Bilhete para o Nunca Mais
- Estação Sumaré – anunciava um muito pouco entusiástico motorista. Não precisamente motorista, já que o sistema computadorizado do trem metropolitano deixava pouca margem para a autonomia de seus operadores. Tânia sabia que tinha em torno de trinta segundos para recolocar o marcador no que quer que estivesse lendo, pois em breve estaria em um dos pólos da Linha Verde.
Guardando o livro na já meio fora-de-moda bolsa azul-claro, pôs-se a observar o único rapaz que dividia o vagão consigo. Cabelos loiros espetados, agora amassados no ponto onde a cabeça do garoto apoiava-se pesadamente na janela encardida do fim da noite. Uma mochila volumosa sustentava-se frouxamente pelo aperto adormecido das mãos do estudante. Ela não tinha certeza se deveria importuná-lo enquanto o motorista monótono anunciava a estação final. Subitamente (mas de uma maneira quase automática), o rapaz ergueu-se em um sobressalto e rumou porta afora do vagão, trôpego. Ela também saíra, escutando com quase nenhuma atenção o aviso do moribundo operário a respeito do recolhimento do trem. Extensas placas com alguns tons de verde explicitavam que Tânia encontrava-se na Estação Vila Madalena.
Um breve vislumbre no relógio analógico (e pré-histórico, diga-se de passagem) da estação indicava pouco mais de meia-noite e quinze. Bem tarde para uma moça de trinta e um anos andar sozinha. Contudo, seu pequeno apartamento distanciava-se da estação apenas uns três minutos, e Tânia percorria esses três minutos a passos largos. Os mais largos que seus sapatos lhe permitiam, isto é. À moça nunca havia ocorrido que havia mais perigo no interior da estação que fora. Passava por uma modesta loja de artigos eróticos, uma banca metálica fechada, um boteco de quinta e, após a esquina, seu prédio já era visível ao fim da rua. O “Empire Madalena” brilhava em um quadro amarelado pela gordura da cidade. Mais quatro lances de escada e estaria em casa.
O tilintar do molho de chaves vencendo a tranca da porta escura não provocou reação perceptível, e Tânia abriu a porta apenas o suficiente para que ela passasse. Sabia que, além de um certo ponto, a dobradiça gritaria escandalosamente pela falta de óleo, o que de bom nada traria a essas horas. Um leve estalo encostou novamente a porta, sendo a sala posterior e unicamente preenchida pelo ruído inespecífico de algum falatório televisionado. Abandonando a bolsa, percorreu boa parte do espaço do apartamento até chegar à fonte do ruído: um jornal da madrugada desperdiçava suas nada inéditas reportagens com um homem adormecido sobre uma poltrona marrom puída. Gilberto, seu marido. Tânia fitou com desgosto a mesma camiseta regata branca de dois dias atrás, já meio amarelada nas alças. Um controle-remoto desnecessariamente grande repousava confortavelmente em sua rotunda protuberância abdominal. A moça desviou de uma garrafa vazia de cerveja para chegar ao controle, calando o falatório de um irritante comentarista esportivo.
Da sala da televisão para o banheiro era um pulo, mas a moça cumpriu essa distância com delicadeza para não acordar o eletricista. Fitava as costas peludas de Gilberto enquanto escovava os dentes, graças à vista que tinha do banheiro. Lembrava-se de como ele era quando se casaram: ainda meio gordinho, mas de um modo atraente. Uma barba bem-feita e irresistivelmente galanteador. Apesar de ainda amá-lo, Tânia nutria uma verdadeira repulsa de qualquer intimidade com ele nesse estado, algo entre o odor azedo de cerveja e o asseio questionável de seu marido. Essa visão sempre enfatizava sua sabedoria ao se transferir para o turno da noite na Biblioteca Municipal. Caso ele almejasse fazer alguma coisa quando acordasse no meio da noite, tudo o que ela queria era estar adormecida. E permanecer adormecida.
Porém, em seu íntimo, talvez houvesse uma outra razão para suas atividades extenuantes e as poucas horas de sono que lhe restavam. Mas não uma razão genuína, e sim um pressentimento imensurável por qualquer parâmetro. Ela já se flagara imaginando, mais de uma vez, o que faria com os dias antes do fim. Como se os dela estivessem escasseando, e que seria bom pensar em coisas produtivas. Bobagem. Mesmo para ela, essas eram aflições descabidas. Ao esticar o braço para ter certeza que o rádio relógio estava com o alarme ativado, fitou, de relance, o espelho emoldurado disposto meio isolado no criado-mudo. Ao certificar-se do alarme, terminou por jogar o espelho no interior de uma das gavetas. As últimas divagações que aninharam Tânia antes do sono foram os espelhos: como ela os havia evitado durante os últimos dois meses. Como se o seu reflexo fosse, ainda que em escala mínima, diferente dela própria.
* * *
Passava os olhos pelos títulos, já há muito memorizados pela assiduidade das visitas de Tânia à livraria. Apesar de o lugar não passar de um estreito, comprido e mal-organizado galpão transformado em loja na Barão de Itapetininga, a bibliotecária apreciava tanto a seleção de volumes disposta nas prateleiras como a companhia da gerente.
- Estes chegaram ontem – disse a gerente, após uma calorosa, porém polida apresentação. Detinha, sobre o arco delicado de seu antebraço dois volumes, erguendo um por vez para dar luz à capa para que Tânia pudesse vê-los. Um era um sempre intrigante Albert Camus, e o seguinte intitulava-se “O Mundo Virtual” cujo autor não lhe soara familiar.
