Barril de Pólvora - Parte IV – La Higuera
Eram pouco mais de cinco da tarde quando o Expresso do Oriente (ou Trem da Morte para os mais entusiastas) deixou Puerto Quijaro rumo a Santa Cruz de La Sierra. Todos os viajantes que entram na Bolívia devem carimbar o passaporte na saída de Corumbá. E, para evitar problemas, procurei tirar meu visto logo pela manhã. Mas assim que cheguei à imigração, um policial boliviano me deu a notícia de que teria que passar dez dias em território brasileiro. Era o tempo suficiente para validar minha vacina contra febre amarela. Antes disso, não poderia deixar o país. E como já estava com a passagem comprada, decidi arriscar.
Na frente dos polícias, fiz como se estivesse voltando para Corumbá e fiquei esperando num botequim próximo ao ponto zero dos dois países. Após quase três horas de espera, coloquei a mochila nas costas e, com uma leve tremedeira nas pernas, passei sem parar no posto policial. Estava quase cruzando a fronteira quando escutei o grito de um guarda me mandando voltar. A essa altura já tinha o estômago congelado, mas o medo maior era de perder os vinte dólares da passagem e ainda ter que ficar dez dias em Corumbá. Com jeito de quem não queria muita conversa, o policial me pediu o passaporte e perguntou para onde eu estava indo. Disse a ele que não tinha o visto porque teria que ficar dez dias no Brasil, por causa do prazo da vacina. “E por que a mochila?”, questionou ele, mal-humorado. Argumentei que ia fazer compras em Quijaro e que voltaria logo em seguida. Disse também que carregava minhas coisas porque achava perigoso deixar minha bagagem no albergue estudantil.
Diante do sinal positivo do policial, continuei minha caminhada, mas, ao invés das compras, peguei um táxi e parti para a estação em Quijaro.
Achei que o pior havia passado, mas estava apenas começando. Pensava também que não teria problemas dali para frente, quando, de repente, quase na porta do trem, um outro policial boliviano me pediu os documentos. “Agora já era”, pensei. E assim que viu meu passaporte sem o visto, colocou ele no bolso e me mandou entrar. A partir daí, às vezes me pegava tão preocupado que chegava a ter pesadelos durante a viagem. Imaginava coisas que iam desde o roubo de meu passaporte, até a minha provável prisão - por ter embarcado sem visto- assim que desembarcasse em Santa Cruz. Ao perceber o procedimento do policial, um estudante brasileiro de medicina na Bolívia, Everton Pichetti, me disse que ia tentar falar com ele para ver o que estava acontecendo.
Quase dez horas depois, estávamos indo fumar um baseado no espaço que existe entre os vagões quando o policial reapareceu. Everton conversou com ele e garantimos procurar a imigração assim que chegássemos em Santa Cruz. O policial, talvez querendo algum “agrado”, disse que devolveria o passaporte, mas que nos esperaria na saída do trem. Desconfiado, Everton me disse para descer o mais rápido possível por outro vagão e esperar por ele na porta principal. Tudo aconteceu tão rápido que, quando percebi, já estava dentro de um táxi, assimilando a mudança, radical.
Everton me convidou para que ficasse em sua casa, onde também moravam os estudantes do Acre, Cássio e Johnson. Os três fazem parte de um grupo de brasileiros que estuda na Ucebol, uma faculdade de medicina em Santa Cruz.
Deixei Campo Grande, em 25 de novembro de 2006, para conhecer Machu Picchu, o vale sagrado dos Incas. Mas assim que coloquei os pés na capital cruceña, e olhei pela primeira vez um mapa dos arredores do distrito, comecei a pensar na possibilidade de visitar La Higuera, em Vallegrande, onde Che Guevara foi morto em 9 de outubro de 1967. Foi sua última tentativa de uma revolução na América Latina, que ia começar pela Bolívia.
Às nove da manhã, já estava na porta da imigração em Santa Cruz. E os policias que estavam de plantão não me deixaram entrar, pois eu estava de bermudas. Um deles me disse que não poderia ficar lá porque estava desrespeitando as mulheres que haviam no local. Logo depois, um outro guarda veio me falar que a única solução seria eu comprar uma calça na loja da esquina. E quando começava a pensar nessa possibilidade, o guarda-chefe apareceu. Insisti com ele dizendo que precisava ir a Vallegrande, e que não teria tempo de ir buscar uma calça. Após muita argumentação, acabei conseguindo entrar. Carimbei meu passaporte e fui para rodoviária, o ônibus para Vallegrande partiria às seis da tarde.
Todos os assentos estavam lotados, inclusive o corredor do veículo, onde havia muitas pessoas sentadas no chão. Ao meu lado, viajava um boliviano vestido com uma farda da força aérea. “Para onde está indo?”, perguntou ele. “La Higuera”. Pelo meu sotaque, o militar percebeu que eu era brasileiro e começou a me dar várias dicas de como poderia chegar até lá.
