Barril de Pólvora V - Cochabamba - Machu Picchu
Cochabamba
Nas doze horas de viagem até Cochabamba, passei quase o tempo todo sendo aterrorizado pela coceira. Nove da noite. Fui parar no lugar mais obscuro de uma cidade que é linda durante o dia. E o ar fresco das montanhas de Vallegrande dava lugar a um calor seco, úmido, fortalecendo ainda mais o efeito dos carrapatos. Com a ajuda de um taxista, achei uma pensão no centro da cidade: cabulosa. Gente estranha, movimentos estranhos, medo eminente de assalto a qualquer hora. Durante o trajeto até Cochabamba, muitos me disseram que esse era um dos lugares da Bolívia onde se deveria ter um cuidado extremo quando se está sozinho.
E a órbita do albergue já confirmou o aviso. A coceira estava insuportável, e minha saúde dava sinais de alerta. Decidi encher a cara para ver se ficava um pouco mais aliviavado, e achei um bar a poucas quadras. O lugar estava tomado por nativos. Um garçom cochabambino veio me dar um toque, “não saia do bar sozinho, a melhor coisa a fazer é pegar um táxi e cair fora”, aconselhou ele. Teimoso, decidi sair dali apenas quando tivesse me embriagado de rum o suficiente para chegar à pensão e desmaiar na cama. Foi a pior escolha.
La Paz
Me encher de álcool não foi uma boa idéia. O efeito parece ter despertado ainda mais o efeito dos carrapatos. Tive uma noite infernal. Assim que amanheceu, subi no primeiro ônibus rumo ao ar gelado de La Paz. Um clima mais frio talvez pudesse aliviar meus ataques.
Até a capital boliviana. Incômodo. Ao invés de melhorar, a coisa parecia ficar cada vez mais feia. Cheguei ao terminal de ônibus e peguei um táxi até a Calle Sagarnaga.
Entrei no primeiro hotel mais barato e fui direto para o banheiro. Deixei as coisas no quarto e fui procurar uma farmácia para ver se resolvia meu problema. E ao levantar minha camiseta para um diagnóstico, a farmacêutica não sabia se gargalhava ou se me dava os pêsames. A reação da mulher me deixou ainda pior. Pois parecia que nem ela sabia direito o que fazer. “Isso são pulgas?”, perguntou. Depois dessa, quase perdi a fala, afinal, o que era isso?
Sem consultar ninguém, e já sabendo que não chegaríamos a nenhum diagnóstico, ela me deu uma pomada e disse que era para aliviar a coceira. Na esperança de que funcionasse, voltei para o hotel e passei o tal do remédio, mas a coisa estava num grau tão avançado que não fez diferença nenhuma, apenas um leve efeito psicológico. Beber não aliviou, fumar maconha também não, e o remédio muito menos, então, a única coisa a fazer era suportar a doidera.
Peguei a máquina fotográfica e fui tirar umas fotos pela cidade. Peguei um mapa no hotel e minha primeira parada foi na praça do Palácio Miraflores. Me sentei perto da fonte e vi um prédio cravejado de balas, perguntei a um senhor que estava num banco e ele me disse que eram “recuerdos” da queda dos dois últimos presidentes, Gonzalo Sánchez de Lozada, expulso por uma rebelião popular em 2003, e Carlos Mesa, que renunciou (também por pressão) em 2005. A praça central em La Paz é lotada de engraxates, eles ficam o tempo todo com o rosto coberto por máscaras que parecem de ninjas, apenas com os olhos de fora. Vendo os engraxates, a sensação é de que uma revolta pode acontecer a qualquer momento. Ouvi de alguns moradores de que quando começa uma rebelião, os engraxates estão sempre na linha de frente. “È mais ou menos como acontece na Palestina, é pau, pedra e bala pra todo lado”, me disse um viejo, enquanto dava comida aos pombos.
Voltei para o quarto na Sagarnaga e comecei a visualizar onde deveria ser minha próxima parada: Copacabana, uma cidadezinha às margens do Lago Titicaca. Desci até um boteco e perguntei ao rapaz que servia as mesas qual era o melhor jeito de chegar até lá. “Você deve pegar um ônibus no cemitério central”, explicou. E para não perder mais tempo antes que meu dinheiro acabasse, decidi ficar apenas dois dias em La Paz, pois estava programando uma volta para assistir às eleições presidenciais. O líder cocaleiro Evo Morales era um dos favoritos.