- Pode separá-los para mim? Darei uma passada pelas prateleiras e ver se me interesso por algo – disse Tânia, com um sorriso confortável. A gerente (cujo leve toque da maquiagem tornava seus feições agradavelmente chamativas) acenou com a cabeça, rumando para o fundo da loja.
Enquanto abria caminho entre as familiares prateleiras, a moça perguntava-se porque fizera aquilo. Ambas estavam cientes do fato que Tânia possuía endogenamente um sumário do inventário da loja, ainda que o profissionalismo cortês de Pâmela não dera indícios de hesitação ao se afastar da cliente. Mas Tânia sabia a razão do seu subterfúgio mal encadeado, ainda que o evitasse. O motivo era a própria gerente. As duas mulheres eram obviamente compatíveis, nutriam uma atração por livros e possuíam uma boa bagagem cultural. Mas por que Pâmela era gerente de uma pequena livraria cuja clientela era populosa, ao passo que Tânia arrastava suas noites em uma biblioteca de aspecto e atmosfera bolorentos? Porque Pâmela era bonita.
Continuava a passar o dedo indicador levemente sobre a superfície dos livros na estante, sem na verdade ler título algum. Não que a gerente fosse muito bonita, mas sua auto-aceitação era perceptível. E dessa nuance Tânia talvez nunca tivesse um traço sequer. Afogando-se em suas amargas constatações habituais, seu dedo indicador – para sua surpresa – encontrara um volume inédito para ela. Era um tomo de aparência simples e folhas de papel reciclado, a julgar pelo tom pardo das páginas pobremente encadernadas. A capa (cinza e rústica) continha apenas um breve título, nenhum autor ou editora. Lia-se, em letras grossas, “A Segunda Beleza”.
Tânia era doutrinada na etiqueta do comércio intelectual, mas aquele volume era demasiado díspar de qualquer outro ali presente. Cedendo a um impulso incomum a seus modos, ela folheou rapidamente o projeto de livro, sendo alvo de uma surpresa ainda maior: paginação incorreta, manchas de tinta titânicas, folhas desiguais...Estava tudo errado. A curiosidade ainda a consumia, fazendo-a abrir o excerto em uma página que parecia haver se desprendido do frágil corpo do livro.
“Mas nem todas são capazes de atingir esse estado por si só. Algumas pessoas sofrem de um bloqueio psicossomático de natureza essencial, impedindo-as de reconhecer a si próprias com a veracidade da razão. Indivíduos com essa disfunção tendem a esconder-se dos olhares alheios, não raro buscando o isolamento absoluto e, por conseguinte, o ostracismo. Reflexos em espelhos e imagens visuais reproduzidas eletronicamente geralmente deflagram crises de subestima que podem levar à automutilação. Em qualquer estágio dessa patologia, a cura por meios clínicos não pode ser atingida, e o distúrbio não regride espontaneamente.
Essa disfunção afeta, primordialmente, a consciência do espírito, e não o cérebro em si. Logo, o tratamento deve ser direcionado ao ocupante do invólucro carnal, um fato que a Ciência Médica tradicional tende a, na melhor das hipóteses, ignorar. Os espíritos incapazes de enxergar a si próprios como seres dignos e belos podem, ocasionalmente, recorrer a espíritos mais iluminados e avançados para trilhar o caminho da auto-aceitação. Essa terapia, temporária e eficaz, é capaz de trazer um conhecimento que, de outra forma, ficará eternamente fora do alcance do indivíduo afetado pelo distúrbio.”
Ao invés de virar a página quase destacada, Tânia, incerta quanto ao que fazer, uniu as duas porções do livro aberto novamente, fechando-o. A perplexidade foi-a preenchendo a partir do momento que visualizou o volume excluído do apanhado dessa livraria – ou de qualquer outra. Com um sorriso nervoso, carregou o objeto consigo e foi ao encontro de Pâmela.
- Como você me explica uma coisa dessas? – disse a cliente, segurando o tomo com ambas as mãos e mostrando a capa para a gerente. O sorriso nervoso de Tânia foi retribuído com uma rápida série de piscadas por parte de sua ouvinte.
- Na verdade, esse é um relato muito interessante, e é baseado em uma narrativa real da esposa de um comunista ativista da Segunda Guerra. Talvez você gostasse, se desse ao livro uma chance.
As feições de Tânia deviam transbordar a perplexidade por cada poro, a julgar pelo fitar que Pâmela lhe dirigia. De início, a bibliotecária achava que a resposta que recebera pertencia a outra pessoa. Porém, uma segunda vistoria no tomo que carregava acabou por minar qualquer alicerce racional que ainda poupasse após o episódio: segurava um volume vermelho e substancialmente mais espesso que o de antes, cuja autoria remetia a Philip Roth. Algo a ver com a Segunda Guerra, efetivamente.
- Tâ – disse a gerente, abandonando o profissionalismo por um momento e repousando uma mão delicada em seu ombro – O que está errado? Por favor, diga-me.
- Hã...Não é nada – retrucou, com um sorriso muito pouco convincente e olhos arredios – Bem, não vou levar nada hoje. Ainda preciso almoçar.
- Tudo bem – respondeu ela, reassumindo sua postura elegante contrariada.