Rosendo Padilla tinha 26 anos e era sargento da aeronáutica. Me contou que havia morado seis meses em Cuiabá, e por isso reconheceu meu sotaque interiorano. Ficamos amigos e ele me convidou para ficar na casa de seus pais, um sítio próximo a La Higuera. Padilla me disse também que seus pais eram camponeses, e que conviveram de perto com os guerrilheiros comandados por Che Guevara.
Chegamos em Vallegrande às duas da manhã, o clima estava frio e a cidade completamente vazia. Rosendo pediu ao motorista para que ficássemos dentro do ônibus até o amanhecer. E assim que o dia clareou, avistei as primeiras ladeiras de Vallegrande pela janela.
Cercada por montanhas, a cidade é muito parecida com Ouro Preto em sua forma geográfica, e a diferença fica apenas na arquitetura. Comemos algo no mercado central e pegamos um caminhão para La Higuera. A outra maneira de chegarmos lá seria de táxi, mas nos custaria 150 bolivianos, algo em torno de vinte dólares. Sem falar que, na caçamba de um caminhão, poderíamos obter ainda mais informações sobre La Higuera com os bóias-frias vallegrandinos.
A viagem dura aproximadamente uma hora e meia, e o caminho, em certos trechos, pode ser assustador para quem tem medo de altura. Em quase todo o percurso, só há espaço para apenas um veículo, com muitos precipícios, sem nenhuma proteção lateral. É quase como se fosse um caminhão andando na corda bamba, qualquer deslizamento de terra, ou, até mesmo um simples vacilo do motorista pode ser fatal. Mas a paisagem compensa o risco.
Impressionante como tudo em La Higuera lembra uma guerrilha rural, principalmente a figura de Che Guevara. Não havia ninguém, mas ninguém mesmo no pequeno vilarejo, que só tem energia em uma das casas, que funciona como hospedagem, e a luz lá é solar. Logo na entrada, pode se ver dois bustos de Che, um grande e um outro menor. Na famosa escola onde o guerrilheiro ficou preso e depois executado, a porta estava fechada, mas a chave estava guardada com uma moradora.
Para quem já leu alguma coisa sobre os últimos momentos de Guevara na Bolívia, a entrada na escola é de arrepiar. Ainda mais quando se está sozinho, como eu tive a chance de ficar por quase meia hora. Fiquei lá dentro todo esse tempo com a porta entreaberta e, como as janelas estavam fechadas, pude ter pelo menos um pouco da sensação de como é ficar preso lá dentro.
A última foto de Guevara antes de morrer, sujo, magro e ferido, pendurada na parede, aumenta ainda mais o impacto histórico do que esse local representa. Apesar disso, La Higuera recebe poucos visitantes, ao contrário do que muitos pensam. E quando se está no local onde mataram Che, temos uma percepção muito mais racional do que as camisetas e souvenires usadas em todo mundo com a foto do guerrilheiro. Apetrechos e badulaques consumidos na maioria das vezes, por pessoas que pensam ter o ativismo de Guevara e a filosofia de Marx, mas que, como diz Millôr Fernandes, tem apenas a asma de Guevara e os furúnculos de Marx.
Ainda atordoado pela visita à escola, fui dar uma volta pelo vilarejo. Queria conversar com alguém que tivesse vivido na mesma época em que Che esteve lá. Perguntei em umas cinco casas e todos eram moradores recentes, até que encontrei Ivana, a dona da pensão onde funcionava o telégrafo de La Higuera. Com pouco mais de trinta anos, a mulher me contou que, quando os guerrilheiros estiveram no telégrafo para cortar o único canal de comunicação, já era tarde demais.
Ivana acredita que o serviço secreto boliviano começou a ter provas concretas da existência da guerrilha quando prendeu o filósofo francês Régis Debray e o argentino Ciro Bustus na região. Bustus, inclusive, em circunstâncias ainda hoje mal explicadas, desenhou um retrato pessoal de todos os guerrilheiros e os entregou para a polícia. E a situação da guerrilha ficou ainda pior após a delação de alguns moradores e da deserção de dois bolivianos do grupo formado por Che: Vicente Terrazas e Pastor Quintana.
Também fiquei sabendo de que não havia no vilarejo mais nenhum morador daquela época. Sendo assim, decidi partir para uma última visita na região: os pais de Padilla, que viveram lá durante os anos de 1960, e que ainda moravam na vila de Santa Ana, uma montanha isolada nos arredores de La Higuera.