Fiz um breve roteiro e fui dar uma volta pelo centro da cidade. La Paz tem muitos estrangeiros, principalmente na Calle Sagarnaga, mas a maioria tem como único objetivo uma curtição sem limites. E os pontos preferidos são as boates e os barzinhos com grande concentração de gringos. A integração com o povo é através das moedas que eles dão para se ver livre dos pedintes. Poucas vezes vi um gringo na companhia de um local boliviano. Eles usam os nativos apenas para sugar informações. Mas os bolivianos também sabem disso, e sempre que podem procuram explorar a gringaidada inflacionando os preços, que varia desde uma diária de hotel até um simples passeio turístico.
No começo, pensava ser uma coisa escrota, mas depois que tive uma convivência mais próxima dos bacons, comecei a dar todo apoio à exploração da patota. Muitas vezes eu escapava dessa “inflacionice” (para estrangeiros) por causa da minha cara de bugre, e depois também pelo fato de ser brasileiro. Sempre acontecia de eu ser confundido com um local, e logo percebi que tinha uma boa cartada nas mãos. Pois além de escapar do aumento repentino dos preços, ainda tinha a vantagem de circular em qualquer lugar onde um gringo loiro de olhos verdes jamais entraria.
La Paz lembra muito uma cidade asiática. É como uma Índia, ou uma China, mas no meio da América do Sul. O contraste aumenta ainda mais com as centenas de restaurantes chineses instalados na cidade. No centro, eles estão em todas as esquinas. Escolhi um desses para comer algo barato. Pedi um prato de yakisoba e uma paceña. E enquanto o prato não vinha, fiquei olhando a rua de uma janela lateral. Estar sozinho na capital boliviana é a certeza de estar num lugar sem a mínima chance de ser encontrado por alguém. È como estar perdido, mas, ao mesmo tempo, com plena consciência de um ato mais impulsivo.
Qualquer vacilo pode te complicar. Um vacilo, no caso, seria desde ser assaltado ou até perder os documentos. Ficar sem dinheiro em La Paz pode ser uma dor de cabeça das grandes, perder os documentos então nem sem fala. Um gringo sem documentos na Bolívia é a certeza de ser explorado pela polícia. Ainda mais se o estrangeiro não falar pelo menos uma gota de espanhol. Aí a coisa fica pior ainda. Uma viagem dessas é ideal para quem está apenas com o dinheiro suficiente (ou não) para cair de volta em algum lugar, sem nenhum compromisso com prazos, datas e muito menos gente esperando. A liberdade em casos como esse chega ao limite extremo, é quase um vôo. È como seguir o barulho de uma onda: uma atração física ao ponto de ela mesmo te levar sozinha, sem você precisar de guias ou roteiros. A coisa flui de acordo com as circunstâncias, no melhor do espírito estradeiro. E olhando pela janela, a coisa estava tão livre que comecei a pensar em estender os dias em La Paz. Analisei até a hipótese de arranjar um emprego qualquer apenas para ter um pouco mais desse momento descompromissado com a tecnocracia cotidiana. Mas me lembrei daquele viajante uruguaio chamado Carbajal, que perto do cem anos ainda vive de alucinações em Joinville, Santa Catarina: “Quando começa a vontade de ficar, aí sim é hora de ir embora, o novo, o novo, o novo”.
Copacabana
“Jornalistas errantes são caloteiros notórios, e para aqueles que viajam por esse mundo sem raízes, uma conta de bar não paga pode ser um fardo elegante" Hunter Thompson
Voltei para o quarto e decidi sair cedo para Copacabana. Acordei às sete da manhã, os carrapatos já faziam parte da cena. Peguei um táxi perto de uma igreja e sai disparado rumo ao tal cemitério. Chegando lá, haviam dezenas de ônibus para Copacabana. Como sempre, escolhi a opção mais barata. Embarquei junto com alguns camponeses que seguiam para vender artesanato. A viagem até Copacabana dura poucas horas, dormi quase o trajeto inteiro. Quando acordei, o Titicaca estava escancarado na minha cara, imponente, limpo, azul, infinito sob o sol do meio dia.
Beleza de furar os olhos. Diz a lenda que uma rica família do Rio de Janeiro esteve na cidade para fazer uma promessa para o filho caçula se curar de uma doença. O garoto foi curado, e o nome da fazendinha onde eles moravam recebeu o nome de Copacabana, em homenagem a santa que fez o milagre. Procurei um quartinho para deixar minhas coisas e recarregar a máquina fotográfica. Batizei o quarto e fui fazer umas fotos. A paulada da altitude boliviana quase arrebentou minha cabeça, parecia aço, de navalha. Quase não consegui subir o morro para sacar uma foto panorâmica da cidade. Enquanto isso, uma velhinha vencia a subida dando risada. Fiz as benditas fotos e voltei para o quarto. Passei um pouco de remédio. Nada mudou. A essa altura, quase arranquei a pele de tanta coceira.