- Até logo, Pâmela – disse ela, entregando-lhe o livro com celeridade e rumando em direção à rua. A gerente sustentava o livro, e fitou-a pelas costas com um semblante permeado de preocupação. Assim que Tânia desapareceu de seu ângulo de visão, recolocou o livro em seu lugar e retomou o serviço da livraria.
* * *
Seis e vinte da tarde. Fôra secretária do Edifício 37 da Barão de Itapetininga desde a hora do almoço, e agora pegava suas coisas para tentar chegar às sete em ponto na biblioteca. Não que ser bibliotecária era o melhor trabalho do mundo, mas dois detalhes eram-lhe especialmente aprazíveis: dificilmente teria que tratar com tipos vulgares, sedentos de peitos e cantadas insólitas; e poderia continuar com sua tão intrigante leitura. Porém, enfrentar uma das horas do rush do metrô não se apresentava como uma idéia nada fortuita. Muito diferente do horário da noite, quando não raro possuía o vagão inteiro para si própria após a Consolação. Bem, o metrô lotado rumo à Biblioteca Municipal era um dos poucos riscos que Tânia se atrevia a correr.
Empurrando as portas pesadas e bem-trabalhadas, já enxergava Marcos ao fundo. Enquanto caminhava até ele, tentou guardar para si sua desaprovação pelo sujeito. Tinha a impressão de haver-lhe torcido o nariz certa vez, mas não tinha certeza se ele a percebera. Enquanto o bibliotecário juntava alguns papéis antes que ela pudesse substituí-lo, Tânia se recordava dos vários deslizes de Marcos em meros cinco meses de serviço. Lembrava-se bem de sua prestatividade com as “pobres moças” confusas, as quais ele ajudava com muita atenção, proporcional ao tamanho do decote. De acordo com Bento, o simpático senhor encarregado da limpeza, umas duas vezes já o vira se amassando com essas moças confusas atrás do fichário de arquivos depositários.
Honestamente, que ele ajudasse adolescentes a se livrar de incômodos acessórios de roupa não a aborrecia. O que atormentava Tânia era realizar o trabalho de dois turnos no seu próprio, já que Marcos nunca cuidara de seu registro um só dia desde que começou a trabalhar lá. Supostamente tinha feito isso desde antes dela conseguir sua troca de turno, mas diziam que ele era o sobrinho de algum Corregedor influente, e provavelmente ficaria no emprego o quanto quisesse. E parece que gostava muito.
Dali a uma hora, já havia posto em ordem a documentação, seus respectivos registros e separado os dois novos volumes recém-chegados. Além dela, apenas um homem trajado em um terno azul-marinho utilizava-se de um alfarrábio condenável, provavelmente algum tratado de Direito arcaico. Bem, não importava de fato. Tânia resgatou seu Nietzsche de dentro da bolsa, e no instante seguinte já deveria ter ido embora há dez minutos. Fechou as gavetas às pressas, provocando grandes ecos na agora deserta biblioteca. O bater metálico dos antiquados móveis pressionava seus ouvidos com força, mas a urgência de sair logo dali era mais influente que o apreço pelo local de trabalho. A dez passos das portas, porém, apresentou-se a ela uma das imagens que Tânia não gostaria de ver à luz do dia, ou muito menos agora em uma biblioteca deserta após as onze e meia da noite: um homem moreno trajando um gorro para o frio cortante do lado de fora cruzou seu olhar com o dela quando este entrou pela porta principal. Um casaco largo não escondia muito bem o porte avantajado do sujeito, e esse fato enregelou a bibliotecária quase instantaneamente.
- Aqui tem um livro chamado Garras da Miséria? - perguntou ele, emitindo uma voz rouca e embargada, quebrando a quietude do lugar com pouca cerimônia. Mantinha as mãos nos bolsos, e ela rezava para que ele efetivamente estivesse com frio...ainda que soubesse estar nutrindo uma esperança tola dentro de sua cabeça.
- Meu senhor...estamos fechados...a partir das nove da manhã a Biblioteca reabre – assente ela, com um indisfarçável tremor crescente na voz. O visitante mantém seu olhar fixo no dela por alguns instantes, sem menção de mover-se.
- Tá...brigado.
Atônita, a moça observa o homem altivo dar meia-volta e sair da frente da entrada, desaparecendo de vista. Após uma série de respirações retidas, ela fecha a porta de olhos cerrados tensamente. Uma Tânia Gonçalves atacada a menos no mundo. A ponta de receio que lhe restara alfinetava-lhe que ele ainda poderia querer emboscá-la em alguma viela...mas ele se foi por uma rua movimentada do outro lado da praça. Caso ele tivesse intenções maliciosas, haveria quase uma dezena de locais melhores para tanto. Passado o evento temeroso, ela acaba de lembrar-se que ainda deve apressar o passo para chegar ao metrô com folga para a baldeação.
Já confortavelmente ajustada em um nada estético assento laranja, ouvia desatentamente o uivo do metrô em alta velocidade, muito semelhante ao coro sacro mantido em uma nota só. Na realidade, pensava no seu Nietzsche e nos abismos abordados pelo autor em determinada porção de sua obra. Deveria se refestelar em seus devaneios enquanto podia, pois muito em breve a fria realidade se ocuparia em trazê-la para mais um fim de noite odioso. Ao fundo, um homem de certa idade abstraía-se com um livreto de bordas vermelhas. Provavelmente uma bíblia. O mesmo robô anunciava “Estação Vila Madalena”, e Tânia ergueu-se sem muito ânimo. Talvez devido ao apuro anterior, ou então aos seus devaneios prolongados, a moça deixara-se distraída o suficiente para prender um dos sapatos no vão entre o trem e a plataforma. Em um impulso involuntário, puxou-o para si, fazendo apenas com que este caísse próximo aos trilhos metálicos dois metros abaixo. Belo fim de noite.