Rosendo e eu pegamos nossas mochilas e encaramos uma caminhada de quase três horas até Santa Ana. Chegamos ao sítio por volta das sete da noite. Dona Natividad, 65 anos, mãe de Rosendo, nos recepcionou com uma sopa de legumes, Seu Marciano Padilla, 76, chefe da família, havia acabado de chegar do trabalho na plantação.
A casa, construída por eles, é toda feita de barro, possui um cômodo e três camas. Não tem banheiro e muito menos energia elétrica. A renda familiar é obtida através da venda de pão, produzido com o trigo plantado no próprio terreno. E a única coisa que eles compram fora - no mercadinho da vila - é sal e carne. Açúcar eles não usam, o restante (como frutas, verduras e cereais), vêm do pequeno sítio, numa horta encrustada entre as montanhas.
Dona Natividad e Seu Marciano me contaram que os guerrilheiros eram vistos poucas vezes andando pelo vilarejo de La Higuera. Che, eles só viram no dia da prisão. Seu Marciano se lembrou também de que no dia 26 de setembro de 1967, encontrou os guerrilheiros pela primeira vez. Ele havia ido vender roupas na casa de um conhecido quando se deparou com uma festa, onde estavam presentes alguns integrantes da guerrilha, entre eles o famoso guerrilheiro cubano conhecido por Pombo (Harry Villegas), que já era guarda-costas de Che aos dezesseis anos de idade, ainda em Sierra Maestra.
Pombo - junto com Urbano e Begnino - foi um dos únicos sobreviventes da mal sucedida campanha boliviana. No dia da festa, a policia já estava no encalço, e uma tropa conseguiu chegar até o local. Os militares acabaram com a confrartenização e mataram três comandados de Guevara. “Eu me lembro dos policiais levando os corpos em cima de burros até a estrada para Vallegrande”, me contou Marciano. Para ele, “a queda do sonho revolucionário começou justamente nesse dia”. E que após o bote do dia 26, ele diz ter ouvido várias vezes os tiros do exército na caçada por Che dentro da mata. Eram os últimos momentos daquela que foi a mais agonizante resistência do líder revolucionário.
Nove da noite. Lua cheia. Céu de diamantes. No topo de Santa Ana, a sensação me lembrou uma passagem de Kerouac nos Vagabundos Iluminados: a liberdade eternizada em um momento, seja ele qual for. Dona Natividad preparou um jantar de verduras e um prato à base de mote, uma espécie de milho boliviano. Enquanto comíamos, Seu Marciano falava um pouco mais sobre suas lembranças da guerrilha.
__Quando chegaram aqui, Che e seus companheiros diziam ser mochileiros. E diziam que estavam acampados somente para conhecer o lugar. Inclusive, eu me recordo claramente deles chegando aqui, com mochilas enormes, cabeludos, jovens e barbudos -, relembrou Seu Marciano.
Na hora de dormir (como se já não bastasse toda a hospitalidade) Dona Natividad e Seu Marciano ainda ofereceram a cama deles. Agradeci e disse que não era necessário, pois poderia dormir no local onde era estocado o trigo (quando tive a sorte de ser apresentado à fúria de amigos que me acompanhariam por toda a viagem).
Através da família Padilla, conheci um senhor de setenta anos chamado Sánchez, que estava indo a pé até Vallegrande. E como não havia outra maneira - ao mesmo tempo rápida e econômica para voltar - acordei às cinco da manhã e me juntei a ele numa caminhada de sete horas. Antes de sair, fui trocar de roupa e, quando percebi, meu corpo estava completamente tomado por carrapatos (resultado das três noites no estoque de trigo). E já que não estava me incomodando, segui em frente.
Ainda não sabia disso, mas, quando se é mordido por carrapatos, leva mais ou menos um dia até que o terror da coceira comece a se instalar. Durante a caminhada, o clima estava bastante frio, e isso ajudava um pouco na alergia, que ainda nem se comparava ao que viria pela frente. Pelo caminho, encontrávamos vários camponeses e, segundo Sanchez, a maioria também tinha vivido na época das guerrilhas. Na primeira hora da trilha, senti a mochila ficando mais pesada, mas isso não justificava a distância que Sanchez às vezes colocava sobre nós dois.
O percurso até Vallegrande é cheio de trilhas, entre montanhas, com muitos rios e mata fechada. E sempre que pensava em fazer um descanso, olhava a vitalidade de Sánchez e logo desistia. Sua trajetória é quase a mesma do senhor Marciano Padilla, os dois se conhecem desde garotos, em La Higuera. Durante o caminho, ouvi quase todas as mesmas histórias sobre Che Guevara.
Eles costumam dizer que jamais vão se esquecer da guerrilha, porque depois dela, ficou a dúvida: Será que as coisas poderiam ter mesmo mudado com a utopia de Che? Nesse aspecto, as opiniões são unânimes: “Após os guerrilheiros, ninguém mais viveu expectativas tão próximas de que um dia a situação poderia melhorar”, dizem os camponeses.