Um cybercafé em Copacabana custa quase dois dólares por hora, o que significa um dia a menos na cidade. Precisava ter notícias de como andavam as coisas no Brasil, pois já estava há um mês fora de cena. Mas, na verdade, não havia muito com o que me preocupar. “Liberdade é uma palavra que o sonho alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, Cecília Meireles, perdida na minha agenda.
Após um dia em Copacabana, a coceira estava diminuindo, mas isso não me salvou das tradicionais insônias como as de Cochabamba. Perto das oito da manhã, levantei e fui tomar um suco numa cabana perto do albergue. Lá estavam duas norueguesas e uma japonesa. Bati um papo com elas (apesar da miscelânea de japonês, inglês e espanhol). E fiquei falando tanto que, quando percebi, havia saído do local sem pagar a conta, parecia golpe, mas foi pura distração. Quando voltei, as meninas já tinham ido embora, e a boliviana que servia as mesas me disse, de cara feia, que “as gringas já haviam pago a conta”. Acabei com fama de golpista.
Na hora do almoço, estava sentado olhando o lago quando escutei a voz de Maria Bethânia num dueto com Chico Buarque. Segui o cheiro da música e conheci Andreas, um alemão radicado na Bolívia junto com a esposa argentina, proprietários de uma lanchonete na orla do Titicaca. Comi um sanduíche de soja, pimentão, tomate e salsa. Andreas e sua esposa eram amantes de música brasileira. Prometi lhes enviar a missa dos quilombos de Milton Nascimento e disse que voltaria depois que fizesse a trilha inca. Mas até hoje não consegui cumprir nenhuma das promessas, nem de voltar, e nem de mandar a gravação. Parti por outros rumos.
Na manhã seguinte, peguei uma barca para Isla del Sol, de onde se pode observar o Titicaca de um dos seus melhores ângulos. O que estragava, como sempre, era o mercantilismo e a futilidade turística. O barco estava cheio de norte-americanas que tinham acabado de voltar de Buenos Aires, ainda vestidas com imbecilidades como: I love Argentina. Nessa mesma onda estavam dois espanhóis, esquerda festiva, metidos a galãs. Sem falar também nos representantes da alta burguesia de Lima, com seus filhinhos mimados e seus maridos barrigudos. E pelo que percebi em quase três horas de viagem, apenas dois ou três mochileiros viajavam pela viagem. Em Isla de Sol, tudo tem um preço: tirar fotos de llamas, das peruanas vestidas com trajes típicos, e tudo de concreto que você possa imaginar. Mas assim como a maioria dos peruanos e bolivianos, também sou completamente favorável à exploração dos gringos, só que, o maior problema é quando isso se torna uma exploração generalizada. Apesar de tudo, nada disso atrapalha a visão de Isla del Sol e do Titicaca.
Após conhecer o universo paralelo de Isla del Sol, fui ao bar de Jose Luiz. O melhor de Copacabana. Não significa que seja o mais caro, e muito menos o mais sofisticado. Apenas um lugar em que você pode chegar sozinho e beber rum sossegado acompanhado de boa música. O bar tinha uma prateleira cheia de guias sobre a América do Sul, desde os mais obscuros aos famosos Lonely Planet. Aproveitei a oportunidade para munir meu roteiro com mais algumas informações da coleção de Jose Luiz. Ele me disse que se eu me interessasse por algum título, que lhe propusesse uma troca. “Venda não”, jamais. Queria muito ter ficado com pelos menos quatro livros que tinha visto, mas acontece que os que trouxe comigo também eram muito difíceis de me fazer concretizar a troca. Alguns que havia trazido para viagem eram peças que talvez não teria dinheiro para comprá-las e nem oportunidade para roubá-las novamente: Malagueta, Perus e bacanaço, de João Antônio; Catatau, de Paulo Leminski; e uma parte dos diários de Jack Keroac.
Quando disse que era brasileiro, Jose colocou Gilberto Gil. Percebi que ele conhecia bastante sobre o baiano, então pedi Refazenda. "Boa escolha muchacho", sorriu. Não esperava ouvir MPB e Bossa Nova na Bolívia. Afetado pelas doses de rum, me despedi de Luiz, enrolei um baseado e fui caminhar pela cidade. Parei na frente da igreja, mas vi apenas uns gringos bêbados e fui dormir.