Dirigir-se à cabine de operações semi-calçada fôra uma das poucas experiências inéditas das quais poderia gabar-se, ainda que duvidava que contasse essa história em uma roda de amigos tão cedo. Atendida por uma mulher de seios enormes e um queixo maior ainda, retornou à plataforma após ter informado a operária a respeito do item perdido. Em breve um encarregado viria recuperar o sapato, mas a boa-vontade supostamente não era das maiores após a meia-noite. Sentada em um dos quatro escassos bancos da plataforma, estava próxima à extremidade “falsa” da estação, no espaço para onde os trens eram recolhidos. Avançou o suficiente para vislumbrar a abertura obscura da passagem, e um pequeno sorriso de satisfação momentânea brotou timidamente num dos cantos de sua boca. Apenas fracas e gastas luzes iluminavam pobremente o túnel, lançando alguma forma sobre os trilhos. Ademais, estava tudo escuro. Alargando o sorriso, decidiu que não havia como se encontrar em situação mais ridícula que esta.
- Se olhar muito tempo para o abismo... – sussurrou, fitando aquele espaço secreto no qual desapareciam os trens, retornando apenas na manhã seguinte. Fitou a abertura por algum tempo, entremeando-se em seus próprios pensamentos por um tempo que não saberia julgar. Foi então que aconteceu o previsto por Nietzsche.
Uma onda de som teve origem em algum ponto daquele nada escuro, ganhando força e volume. Quando alcançou Tânia, foi forte o suficiente para que ela tampasse os ouvidos instintivamente, seus joelhos fraquejando devido ao choque. A onda arrastou-se pela estação, fazendo trepidar em conjunto as placas verdes “Vila Madalena” da primeira à última. O som era semelhante ao coro monótono sacro do metrô em velocidade, mas era mais grave...mais pesado. Duas luzes esparsas da plataforma deixaram de fornecer luz naquele momento, e a moça teve tempo de observar as pequenas rochas que forravam o pavimento dos trilhos chacoalharem como se submetidas a um fenômeno sísmico.
- Aconteceu alguma coisa? Está passando mal? – uma voz masculina retirou-a do transe, e só então percebeu que havia caído sobre um de seus joelhos que agora doía muito. Com alguma ajuda, levantou-se enquanto tentava formular alguma frase inteligível.
- Ah...você ouviu isso?
- O quê? – disse o funcionário, devolvendo-lhe o sapato carmim assim que a moça pôs-se de pé.
- Esse ruído...
- Ah! Aquele barulhão, você diz? Bem, uma vez um dos engenheiros me disse que, por esta ser uma estação relativamente nova, coisas assim poderiam acontecer. Deve ser do encanamento se acomodando no interior das paredes. Uma das falhas do concreto é não vedar direito o som.
Enquanto Paulo a levava para fora da estação, contava-lhe que desde a inauguração da estação em 1998 não tinham tido nenhum acidente grave. Comentou a respeito do atraso de reajustes ao qual estavam submetidos os metroviários, e que o pessoal da Paraíso estava convocando os sindicatos para uma possível greve. Por mais que a estivesse ajudando, porém, Tânia era incapaz de dar ouvidos ao operário. Assim que ela se encontrava na rua, ouviu um “Boa noite” do homem, seguido pelo ruído da porta tipo “esteira metálica” descendo sobre a entrada da estação. Significava que já era mais tarde do que de costume.
Apesar disso, não estava com sono. Nenhum. Seria sortuda o suficiente se conseguisse extrair aquele som pavoroso de dentro da cabeça, mas Tânia nunca fôra muito otimista. Um pequeno abajur de plástico velho iluminava tenuemente o quarto, identificando no rádio-relógio de mostrador vermelho que já passava das duas da manhã. Um medo infantil de apagar a luz havia tomado o controle, mas ela pretendia não correr o risco de deixar o quarto no escuro novamente. Gilberto não estava em casa, mas ele era um assunto terciário agora. O importante era manter o quarto iluminado.
* * *
Do dia anterior, apenas a distração permaneceu, dando o receio lugar à frustração. Apesar de estar a uns trinta centímetros dela, Tânia não suportava sequer olhar na direção da bolsa que continha o seu livro inacabado. Na verdade, não tinha tido coragem para retirá-lo da bolsa antes de vir para a Barão. Já havia recebido duas chamadas (uma em público) do Souza, seu chefe avermelhado e pouco educado. Havia negligentemente se abstido de atender a talvez uma dezena de telefonemas, juntamente a uma reunião a qual esquecera-se de avisar o pessoal do quatorze. Não o fazia por mal, era muito competente no mais das vezes. Todavia, a falta de sono e a experiência insólita tornavam-na talvez a pior secretária do mundo nesse dia atípico.
