O Dragão de mil bocas
Mesmo quando estava no Japão, nunca tive acesso à narrativa do escritor japonês, Kawabata Yasunari, em que ele conta a história de um velho que, sem poder fazer sexo por causa da idade avançada, passou a freqüentar um prostíbulo em que ele passava horas apenas admirando a beleza das mulheres. E apesar de não conhecer essa história a fundo, e nem de longe ter a idade do personagem de Kawabata, era assim que eu me sentia quase todos os dias quando começava meu expediente de garçom num dos puteiros mais caros da Ásia, o Club Mate, localizado numa propriedade particular que recebeu o nome de Virgin Island, a pouco mais de 200 km de Taiwan.
Cheguei aqui depois de uma mal sucedida tentativa de emprego em Okinawa e, sem ter conseguido nada por lá, fui ainda mais para o extremo sul, até a ilha de Ishigaki. Trabalhei um tempo como lavador de pratos num restaurante até que me envolvi com uma hippie da Suécia, Anne, que atualmente vive em Bangladesh, foi ela quem me passou o contato do gerente desse prostíbulo em Virgin Island.
Conversei com o gerente, que era japonês, e ele me disse que precisava de alguém que conseguisse se comunicar pelo menos 50% em japonês e inglês. Após uma breve conversa nas duas línguas, ele me passou as instruções para que fosse de barco até o porto da reserva natural de Iriomote e procurasse por um australiano que ia me levar - também de barco - até Virgin Island.
Quando me encontrei com Allen, o tal australiano, surfista, pescador e casado com uma bela nativa de Iriomote, já estava tudo acertado. A viagem, mesmo com a força das ondas, que quase fez o barco virar em alguns trechos, durou cerca de treze horas. E a visão daquele paraíso perdido no meio do oceano pacífico parecia me levar para um lugar onde talvez a sorte pudesse me encontrar, ou, pelo menos, me esconder da onda de azar que me perseguia por algum tempo.
Na chegada, o gerente me esperava no porto, ele estava sozinho, e trazia um maço de papéis debaixo do braço com as regras do Club. E mesmo com uma lista infinita de impedimentos, a lei mais importante – que ele fez questão de me dizer já sem o mesmo sorriso aberto que ele havia me recepcionado na chegada -, era o fato de alguém se envolver com uma das mulheres da ilha. Além da expulsão imediata, a infração poderia garantir uma boa surra. Pois a principal preocupação deles era de que o relacionamento com algum homem do Club pudesse atrapalhar o desenvolvimento das garotas no serviço.
Segundo Allen, os donos da ilha acreditavam que, quanto mais carentes as mulheres estiverem, mais atenção elas podem dar aos clientes. E sem nenhum homem na jogada, elas ficam muito mais carinhosas, assim, o laço afetivo delas com os magnatas só aumentava, fazendo com que eles fizessem verdadeiros malabarismos para ir pelo menos uma vez por mês até o paraíso de Virgin Island.
Uma ida até o Club Matte, saindo de Taipei, ou de Tokyo, não sai por menos do que U$ 1000, fora as despesas dentro da ilha, que sempre ficam entre U$ 2000 e U$ 3000. Nesse preço, já estão incluídos o programa sexual, a hospedagem de uma noite, bebida, comida e um passeio com direito a acompanhante para conhecer as belezas da ilha. E assim que cheguei dentro do prédio de sete andares, onde funcionava o Club, cerca de cinco garotas estavam tomando banho de sol na beira da praia. A visão era insólita, todas lindas, bronzeadas, de todos os lugares do mundo, ali, naquela praia de areia branca, fina e águas verdes ponteada por coqueiros, sem nenhum homem por perto.
E foi a partir dessa cena, que eu comecei a me sentir como o personagem de Kawabata. Todas aquelas garotas, com corpos e rostos que não deixavam a desejar a nenhuma passarela do mundo, confinadas ao desejo obrigatório do sexo pago. Proibidas de amar quem quer que seja durante todo o tempo em que ali estivessem. E a esperança delas de conhecer algum cliente mais interessante era praticamente nula, já que a maioria dos empresários e executivos que freqüentavam o Club era de velhos caquéticos e gordos asquerosos, daqueles que, talvez, nunca conseguiram conquistar uma mulher sem usar a carteira. Aquela frase de Nelson Rodrigues cai muito bem aqui. “Dinheiro compra até amor verdadeiro”.
Guardei minhas coisas no quarto onde ia morar, e fui dar uma volta com o gerente pela ilha. Ele me levou até a boate do Club, onde iria trabalhar como garçom. E como havia chegado cedo, comecei a empreitada naquela mesma noite. Peguei as roupas com Omar, um israelita que era o chefe de cozinha, e ele começou a me ensinar o serviço. Nas primeiras horas, com a boate recém aberta, as garotas começaram a chegar, vestidas impecávelmente em trajes de gala. A produção daquilo tudo era cinematográfica. Omar, percebendo meu fascínio inicial, me disse para ir se acostumando, pois a partir de agora aquele iria ser meu cotidiano. Mas a minha fascinação não era apenas pelas mulheres, todas maravilhosas – que, a exemplo de Kawabata, me era permitido apenas admirar -, mas sim, pela visão literária que tudo isso poderia oferecer nessa minha constante fuga do inferno interior.