Puno
O ônibus para Puno só partiria às 13h30, então fui comer alguma coisa no centro de Copacabana. Foi quando conheci Miguel, dono de uma lanchonete vegetariana que me contou sobre como era a cidade antigamente. Ao som de um disco chamado Instrumentos Andinos, Miguel me disse que um jornalista carioca havia passado quase um ano na cidade para escrever uma comparação sobre as duas Copacabanas, desde os aspectos históricos até a atualidade. Achei interessante a história, e até hoje ainda estou procurando por essa pesquisa.
A estrada que liga Copacabana a Puno é um caso a parte. Em Vallegrande, por exemplo, as estradas são “adrenalinantes” de tão perigosas. Já as curvas que levam a Puno, são “adrenalinantes” de tanta beleza. Conheci uma inglesa no caminho, fomos juntos até um albergue no centro da cidade, depois disso, nunca mais a vi, ela disse que ia a Machu Picchu, depois Venezuela. Fumei um baseado no quarto e sai para me apresentar à cidade. Como era quase madrugada, preferi não ir muito longe. Entrei num bar chamado El Diablo, onde conheci uma peruana estudante de economia. Ficamos um tempão num papo bem intelectóide que ia de Marx a Kafka, e logo depois puxei assunto para o Sendero Luminoso.
Pois desde que coloquei os pés no Peru, fiquei com vontade de visitar Ayacucho, território dos guerrilheiros. A garota conhecia bem o contexto histórico do Sendero, e me passou inclusive um mapa da região em que grupo ainda continua a oferecer resistência. Aquele clima subversivo, misturado ao ambiente de El Diablo, começou a me deixar com vontade de arrastar a economista para meu quarto. Foi quando me lembrei dos malditos carrapatos, pois quando ela visse meu corpo, fuzilado, ia querer sair correndo. Então, dá-lhe rum.
Pela manhã, fui conhecer outros pontos da cidade. Bebia café numa praça quando surgiu uma manifestação contra o neoliberalismo às nove da manhã. Não perdi tempo e mandei ver na máquina fotográfica. Eram todos operários e trabalhadores de Puno, que gritavam palavras de ordem pelo centro. No caminho, alguns peruanos também se juntavam a eles, e quase que eu também fui na onda, mas, na verdade, eu já estava nela há muito tempo e nem tinha percebido.
Outro fato que chamou atenção na caminhada, é que talvez nem mesmo Roberto Carlos saiba o tanto que é famoso em Puno. Ou melhor, será que o rei sabe ao menos onde fica Puno? Impressionante, mas até em restaurante chinês se ouvia “Quando eu estou aqui, eu vivo esse momento lindo...”. Isso, quando a coisa não era cantada em espanhol. Estava numa livraria comprando uma edição pirata do Diário de Iraque, de Vargas Llosa, quando ouvi “Detalhes”. Perguntei ao peruano se ele conhecia quem estava cantando e ele respondeu: “Tá maluco! Quem é que não conhece El Rey?”. E tão idolatrado quanto Roberto Carlos, somente um outro rei, só que do Kung Fu, o chino-americano Bruce Lee, que têm imagens espalhadas por toda cidade, quase um santo.
Passei a tarde observando o cotidiano de Puno, era uma segunda-feira bastante agitada. Bancos, lojas e repartições públicas funcionavam a pleno vapor. Correria. Parei na frente de um banco e fiquei assistindo ao canto triste de um casal de cegos tocando violão. Em Puno, a exploração turística não é tão agressiva como em La Paz, Copacabana, Cuzco e Machu Picchu.
Assim que a noite caiu, achei um bar chamado Waynasi. No balcão, um dos caras que atendiam recomendou uma bebida chamada Huajsapata. Vinho quente com limão servido numa caneca de barro com ervas. Basicamente é isso, mas o segredo estava na preparação. Você pode chegar em casa e esquentar o vinho e jogar limão que não vai ser o mesmo resultado, mesmo que você servir em uma caneca de barro. Pois o diferencial estava no preparo. Outra vantagem do Huajsapata: umas das bebidas mais baratas do cardápio. Os chiques do Peru a acham muito popular, e os turistas muito simples. Eu achei umas das melhores. No Waynasi foi também onde conheci um camarada chamado Emiliano, que veio até minha mesa para conversar. Era um ex-marinheiro que conhecia o mundo inteiro. Tinha até uma tatuagem feita no Japão em 1941, com o desenho de um sol nascente. Conhecia vários portos, já tinha passado a noite com mulheres desde Santos à lisérgica Amsterdã. E, antes de se despedir, citou Calderón de la Barca, “La vida és un sueño”.