Na biblioteca não foi muito diferente, com exceção da sensação de claustro fornecida pelos vãos escurecidos entre as estantes mais afastadas das mesas de leitura, espalhadas mais ou menos aleatoriamente pelo salão. Tânia percebeu, com certa vergonha, que havia dormido em serviço pela primeira vez na vida, pois entre uma piscada e outra o relógio marcava quase três horas de lapso. Nenhuma viva alma a acompanhava no interior do prédio público, e nessa noite isso a amargurava. Qualquer um, até mesmo o assustador moreno troncudo a faria sentir-se melhor que a solidão.
No interior do segundo vagão do metrô, começara a se sentir melhor. Em parte devido à iluminação abundante do mesmo, outra parte devido à recuperação gradual de seu auto-controle. Como em muitas ocasiões, era a única ocupante desse vagão, pois o trem era o penúltimo ou o último (nunca sabia com exatidão). Porém, desta vez não veio lendo. Considerava pegar algum romancezinho idiota e melado para retirar o estigma Nietzsche havia lhe causado, olhando para a janela que dava para a Estação Sumaré. O trem estava começando a acelerar novamente, mas ela não estava tensa. Havia feito o mesmo trajeto por uns bons anos, e ela continuava ali. Um pouco mais gorda e marcada, mas era a mesma Tânia de sempre. Fitava com casualidade as formas que a velocidade do trem, formava nas paredes concretadas das instalações subterrâneas. Tinha na memória o ponto aproximado em que o funcionário desaceleraria o trem, concomitante com o aviso robótico da estação terminal.
Algo lhe dizia que alguma coisa estava errada, porém. O trem continuava acelerando, e o puro desespero ocupou-se da bibliotecária enquanto a estação terminal se atravessava velozmente, em cores borradas e atropeladas, pelas janelas do lado oposto do vagão. Havia passado direto! Mas como se “pula” a última estação!? O resto dos trilhos não levava a lugar algum. Nem mesmo a última janela do vagão mostrava qualquer sinal da plataforma, o que significava que a Vila Madalena ficara para trás. Absolutamente perplexa, Tânia nada mais fazia senão fitar as paredes de ambos os lados do túnel através das janelas. Não fosse pela iluminação inerente do vagão, ficaria completamente no escuro.
O coração da moça acompanhava a vertiginosa aceleração do trem, antecipando o momento em que este se arremessaria contra alguma parede rústica. Ela só pedia com balbúcias que não doesse muito quando o inexorável fim se apresentasse diante dela. Mas Tânia teve que reconhecer que ainda não era o fim: nem o dela própria, muito menos o das surpresas da noite, já que (a menos que seus olhos a enganassem) o túnel começou a clarear novamente. Era como se houvesse uma outra abertura do lado oposto. O trem começou a desacelerar gradativamente, seguindo o protocolo padrão de operação metroviária, com a exceção que não deveria haver essa estação na qual o metrô agora estacionava!
Assim que o vagão havia sacolejado e finalmente estancado, Tânia pôde observar mais atentamente a estação: à primeira vista, era muito similar à própria Estação Vila Madalena, mas um exame mais demorado acusou algumas diferenças. As mesmas placas verdes adornavam todas as paredes, mas os escritos não eram os mesmos...
- Anel Adamaliv? – disse em voz alta, contendo um sobressalto quando as luzes do interior do trem se apagaram sem aviso prévio. A visão do trem com as portas escancaradas e sem energia era francamente perturbadora. À moça ocorreu, por um instante, procurar por algum funcionário para algum esclarecimento. Mas a estação parecia morta, com escadas rolantes paradas e nenhum chiado dos intercomunicadores, dispostos alternadamente às lâmpadas do suporte elevado. Evidentemente, a única coisa que exprimia movimento ali era ela própria.
Arriscando-se alguns passos, aproximou-se do grande espelho presente numa das extremidades da plataforma, cuja função era auxiliar o motorista a saber quando deveria fechar as portas do veículo. Procurava algum detalhe que a fizesse prender os pés na realidade novamente, nem que fosse este o seu mero reflexo no espelho. Mas fôra esta atitude também infrutífera, pois o que deveria ser normalmente um espelho não o era aqui. Fitando o espelho, Tânia não recebeu nenhuma imagem em troca. Era como fitar uma tela negra sem fundo, um buraco quadrado emoldurado e suspendido por um apoio. Espalmando sua mão livre sobre este, sentia a superfície vítrea com clareza. Contudo, assim que retirou a mão, nem mesmo o calor deixado por ela maculou a superfície.
A inércia da estação começava a atiçar-lhe os nervos, pois o próprio ar parecia estático. Dentro em breve a idéia de caminhar até a estação verdadeira não pareceria mais tão absurda. Mesmo que ficasse trancada do lado de dentro da Vila Madalena, ouvir o ruído dos carros ocasionais cortando o asfalto úmido lhe faria bem. Porém, decidiu como última tentativa caminhar ao lado oposto da plataforma, na esperança de ser captada pela câmera de segurança. Tânia não estava exatamente confiante, mas o trajeto até a câmera era bem mais modesto que a caminhada até o outro lado do túnel. Uma olhada curiosa ao relógio suspenso não foi mais vantajosa que qualquer de suas idéias até o momento: o relógio analógico fôra substituído por um círculo do mesmo negrume do “espelho”.
