Usina de reciclagem

- Amarrou o tio no armário?

Logo ele acorda

Rói a corda

Se destranca

Solta a franga

E se emancipa

Jorra herança

Por todas as vírgulas

Por todas as tripas

Baixa-lhe a ripa

Sobrevive

Sob a tutela

Da marquise da janela

Paga a fiança

Como n'último gôzo de esperança

Que a terra frutifique

Mas, não há paz

Já não há mais

Jamais! Destemperou o juízo elucidado

Sobrou só sacanagens

Na mesa enferrujada da varanda

E os girassóis amarelos

Salpicados agora de vermelho vivo

Caem sob folhas verdes

Que disfarçam a cena do crime

E o luto que era clássico

Deixa de ser santo

Volta a ser o alento mórbido

Do teu julgo de criança

Desconfia o terapeuta, o padre e o escrevente

Da sua cena comovente

Estraçalhando centauros entre os dentes

E o que ele prova?

Nada

Nem o olhar serpente da Naja

Nem o arguto e traiçoeiro vulto por trás da janela

O jarro... ah o jarro...

Espatifa-se em mil pedaços

O barro estava roto, como os panos sob seus pés

Crava as unhas na rocha, desse soalho que o sol desbota

Olha, a geladeira está torta

Não há cerveja, nem água, nem nada

Só sede

Só o feixe dos bambús no quintal

E o resto de comida, na lata esquecida, há semanas no fogão

A saliva escorre quente, pelo canto dos lábios rachados pelo ódio

Chega a ambulância

Algum vizinho descrente, não comeu da semente que você

Ardilosamente jogou em seu umbral

Os enfermeiros descem, dançando rock , trazem a maca

Levam o defunto esquecem as velas

As beatas lavam a escadaria da igreja

Ninguém olha pra você, é como se não existisse

O padre organiza a passeata

Os pais -de- santo enrolam seus alinhados turbantes

Separam os búzios, runas, os oráculos

As paredes da cozinha desabam, sem ruídos, apenas somem

Fica o telhado

Entoa uma ode, uma voz que vem de não sei onde

Chega o carro funerário, descem os empregados, já acostumados, impregnados de frieza humana

Lhe oferecem um trago, da cachaça mais barata.

Você aceita

Tiram suas vestes, as colocam esticadas sob as flores de plástico que ornam o caixão

Sua nudez pálida, sem as sandálias, te fazem ficar em pé novamente

Pintam seus lábios com batom

Penteiam seus cabelos e te deitam na banheira

Com leite de cabra e água de cachoeira, do ritual de purificação

O suor gélido transpassa seus poros, inundam sua pele

A lentidão dos ponteiros do relógio da sala

Não passam... não passam...

Seus olhos continuam fechados

A cidade desaparece

Só permanece o seu corpo, a água da cachoeira, o leite de cabra, a Banheira inundada

O prefeito inaugura na praça a estátua de um cão petrificado

Agora some também o telhado

você respira aliviado

Me aproximo do seu ouvido e sussurro: Só não te dou um beijo, porque essa cor de batom não combina com meus lábios

Jaqueline Serávia
Enviado por Jaqueline Serávia em 30/03/2010
Reeditado em 26/08/2011
Código do texto: T2166803
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