Cuzco
A viagem de Puno a Cuzco foi cheia de expectativas. O percurso de 350 km que poderia ser feito em no máximo quatro horas. Leva quase sete. Além da beleza, Cuzco mostra as faces da pobreza de sua gente. Garotos de oito anos decoram frases inteiras em inglês apenas para pedir dinheiro aos turistas. Sabem mais inglês do que muita gente bem nutrida, que come todos os dias. Com alguns engraxates é possível traçar longas conversas em inglês. Aqui a pobreza aguda se mistura ao luxo dos hotéis e dos restaurantes cinco estrelas. O mendigo encardido, índio, que teve que abandonar a terra para esmolar na Praça das Armas, contrasta quase que vergonhosamente com loiros e loiras da Suécia, dos Estados Unidos e da Alemanha.
Muitos jovens cusceños possuem uma sólida formação em história, geografia e literatura peruana, mas nem por isso escaparam do destino de se tornarem pedintes em pontos turísticos. Em toda América do Sul, o panorama é o mesmo. Estudar é privilégio de ricos. Não existe mais classe média, ou é rico ou é pobre. É a mesma coisa que acontece nas Filipinas, na Índia, e na China. Educação significa dinheiro no bolso. As universidades públicas estão cheias de playboys e patricinhas, e as particulares lotadas de proletários. Pergunte nos bolsões de miséria em La Paz, em Cuzco, no Recife ou em São Paulo, a maioria dos jovens sonha com um vaga na faculdade. Mas o sonho é tão longínquo que muitos nem sequer cogitam mais essa possibilidade. E depois de um ensino básico mal feito, vão direto para uma linha de produção, onde se transformam em nada mais do que mão-de-obra barata.
A relação dos brasileiros com os portugueses é quase sempre levada na base da piada, e todo mundo (ou quase) sabe da orgia que os europeus fizeram com o ouro brasileiro. Mas, em Cuzco, parece que existe uma parcela da população que se esqueceu das festanças que a coroa espanhola fez com o sangue dos incas. E a relação deles com os espanhóis é quase de devoção. O espanhol é venerado e, pelo menos no Peru, continua tendo o seu reinado. Em apenas uma caminhada é possível perceber a relação entre conquistador e conquistado.
Minhas características são de índio. E comigo o tratamento era como se fosse de um nativo peruano ou boliviano. Quase chegando em Cuzco, a polícia nacional subiu no ônibus para uma revista, separaram as mochilas de todos os gringos. A minha, e mais de uma porção de índios foram esmiuçadas sem piedade. Em outra oportunidade, os policiais entraram no ônibus e perguntaram em inglês: Quem tem mochila no bagageiro da parte de baixo? Quando eu levantei a mão, o policial me olhou com cara de desprezo e disse em espanhol: “Quero saber apenas dos estrangeiros, ainda não falei com você seu colla!”
Tirando as investidas rigorosas dos milicos, que colocavam em risco total meu esconderijo de maconha, existia uma grande vantagem em se parecer com um local. Pois enquanto os turistas eram atacados pelos vendedores em quase todos os becos, eu passava completamente incógnito por esses aborrecimentos. Por causa disso, sempre conseguia andar sossegado.
A vista noturna da praça das armas pega na veia. Seis da tarde, escrevo sentado da escada da catedral de Cuzco, onde provavelmente existia um templo inca destruído pelos espanhóis. Lembrei de Almir Sater e Geraldo Roca, qual seria a Cuzco deles? A dos marginais cusqueños, gente do povo, autênticos, índios e favelados? Ou seria a Cuzco dos restaurantes da moda, que servem vinhos chilenos - odiados pelos peruanos - que preferem o de Ica. E, ao ouvir a voz da mochileira, me veio essa pergunta.
Em meu segundo dia em Cuzco, passei quase doze horas dando voltas pelo centro. Comecei pela Avenida Pachacutec, que possui uma passarela de pedestres que vai até o Mercado de Artesanato. Era quase uma da tarde quando cheguei à Praça San Blas, onde passei por um lugar onde havia quase cinquenta cavalos enfileirados. Fui conversar com um dos garotos que cuidava dos animais. “Se você pretende visitar as ruínas de Saqsaywaman, e não comprou a entrada de US$ 40, pode chegar a cavalo, por um caminho alternativo (onde não há guardas), e pagar somente US$ 5. Aceitei na hora a proposta do garoto, Quispe Choque, dez anos de idade, que trabalha de domingo a domingo cuidando dos cavalos por um salário mensal de US$ 30.
__Quem trabalha aqui deve acordar às quatro da manhã, dar ração aos animais, escovar o pêlo, arrumar as celas e levá-los para o local de partida. No fim do dia, fazer novamente a mesma coisa -, disse o menino, que vive com a família na periferia de Cuzco.