Passadas ritmadas, seguidas pelo eco dos saltos de Tânia preenchiam todo o vazio daquele espaço com abundância. As passadas cessaram quando a bibliotecária fitou com incredulidade algo sobre um dos bancos no lado oposto. Cumprindo mais uns dois metros com hesitação, ela percebera que havia mais alguém ali. Normalmente agiria com cautela, mas lhe era genuinamente prazeroso ver outra pessoa. Começou a aproximar-se mais rapidamente, mas estancou uma vez mais quando estava a meros dez metros da ocupante de um dos bancos intermediários. Tânia piscou diversas vezes, fitando a outra silhueta cada vez mais perplexa. Nesse momento, a outra pessoa (que lixava as unhas da mão direita) interrompeu-se, batendo displicentemente com a mão sobre um dos bancos, convidando Tânia. Incerta sobre o que fazer, a moça aproximou-se da estranha vagarosamente, ainda incrédula...pois a estranha era assustadoramente semelhante a ela própria.
Havia algumas diferenças, entretanto: a outra possuía menos vincos no rosto, como se fosse anos mais jovem. E os olhos também eram diferentes, ainda que em nenhum atributo que Tânia pudesse definir...apenas eram diferentes...mais frios. Cabelos castanhos, maçãs do rosto, lábios modestos...o resto era uma perturbadora réplica dela mesma.
- Vamos, querida, sente-se! O que não falta aqui é lugar – disse a outra, causando uma outra onda de surrealidade ao ouvir sua própria voz pedindo que se sentasse. Mais pelo choque que por concordância, Tânia ocupou um assento, deixando uma cadeira de distância entre ela e a outra.
- Você não é muito boa em puxar conversa, não é? Bem – disse, guardando a lixa em uma bolsa azul-claro e fitando Tânia com um olhar casual – Sou Tina. Como vai a vida?
- Ah...oi. Sou Tânia...que lugar é esse?
- Quer dizer que você nem sabe? – respondeu Tina, com um esgar de desleixo, cruzando as pernas de uma maneira provocadora. O que surpreendeu Tânia é que ela olhou para as pernas de Tina com interesse.
- Isso aqui é um dos milhares de locais propícios, meu amor. Aqui é onde a tecnologia agrediu a natureza o suficiente, deixando nichos juntamente com os detritos de eras de harmonia – disse Tina, com súbito interesse no teto – Um lugar muito aconchegante, e que nós adoramos.
- Nós? Há mais alguém aqui? – disse a moça, circundando seus arredores com um olhar rápido. Quando volveu os olhos para Tina novamente, esta a encarava com um misto de seriedade e admiração.
- Sempre quis te perguntar isso, gata: como você consegue?
- Consigo? Como assim, consigo o quê? – respondeu Tânia, fazendo um genuíno esforço para manter seu olhar longe das pernas de Tina.
- Viver esse lixo de vida, dia após dia! Encontrar aquele verme pançudo suado e sempre bêbado, traçando a tiazinha do onze...
- Isso não é verdade! Ele não é assim... – respondeu Tânia, subitamente elevando seu tom de voz.
- Poupe-me! Você sabe melhor do que eu. Sabe até que ele ia cheirosinho pro apartamento dela. E vivia como um porco com você. Eu particularmente sei que você não é idiota. Só fraca – Tina divertiu-se com a última palavra, pronunciando-a em tom jovial – Apesar de ser ridícula, gosto de você.
- Quem é você pra falar assim comigo!? Como sabe dessas coisas!? – gritou a plenos pulmões a moça, provocando um suspiro da parte de Tina.
- Olhe, na verdade não importa. Aprenda a reconhecer seus verdadeiros amigos, acabei de te salvar daquela merda que você chamava de vida – disse ela, abrindo a bolsa e jogando algo próximo aos pés da bibliotecária. Era um livro, o seu livro – Chega de se afundar nessas coisas velhas e sem graça. É vergonhoso como você fugia dos outros pra enterrar essa testa de ferro em porcarias sebosas – disse ela com um sorriso de descaso, cruzando as pernas para um outro lado, olhando de soslaio para o Nietzsche no chão – Esse pelo menos lhe serviu para alguma coisa.
“Vou lhe dar um tempinho pra pensar na vida”, disse Tina, recuperando a lixa de dentro da bolsa e cuidando da mão esquerda. Tânia estava paralisada pela enxurrada de detalhes de sua vida íntima, aparentemente tão familiar para Tina. Observava o Nietzsche imóvel junto ao seu pé esquerdo, sem menção de dobrar-se para erguê-lo. Sua cabeça doía muito, e somente com muito esforço conseguiu reunir concentração para fitar a outra novamente. Ainda lixando as unhas, Tina agora lhe enviou o mesmo olhar provocativo de antes, pendendo um pouco a cabeça para um lado. Aterrorizada pela sua reação, Tânia sentia vontade de estar com ela, bem perto dela para senti-la junto de si. Não, não era bem isso. Ela não desejava a fundo tocar naquelas pernas carnudas, ou aquele rosto provocante. Ela queria ter para si aquilo tudo, queria que fossem dela. Não que Tânia não fosse uma mulher bonita: possuía uma beleza natural, sem necessitar de quilos de maquiagem. Mas faltava-lhe a atitude para impor essa beleza aos outros, e essa falta de atitude sempre lhe arranjava esses perdedores de quinta. Vendo como Tina era parecida consigo, mas ao mesmo tempo tão distinta, nunca em si enxergou uma vontade tão grande de ser...diferente.
