A poesia é um anti-mundo perfeito
Consegui entrar num tempo paralelo, por uma brecha que vi certa vez. A fissura que se apresentou não era de luz, ao contrário, era escura, como se emitisse brilho inverso, um buraco negro, que rasguei como a um véu e entrei. Fui ver esse mundo que se apresentou e, a partir deste dia, perdi muito da fé que eu tinha, de acreditar no concreto, na pedra, no bronze. Na realidade não sai do lugar, não fui a nenhum outro mundo, só afastei dos meus olhos a névoa, uma densa névoa a qual chamamos de cotidiano.
Desse dia em diante, vi a vida nas suas cores verdadeiras e concluí: o ser humano é um predador feroz mesmo e o nosso planeta vai ser destroçado até a última árvore, até o último sopro de oxigênio. O ser humano não mede conseqüência e a sua fome destruirá tudo. Fiquei chocado, como diante de um filme de ETs, dada a simplicidade de tudo, de uma explicação tão simplória, mas que nos escapava toda hora. Dali pra frente vi o mundo como outros olhos, por outra ótica e, confesso, não fui mais o mesmo, quase enlouqueci.
Fui tomado pelo desespero, quando subi à torre de babel, falei com os povos e não me fiz entender, fiquei louco lá no alto, pois não encontrei a saída, só gente perdida no seu dia-a-a-dia, fazendo conta, reagindo, subsistindo, tentando sempre tirar o outro do lugar para ocupá-lo, essas coisas que todo mundo sabe, vê e faz, mas que acha normal. Mas na realidade é raiz de todo o mal: competição, disputa, jogos de guerra e a própria guerra, a pior, a surda, sem bombas, diplomática. A ditadura do progresso, da indústria, do PIB.
É claro que não conto aqui nenhuma novidade, é só uma experiência vivida, de fato, uma fábula fabulosa, real, experiência única e que muitos já tiveram e muitos terão, bastará apenas ter a sorte ou azar de penetrar numa fenda atemporal destas que me meti. Mas, como fazer para suportar tudo, sem enlouquecer? Foi aí que descobri uma possibilidade: O amor. Vi que estava só no mundo, apesar de viver em família, trabalho, mundo social, mas que na realidade era um só, um sozinho com minha dor do mundo. Precisaria de alguém pra mim, mas eu nada sabia disso, foi uma necessidade que começou a me germinar e cresceu, vazou pelos poros, pelas bocas, uma floresta interna que criou vida, bichos, fera. Eu que já havia vivido sem traumas amores que me apareceram, que se acomodaram no meu peito, amores que foram ficando pelo caminho ou que seguiam junto.
Mas desta vez senti um ímpeto: queria um amor diferente, mas sabia que seria difícil. Pensei que só inventando um outro mundo para tanto, porque era algo intenso, inexplicável. Com pincéis e cores fortes desenhei esse mundo e nele me inseri. Como se eu fosse outra pessoa, acordei um dia, e passei a habitar o excepcional: outra casa, outra rua. A poesia já havia sido inventada, é claro, mas carreguei nas cores, e parti por ali, em busca da amada. Não queria fuga, queria, sim, uma realidade, mesmo que inventada.
Como não tinha nada, outros meios, semeie palavras por aí. Queira uma pessoa que soubesse das mesmas coisas, que visse o mundo assim como eu, pois era a única forma de criar diálogo, de não ficar falando de trabalho, do caminho invariável do dia-a-dia, dessa luta genocida da qual participamos e nem sabemos. Essa pessoa me chegou numa primavera e veio forte. Foi logo me conquistando com suas palavras corrosivas, explosivas, detonadoras, cheias de energia. Aos poucos nós dois fomos habitando esse mundo.
Criamos cenários imensos, uma praça com crianças, velhos e flores, e casais de namorados, onde prevalecia a pureza de uma fonte, um jardim com flores amarelas e vermelhas, um rio mais a frente, corredeiras, barcos e, finalmente, o mar, uma praia e muita alegria, verde. Recriamos o Éden, mas liberamos o amor, peculiar, onde havia riscos e espinhos também, labirintos e precipícios, com cordas estendidas como única saída, pontes de cordas e muitos bichos, todos livres e soltos.
Galgamos montes, torres, descemos vales. Houve resgates, passamos por muitas pontes, obstáculos, enfrentamos nevascas, tudo, numa busca intensa de um lugar próprio para o nosso amor. E aí não economizamos nosso corpo, nos extenuamos, jogamos os manuais da moral fora, rompemos barreiras, nos demos de todas as formas e jeitos, todas as posições. Exaltamos o gozo, fizemos escândalos, sinceridades escancaradas, imperdoáveis para a moral e os bons costumes.
Nesse intento, contratempos, gente no caminho, atravessando, querendo partilhar da nossa loucura, colocando empecilhos, caminhando junto, perto, ao largo e por fim dispersos. Aportamos no deserto, único lugar possível para a solidão a dois que construímos nos intervalos da vida.
Tínhamos ciência que estávamos apenas vivendo poesia, só que nos inserimos nela, como se isso fosse normal e natural. Fizemos um mundo à parte, sem abalos sísmicos, mas com muitas tempestades, canções, desafios, noites escuras, manhãs de sol, contrastes. Espalhamos muitas histórias por ai sobre nossas experiências e muita gente acreditou, seguiu, foi atrás, quis esse mundo. No fundo, também nós acreditamos nisso. Havíamos criado uma possibilidade, uma anti-brecha, uma pequena bolha de luz.