Os pais de Quispe também trabalham com aluguel de cavalos para passeios turísticos na cidade. “Eu frequentei a escola somente para aprender a ler. Sem comida em casa, quero ver quem estuda. Tem dias que eu acordo para ir trabalhar e fico pensando como seria se estivesse na escola, jogando futebol nos intervalos e brincando com os amigos. Agora não tem mais nada disso, mas também não posso reclamar, porque pelo menos não falta comida em casa”, comentou Quispe, enquanto ajeitava o cavalo. No caminho, o garoto vai explicando cada pedaço do trajeto até as ruínas.
A primeira parada foi no Templo do Sol, onde ele me mostrou desenhos de cobras, condores e uma mesa de sacrifícios inca. “Tudo isso aqui era feito com ouro, mas, os espanhóis... Bom, isso você já deve saber né”.
Quispe não deixava passar nenhum detalhe sem comentar algo sobre a história de Cuzco. E logo depois de uma passagem pelas ruas de Puca Pucara ou Forte Vermelho, chegamos a Saqsaywaman, parque arqueológico que possui uma extensão de 3 mil hectares, localizado a dois quilômetros ao norte de Cuzco. As pedras usadas nessa construção chegam a medir até 9 metros de altura e 5 de largura. A fortaleza tem portas, galerias e torres localizadas estrategicamente. E além de Saqsaywaman, o parque possui ainda o Q`Engo (labirinto), local de cerimônias e de culto para Pachamama, e também o Tambomachay (banheiros do Inca), onde os habitantes cultuavam a água.
Machu Picchu
Diferente de outros tempos, quando havia um certo romantismo na trilha Inca, tudo agora tem um preço. Hoje em dia, esse romantismo não sai por menos de 250 US$. E se não fosse o golpe por mim presenciado, teria chego até Cuzco sem nenhuma chance de percorrer a trilha. Num domingo de manhã, 11 de dezembro de 2005, estava usando o computador do albergue quando ouvi a discussão entre um guia peruano e um turista sueco. Pablo havia prometido que o turista iria começar a trilha no domingo. "Você disse que eu escalaria hoje! E você sabe muito bem que na quinta-feira eu estou de partida pra Estocolmo! - gritava o turista. A trilha dura quatro dias, portanto, se ela atrasasse mais um dia, o sueco não teria como pegar o avião em Lima na noite de quinta-feira. Pablo dizia que a trilha só poderia sair no dia seguinte (segunda-feira), pois havia perigo de deslizamento em um dos trechos. Lorota. Pablo sabia disso, e como não tinha conseguido fechar o grupo de doze pessoas para sair no domingo, inventou a história de deslizamento para atrasar a partida e, de quebra, vender o bilhete do sueco para outra pessoa.
__Tudo bem, eu entendo. Mas se nós não vamos sair hoje, então me devolva o dinheiro! – exigiu o sueco.
__Esse que é o problema. Parte do dinheiro já foi gasto no pagamento de licenças individuais para a prefeitura. E nós só devolvemos o dinheiro três dias antes da trilha - inventou Pablo.
__Ok, eu te paguei US$ 300, quanto você pode me devolver! - perguntou, quase já sem esperança.
__Posso te devolver a minha parte do lucro, 60 US$, porque o resto já foi pago com as taxas.
Indignado, e gritando coisas numa língua estranha, o sueco aceitou os US$ 60 dólares e foi embora. Assim que ele partiu, me aproximei de Pablo e perguntei o que aconteceria com os 240 US$ que ele havia deixado.
__Ah hermano! Aí você já está querendo saber demais".
__Ô Pablo, eu sei que você quer vender a vaga do sueco para outra pessoa. Mas bicho, você não vai perder nada , porque eu vou te pagar os US$ 60 que faltam. Além disso, você já pensou se o gringo resolve adiar a passagem dele para Estocolmo. Aí é que você não ia ganhar porra nenhuma mesmo. Pense bem rapaz
Com medo de que eu pudesse ir atrás do sueco e o convencesse de que podia valer a pena adiar os compromissos na Suécia para conhecer as maravilhas da trilha inca, Pablo decidiu aceitar.