- Muito bem, sempre disse que você não era idiota, viu só? – disse Tina ainda lixando as unhas, sem desviar seu olhar para Tânia – E então, que me diz?
- Você tem...razão. Eu fujo de tudo. E de todos – disse a moça, soluçando baixinho e contendo polidamente algumas lágrimas.
- Ora, não chore, meu bem... – disse Tina, pondo de lado a lixa e puxando Tânia gentilmente para perto de si. Puxou-a para uma cadeira adjacente, dobrando-a de tal modo que a cabeça de Tânia se apoiasse no colo da outra. A moça estava fragilizada demais para impor alguma resistência. Afagava-lhe os cabelos com delicadeza – Chorar você aprendeu que também não adianta. Chorar é recorrer a uma boa-vontade inexistente no coração dos outros, e você sabe disso – disse, fazendo pequenas ondas com os cabelos de Tânia, que soluçava baixinho.
- O que você deve fazer é mostrar pra eles todos quem é a Tânia – disse ela, sorrindo – Deve dar um basta em todas essas aflições pelas quais você tem passado. Hmmm? – ergueu a face da moça até conseguir fitá-la.
- C-certo... – assentiu ela, languidamente.
- Mas, querida... – disse Tina, sorrindo de uma maneira maternal – Veja o seu estado. Creio que você não pode sair desse jeito. Iria apenas prejudicá-la ainda mais. Não gostaria de vê-la torturada mais do que já foi, meu amor.
- Como assim? O que faço então?
- Bem – disse, procurando uma entonação particularmente doce na voz – Eu poderia ir na frente, preparar o terreno pra você, essas coisas...O que acha? – terminou, abaixando a cabeça em um gesto ambos condescendente e tímido.
- Ir na...frente? Que quer dizer?
- Você sabe. Ficar no seu lugar lá fora, enquanto você se recupera aqui em segurança. Assim, quando tudo estiver nos eixos, você pega sua vida do jeito que sempre sonhou. Ao mesmo tempo, eu mostro aos outros quem a Tânia é de verdade. Você sabe que sou capaz.
- Um momento...você vai lá pra fora e eu fico aqui, nesse vazio? – disse, piscando várias vezes e erguendo-se em um movimento brusco – Este lugar está morto! Não pretende que eu fique voluntariamente nesse buraco!
- Você tem razão, em parte. Sim, este é um lugar vazio. Vazio de todas as humilhações que você já passou e ainda vai passar. Vazio de traições, de mentiras e falsidade. Aqui, você vai ter todo o silêncio que sempre internamente desejava para si. O quanto quiser.
- Mas...não deixa de ser uma outra fuga. Mais sofisticada, sim, mas apenas mais uma delonga – diz ela, com o cenho torcido em concentração – Admito que ficar um pouco em paz do mundo é-me um pouco tentador. Mas, como você me disse, preciso encarar as coisas!
- Olhe – disse Tina, erguendo-se umedecendo os lábios com uma calma transtornada – Sim, você deve. Quando estiver pronta.
- E quem julga isso sou eu, não? – disse, um tanto exaltada.
- Não, anjo. Aqui quem manda sou eu. E eu digo que você está longe de estar pronta. Para qualquer coisa.
- Pois eu digo que não preciso que me digam o que fazer! Lá é o meu lugar, e sou eu quem vai voltar! – disse Tânia, resoluta, esquecendo-se da maioria de seus pertences no afã de sair de perto daquela sua cópia odiosa.
Tomada pela calidez contestante de uma efêmera revolta, Tânia pôs-se a perambular por alguns momentos, finalmente dando vazão a toda uma sorte de sensações que aquela coleção de absurdos a fizera passar. Terminou por estancar uns dez passos além do assento o qual ocupara há pouco, pois parecia não haver para onde rumar. Agora entendia porque Tina não havia demonstrado qualquer menção de segui-la, e a compreensão deste fato apenas provocou ainda mais sua irascibilidade já bem inflamada.
- Você não parece muito propensa aos meus argumentos, querida – atiçou Tina, recolocando um pequeno espelho portátil dentro da bolsa, após checar a disposição de sua sobrancelha esquerda uma última vez. A parcimônia com a qual regia todos os seus movimentos agredia a serenidade de Tânia cada vez mais profundamente, e, quando ambas cruzaram os olhares, era evidente que Tina estava tirando bom proveito desta situação.
- Não mesmo! – disparou Tânia, cingindo os dentes impetuosamente.
- Muito bem, se é o que quer...
Pela primeira vez durante o encontro das duas, Tina enviou à outra um olhar carregado de algum sentimento distinto de agudeza ou audácia. Era mágoa, ou algo muito próximo disso. Tânia viu-se subitamente restabelecida ao seu humor natural, pois a tristeza que aqueles olhos irradiavam haviam dispersado toda a animosidade que mantivera as duas mulheres afastadas. Mas não houve muito tempo para inquirir a razão de tal mudança de atitude, pois algo estava acontecendo naquele espaço particular.
Havia uma espécie de ruído secundário, semelhante ao de uma máquina pesada que pode ser ouvida a uma distância considerável. Um tremor , sutil de início, irradiava-se pelas placas nas paredes e no chão, logo se moldando num rompante que obrigou Tânia a cobrir instintivamente seus ouvidos. Ouvindo seus próprios pensamentos em meio ao miasma sonoro, ela se indagava o que poderia estar acontecendo, mas foi prontamente respondida pelo que se seguiu.
