida que levou a mulher mais bela da Rocinha a cair sucumbida, nos braços burgueses, daquele que é o pai de seus filhos. Lú, lembrança cálida que me faz sorrir. E chorar.
O mundo capital me levou à casa da indignação. Da agonia. Da raiva. Do desespero. Veio a decisão. Meu espírito se engravidou para gerar o homem Dante, aquele que libertaria o arcanjo, Miguel, que me faria imergir e emergir na pintura, transbordante de uma serenidade sem fim. Mas o beco, cruel, só possuía duas saídas: trafico ou assalto.
Escolhi a mais perigosa e digna dessa dualidade.
Senti o frêmito de quando se parte pra guerra.
Senti o frêmito de quando se volta da guerra.
Senti o frêmito de quando tudo se encerra.
A confecção em gesso do cofre, um porquinho, com a arma dentro. A mochila repleta de dinheiro. Catástrofe. O duelo perverso. O vento da bala tangendo minha têmpora. Incontroverso, o impulso a jato voa na superfície da minha consciência submissa. O horror do brilho funesto se apagando no olho do outro. Dante assassino. A esperança do arcanjo se dissipando. A condenação. Arresto.
Ninguém me responde
Ninguém me defende
Ninguém me entende.
Eu, Miguel, não nasci para o que me tornei. Agora, nem importa de onde vim, só pra onde irei. Guiado pela certeza do definitivo. O resto é uma história cheia de culpa que não sei até onde sou responsável. Punitivo. Adentro minha cela e retiro da boca o cadarço, a arma do crime que comprei do Rambo no terraço, no mais prazeroso de todos os banhos de sol. É o efeito “ecstasy” da vida por um fio. Espantoso !
Subo no beliche de cima. Amarro o mais longe possível uma das pontas do cadarço de nylon no ferro da minúscula janela gradeada, quase no teto, onde a pintura do meu autorretrato, dois perfis, serve de cortina decorativa. Testemunha da derrocada. Em equilíbrio instável, em silêncio, Dante laça a outra ponta no alto do pescoço, implacável, e sem prenúncio, impulsiona forte meu corpo pro fundo da morte.