__Carajo, esses brasileiros são mesmo uma merda!
No grupo de doze pessoas que fez a trilha, eu era o único brasileiro. O ônibus nos deixou no ponto de partida, num local chamado Km 82, onde nos encontramos com outros grupos. O primeiro dia é o mais tranqüilo. Caminhamos quase quatro horas até o primeiro acampamento. Um grupo de 11 carregadores já havia saído na frente para montar a estrutura. Durante o primeiro trecho, fiz amizade com um canadense alpinista, um francês e um casal de aventureiros do Alaska. Mas logo depois me envolvi mesmo foi com o grupo de carregadores e o guia deles, um peruano chamado González. Acabei me tornando uma ponte entre os outros mochileiros e o grupo de peruanos, já que a maioria dos viajantes não conseguia se comunicar com os nativos. Na hora de comer, ao invés do barração montado para os turistas, preferia a companhia dos peruanos. E logo me tornei um local no meio deles e ganhei até apelido: Brasil.
A primeira noite foi regada à maconha e Pisco. A maioria dos carregadores era descendentes de índios e, além do espanhol, também dominavam o aymára. E ao mesmo tempo em que me aproximei dos nativos, ganhei a simpatia dos gringos, pois conseguia me mover entre os dois grupos. Então passei a ser uma espécie de guia alternativo entre as duas realidades. Estava tão à vontade que logo já havia legalizado o acampamento inteiro. E além das minhas plantas paraguaias, aprendi com os peruanos a usar um aditivo fundamental na caminhada: folha de coca com bicarbonato.
Acredito na tese de que cada organismo tem uma reação diferente a qualquer tipo de coisa, de drogas a alimentos. Sendo assim, a folha de coca com bicarbonato deu um grau diferente. Parecia que eu tinha cheirado cocaína, mas sem os efetitos destrutivos, como depressão, estigamento e outras rebordoses. No momento em que aprendi a manusear as folhas, e também a conhecer a hora certa de acrescentar o bicarbonato, minha vida na trilha mudou. Não que que ela tenha me fornecido todos os subsídios para controlar o cansaço, mas que ajudou, e muito, disso não tenho dúvidas. Passei a primeira noite na expectativa de como seria o segundo dia e, ainda com as impressões da etapa inicial, não imaginava que seria tão difícil.
O guia começava a acordar o grupo sempre às quatro da manhã, cada um recebia chá de coca, pão e alguma outra fruta. Os turistas foram na frente, fiquei mais um tempo no acampamento desmontado, enrolei um baseado e preparei um aditivo de folhas de coca. Logo os carregadores sairam na frente, e mesmo com o peso do equipamento (alguns chegam a levar até bujão de gás cheio preso às costas), eles conseguem fazer a trilha em bem menos tempo do que leva um turista. Por exemplo, se um mochileiro leva quatro dias para chegar a Machu Picchu, eles fazem o percurso todo em até 12 horas. A primeira subida tinha um nível médio de dificuldade. Perguntei ao guia qual dos dias seria o pior. "Se prepara que é hoje". Nem demorou muito e senti como se meu pulmão estivesse todo furado. A sensação, sinistra e cabulosa, ainda me perseguiu durante quase toda a trilha, imagine sem os aditivos. Quando olhei a quantidade de estrangeiros, gordinhos, glutões e fora de forma, jamais imaginei que a coisa toda seria tão difícil.
E a solução para quem está prestas a desistir é pagar para um dos carregadores (que já está cheio de bagagem) carregar a mochila do desertor. A maioria dos gringos faz isso. Sem falar naqueles que chegam até a alugar burros de carga em certos trechos. Só que, no segundo dia, tive a certeza de que seria bem mais sério do que eu pensava. Escadarias, morros, trilhas, tudo era percorrido com muita dificuldade. No final do segundo dia, não conseguia ver mais nenhuma ladeira na minha frente.
E como não havia levado cantil, peguei uma garrafa de plástico e enchi com água de cachoeira. "Você vai mesmo beber essa água sem as pílulas de desintoxicação" - perguntavam. "Rapaz, pra que sujar a água sagrada dos incas com essa porcaria química" - respondia. "Além disso, nasci brasileiro. Meu estômago já veio vacinado". Nem tanto.
O terceiro dia começou com chuva forte. De cara teríamos uma subida até as ruínas de Paqayanayu, quase desisti. Sem as roupas de tactel (características de mochileiros), minha blusa de algodão e a calça jeans ficaram ensopadas. Sem falar que, ao contrário da maioria, eu estava carregando toda bagagem (quase 20 kg), pois não consegui arrumar ninguém confiável para cuidar delas enquanto estivesse na trilha. Fadiga. O peso da mochila, as roupas molhadas, a chuva, e o frio, tiravam quase toda minha resistência. Na última noite antes da trilha final até Machu Picchu, passamos a noite acampados em Winaywyña, onde todos os grupos que também estavam fazendo a trilha se encontram. Babilônia de mochila. Gente do mundo inteiro, poucos brasileiros. Alguns bebiam cerveja, outros tomavam ácido. Eu, fumava maconha e insistia nas folhas de coca. Tivemos sorte. Lua cheia. De dentro da barraca, a lua parecia um refletor do Maracanã bem na minha cara. E quando eu estava pronto para dormir, Andreas, o cozinheiro chefe, me convidou para uma confraternização no acampamento dos carregadores. Jorge, o mais velho deles, tocava sampoña, uma flauta típica peruana. O pisco rodava de mão em mão. O clima era bem melhor que a música eletrônica vinda do barracão reservado para os turistas.