No próximo instante, não havia mais um ruído sequer, permeando as aflições de Tânia com o temor de que ela teria perdido a audição. Esta hipótese foi refutada assim que ouviu sua taquicardia, ribombando em seus ouvidos em uma cadência frenética. Uma explosão sonora e metálica soou novamente, mas desta vez de maneira localizada e atrás de si. Ao virar-se, ela percebeu que uma das placas informativas, afixadas na parede de concreto, havia ido ao chão com grande estardalhaço. Entretanto, não foi a placa que fez com que o semblante de Tânia se anuviasse em puro terror, e sim o motivo para o desprendimento do objeto. Algo corroía as grossas paredes, deixando em seu lugar o mesmo breu que já englobava as extremidades da estação espectral. Inconsciente de seus próprios movimentos, ela correu na direção dos assentos, onde Tina se mantinha resoluta e, exceto pelos olhos pousados em Tânia, imóvel.
- O que...está havendo? – resfolegou Tânia, espalmando-se em um dos assentos para sorver o ar com mais facilidade. Fitou de soslaio a estação, da qual iam ao piso encerado placas de metal e pontos de iluminação, trazendo faíscas e destroços à já bem avariada plataforma.
- Apenas o inevitável, Tânia. Para alguém tão letrada como você, sempre achei que conseguiria decifrar a situação, caso aqui nos encontrássemos – disse Tina, fitando a decrepitude galopante que agora dizimava as escadas rolantes estacionárias.
- Se você sabe tanto assim, então tire-nos daqui! – vociferou ela, atingindo o limiar do autocontrole quando por muito pouco não fôra soterrada sob uma grande haste de metal. As palavras de Tânia, arremessadas com sofreguidão e desespero, trouxeram à outra uma espécie de sorriso condescendente e maternal.
- Você poderia ter pensado nisto um pouco antes, querida. Havia meios de voltar para o exterior, se não tivesse sido tão irredutível.
“Porém”, prosseguiu Tina, “como eu disse, você não estava pronta para muitas coisas. Mesmo os dilemas os quais uma criança é capaz de superar agigantam-se a proporções colossais para você. Você me alimentava todas as vezes em que se ressentia pela desenvoltura dos outros em público, pela facilidade com que todos pareciam relacionar-se entre si. Cada vez que desviava por um caminho mais longo, com o intuito de se fazer esconder de conhecidos, eu estava vigiando.
Curiosamente, eu sou o reflexo da pessoa que você sempre quis se tornar, mas nunca se provou corajosa o suficiente para mudar. Sempre na superfície, observava você menosprezar-se perante os demais, fugindo dos conflitos que a fariam evoluir. Evidentemente, essa situação não poderia prosseguir indefinidamente. Então, sua própria psique fez com sua personalidade o que muitas pessoas já fizeram, em todas as fases de sua existência patética: rejeitaram-na.
Francamente, achei que, deste ponto em diante, as coisas iriam finalmente melhorar, já que nem sua mente a aceitava. O problema é, apesar de ser expulsa da porção consciente de seu cérebro, seu senso primitivo de preservação também impediu que eu entrasse em seu lugar. E foi isso. Ao agarrar-se com unhas e dentes naquilo que você chamava de ‘vida’, Tânia, você acabou por boicotar sua última chance de continuar no seu mundo. Seu corpo não quer sua débil personalidade novamente, e você não permitiu que eu a substituísse.
Por outro lado, finalmente conseguiu algo para se arrepender genuinamente. Este palco, representado por uma miragem da plataforma do metrô, foi um subterfúgio para conversarmos e resolvermos nosso assunto. Foi engraçado você ter escolhido uma estação, pois poderia ser qualquer coisa, como um castelo bávaro ou uma festa de aniversário. Veja até onde sua timidez se interpõe, obrigando-a a criar uma plataforma deserta de metrô. Deprimente. Enfim, nenhuma de nós duas pode voltar ao seu corpo, e o tempo acabou.
Não me olhe assim, minha cara. Garanto que você não irá pensar um momento sequer sobre isto quando tudo acabar. Pensar, inclusive, não será mais um privilégio de nenhuma de nós. Meus parabéns por isso. Não existe sucesso ou fracasso completo, ainda que você tenha tentado com porfia chegar a um dos extremos. Bem, adeus para nós.”
Enregelada pelas palavras ríspidas e objetivas da outra, Tânia perdera o interesse pelo cenário que se desfazia ao seu redor. As revelações que lhe foram ofertadas a enclausuraram no labirinto de suas próprias emoções, erigido com todas as memórias das quais nutria um profundo remorso, incapaz de abandonar esta prisão até que a corrosão a atingisse também. Quase tudo eram trevas ao seu redor, enquanto o subterfúgio de sua mente, impossibilitado de manter-se por um instante a mais, decaiu a um estado dos mais fundamentais: a pura e perfeita ausência.
Tânia virou notícia de quinta página no Diário Popular, que registrava “uma mulher catatônica no metrô, na noite de ontem”. Segundo o tablóide, ela fôra encaminhada para uma clínica especial, absolutamente não-responsiva a estímulos de qualquer natureza. Encontra-se na Santa Casa de Misericórdia para uma possível recuperação de sua condição original. Contudo, mesmo que não se recuperasse, os operários da estação Vila Madalena teriam a história da mulher catatônica para passar adiante. Bem mais interessante que falar da greve. Definitivamente.