Minha missão era simples, teria que ficar perto das mesas, e atender ao chamado das garotas na hora em que o cliente pedisse alguma bebida. O melhor de tudo é que, por causa da minha proximidade com as mesas, eu passava a noite inteira ouvindo todos os tipos de conversas, e, ao mesmo tempo, presenciando cenas inacreditáveis de como o comportamento humano se supera na busca pela sobrevivência. Nesse quesito, as putas de Virgin Island eram de um profissionalismo que me fazia acreditar que o Club Matte era o Circo de Soleil dos puteiros.
O camarada, que, cheio da grana, e vindo de uma carência dos diabos desembarca naquele lugar, dali nunca mais quer sair. A atenção das meninas era de entrega total, e em menos de dez minutos qualquer trouxa daqueles se apaixona de forma fulminante. Elas eram tão boas naquilo que muitos caras já tinham perdido totalmente a noção, e acreditavam de todas as maneiras que elas realmente gostavam deles.
Mas apesar da proibição de relacionamento com as mulheres, nada dizia que a gente não poderia se aproximar. E quando um dos clientes ia ao banheiro, era a hora que eu aproveitava para conversar com as garotas. E apesar de serem putas do mais alto grau de “mercenarismo”, elas tinham no senso de humor talvez a única escapatória para curtir um pouco daquela situação. E era só o cara levantar para elas puxarem assunto: “Nossa, que cara mais nojento. Pegajoso!”. “Parece até que nunca viu mulher”. “Você viu? Eu só encostei a língua bem de leve na orelha dele e ele foi se trocar no quarto porque gozou nas calças”.
Comentários como esses eram sempre interrompidos por gostosas gargalhadas, que se faziam ouvir por toda a boate. Dando um tom de libertinagem ao lugar.
Não demorou muito e eu já estava completamente ambientado ao meu novo local de trabalho. As meninas eram todas muito comunicativas e adoravam ouvir histórias sobre o que estava acontecendo do lado de fora da ilha. Na primeira semana, as noites foram tranqüilas, aprendi rápido minha função, mais pela necessidade do que pelo dom. Nos últimos tempos, tenho feito tanta coisa e mudando tanto de emprego, que já não tenho receio de encarar mais nada. Meus objetivos se perderam, e nada mais será como antes, ser um jornalista ou escritor, naquele momento, já nem fazia parte do script. Pois minha única preocupação era a sobrevivência. E com as últimas porradas, aprendi de que nada adianta sonhar sem ter o que comer, sem ter onde morar, ou sem ter o que vestir.
Após algum tempo fora do Brasil, conheci muita gente interessante, assim como muita gente deprimente. Mochileiros, estudantes, trabalhadores, enfim, todos os tipos que cruzamos numa estrada. E uma das coisas mais importantes que eu percebi, era de que os que tinham passado pelas piores coisas, eram os que tinham um olhar mais forte, uma presença mais marcante, uma conversa mais consistente. E alguns estudantes que cruzei, que viajavam com a ajuda familiar para estudar inglês ou fazer especialização, eram os que tinham uma áurea mais leve, os olhos mais brancos, a beleza mais pura. Mas, mesmo assim, nós, os malditos, temos uma grande vantagem sobre eles: estamos vacinados contra tombos, turbulências e tempestades. Vivemos um mundo em que nada mais nos impressiona, e mesmo estando completamente fodidos, somos bem mais sensitivos.
Basta prestar atenção. Quando a chance aparece, alguns simplesmente agarram, nós, do outro lado, temos um procedimento diferente, mordemos com força e ainda cravamos nossas unhas na garganta do destino. É um amor muito mais louco. Sem aquela sensação que os “normais”, sempre com algumas notas para gastar num barzinho da moda e um lugar quente para dormir longe de casa e outro lugar para voltar quando a aventura “paitrocinada” termina, jamais vão ter.
Os marginais têm a consciência muito mais radical de que os amores servem para serem consumidos com força, com loucura, com acidez, com psicodelismo, com vida e, principalmente, com sutileza.
É por isso que eu me identificava com a vida que aquelas mulheres tinham que levar. A maioria, assim como eu, preferiria estar numa cidade qualquer do mundo levando uma vida normal, e, como a faixa etária da ilha era entre 20 e 30 anos, o objetivo comum era estudar para que tivessem uma vida mais auto-suficiente no futuro.
Geralmente, todas as meninas de quem eu fiquei amigo eram de origem pobre, e estavam ali para juntar dinheiro suficiente para um curso, seja na Austrália, na Itália, na França, nos Estados Unidos ou no Japão. Sendo assim, nós todos tínhamos um sentimento que nos unia naquele lugar - que poderia ser o inferno para muitos -, mas que, para nós, era a simples e pura chance de sobrevivência. É por isso também que jamais deixávamos a oportunidade de um amor voar pelos ares, seja de um amor alucinado por outra pessoa, ou mesmo de um amor explosivo que nos guia em direção aos sonhos mais absurdos. Já que, nessa vida onde cada vez menos gente têm se deixado alimentar por paixões devastadoras, e onde prevalecem os amores plásticos, estéticos, e descartáveis pelo primeiro rostinho bonito que aparece, somente o amor ensandecido, dos malditos e sonhadores é que não ficará em vão. Amamos quem quiser amar e, sobretudo, quem nos quiser amar. E enquanto esse amor estiver vivo. Pode ter certeza, sempre vamos amar.
Virgin Island – 8 de fevereiro de 2009 – 15h05