A última manhã antes de chegar a Machu Picchu foi a melhor de todas. Apenas 12 km nos separavam das ruínas. E esse era o trecho onde a adrelina batia mais alto. Durante todo o trajeto, as pessoas caminhavam com um sentimento que misturava excitação e euforia. Muitos mal podiam esperar pela chegada, e aceleravam na frente para chegar antes. Os viajantes, em unamidade, caminhavam sempre com um enorme sorriso no rosto e dando gritos de incentivo para quem estava sendo ultrapassado.
E a cerca de 500 metros da visão mais famosa de Machu Picchu, já dava para ouvir a festa formada pelo coro de vozes dos primeiros a chegar. E isso adicionava ainda mais força para quem estava vindo atrás. O coração, sem nunca ter sentido coisa parecida, começava a bater mais acelerado. Palpitações, fortes. E todos os sacrifícios da viagem seriam recompensados de uma só vez pelo privilégio de estar num dos lugares mais mágicos do planeta. Estávamos no último resquício de resistência do Império Inca. A Meca máxima de todos os mochileiros do mundo.
Um cartaz pregado numa cabana do KM 82 pode sintetizar bem o significado da viagem. "Um mochileiro jamais pode ser considerado um mochileiro sem ter vindo a Machu Picchu: A pé".
E estar ali, tinha vários significados. Os indígenas dizem que o efeito imediato para quem chega através da trilha - e de coração aberto - é a morte da vida que já foi vivida e o nascimento de uma nova. Desta vez, ainda mais auto-suficiente, pois já nasce abençoada pela energia dos guerreiros incas.
Depois de Machu Picchu, para quem viajou disposto a dar um 360 graus no cotidiano, é impossível manter a mesma postura de antes. E por mais perfeito que você acredite que possa ser, sempre existe algo que Machu Picchu possa destruir, principalmente o comportamento dos mais cômodos. E, como cantam os índios, para quem chega de coração aberto, a viagem só faz abrir ainda mais os horizontes.
Em Machu Picchu, foi apenas um bate-volta. E tivemos somente uma manhã para admirar as ruínas, porque quem não tem dinheiro para pagar um hotel dentro do sítio histórico tem que voltar no mesmo dia. O tempo até que não é tão curto, já que em apenas um período é possível andar por toda área. Mas, dependendo da pessoa, o cansaço acumulado pelos últimos quatro dias é tão grande que é normal muitos mochileiros chegarem até lá, tirar a famosa foto das ruínas vistas de cima, e depois capotar em qualquer lugar. E mesmo bastante cansado - por causa das roupas molhadas e do peso da mochila -, tive fôlego para fumar um baseado, beber alguns goles de pisco com meus amigos carregadores, e ficar de cima de uma pedra olhando o horizonte surreal das ruínas incas.
De Machu Picchu até Cuzco, na volta, o percurso é feito de trem, a partir da estação de àguas Calientes. Na estação, um grupo de trabalhadores protestava contra o monopólio da linha de trem por uma empresa inglesa. Por causa disso, tivemos que percorrer 15km de caminhada para pegar um ônibus. A distância não é tão grande, mas, depois da trilha inca, tudo fica mais difícil. Tempo suficiente para pegar uma gripe e uma salmonela (culpa da mistura entre abacate, mostarda e queijo ralado devorado no caminho). Debilitado, peguei um ônibus direto para La Paz. Vinte horas de tensão. Desci no terminal e fui direto para calle Sagarnaga. Nesse dia, 22 de dezembro, Evo Morales havia ganho as eleições para presidente da Bolívia. A comemoração foi em frente ao Plácio Miraflores, onde milhares de indígenas estavam reunidos. Ecstase. Catarse geral. Pela primeira vez um líder cocaleiro ocupava a presidência. Observei o tumulto até terminar o discurso de Evo, depois, voltei para o albergue, curvado, tosse de cachorro, fazia 50 metros por hora. Na ida, carrapatos, na volta, salmonela. Fim da trilha. Alguns melhores, outros, a mesma coisa