Entramos em Vallegrande quase no fim da tarde. Sanchez conseguiu que ficássemos num alojamento de trabalhadores que esperavam ser chamados para uma colheita. Ficamos num quarto com mais dois camponeses, que nos serviram chá de coca e pão caseiro. A quantidade era pouca, mas nem por isso deixavam de dividir. Eles poderiam até ter guardado para o outro dia, mas, para eles, o amanhã já pode ser tarde. Depois de um tempo de conversa, decidi tomar banho numa bica ao lado de fora, mas quando vi meu corpo, comecei a ficar assustado. As marcas dos carrapatos estavam imensas, vermelhas, estupefadas, e começavam a incomodar ainda mais. Mostrei aos camponeses e eles deram risada. “Todo mundo deve passar por isso, ajuda na resistência”, riam. E como a coisa ainda não estava no grau insuportável, saí para dar uma volta por Vallegrande e tentar conhecer algumas pessoas.
Andei pela única praça da cidade, comprei uma água e fui procurar um lugar onde pudesse fumar um baseado sem chamar muita atenção. No caminho, achei o hospital onde havia ficado exposto o corpo de Che Guevara, naquela famosa foto em 10 outubro de 1969, onde ele aparece deitado, cheio de militares em volta, com um aspecto (que muita gente) comparara com a imagem de Jesus (sem mesmo nem ter certeza de como era Jesus Cristo). Tirei algumas fotos e, como estava tudo vazio, acendi o baseado ali mesmo. E enquanto olhava o local onde ficou o corpo, fiquei pensando em como deveria ter sido aquele dia. Mas logo depois já comecei a pensar nos 600 dólares que havia pego emprestado. Pois, sem nenhuma previsão de como pagar esse dinheiro, ficava até com um certo remorso de seguir em frente. Mas já era tarde pra voltar atrás. Sendo assim. “O que pintar eu assino”.
Fiz as fotos do lugar e voltei em direção à praça, onde algumas pessoas conversavam nos bancos. Passei um tempo por lá e entrei numa loja de fitas K7. Comprei algumas gravações de músicas típicas de Vallegrande e andei mais um pouco pelo vilarejo.
Diferente de outras regiões da Bolívia, o povo vallegrandino tem algumas características bastante peculiares, muitos são brancos e têm olhos verdes. As mulheres, junto com Santa Cruz, são as mais bonitas do país. Meia hora de caminhada e já se conhece toda a cidade, parei novamente na frente do famoso hospital onde colocaram o corpo de Che e bebi um litro de cerveja paceña. Até que duas garotas vieram conversar comigo, eram estudantes de agronomia e moravam perto do hospital. Peguei outra paceña num botequim e ficamos conversando sobre o cotidiano da vila. Uma das garotas mostrou interesse, mas percebi que estava sendo observado por um grupo de bolivianos que parecia bastante enciumado, então deixei que a coisa rolasse naturalmente.
Acabou que não deu em nada, mas também não fiz muito esforço para que a coisa andasse. Meu corpo estava fraco, e duas cervejas me deixaram alto, dei um beijo na boca de uma das garotas na hora da despedida e fui procurar a pensão onde estava Sanchez.
E como sou péssimo em guardar lugares, não consegui encontrar a morada dos camponeses. E já conciente de que não encontraria, fui procurar um pensionato para passar a noite. Entrei numa delegacia (com o bolso cheio de maconha) e perguntei aos policiais, que me indicaram o caminho de um albergue que ficava ali perto. Paguei o quarto por apenas uma noite e assim que me instalei no colchão, mofado, os carrapatos começaram a dar o aviso noturno. Tortura. Enrolei outro baseado para ver se aliviava. Nada. Por causa da coceira: pesadelos. Acordei às seis da manhã e voltei a procurar desesperadamente a pensão onde Sanchez estava, mas minha preocupação aumentou ainda mais quando lembrei da minha mochila com toda a grana da viagem que estava dentro.
Decidi começar tudo de novo, a partir da praça, de repente, avistei Sánchez, que estava bastante assustado. Ele disse que estava me procurando desde às cinco da manhã, e contou que já havia pensando em tudo, de sequestro a assassinato. Voltamos para o alojamento, e contei a ele o que havia feito na noite anterior. Me despedi dos camponeses, e fui almoçar com o viejo. Durante a refeição, reclamei milhares de vezes dos carrapatos e, como sempre, ele me disse para ficar tranqüilo.
__Isso que está acontecendo é uma benção, porque vai te ajudar nos obstáculos futuros. E, o melhor de tudo, é que essa vai ser mais uma daquelas histórias pra você contar nas tuas andanças por aí.
Depois disso, debruçado na janela do ônibus, avistei pela última vez as montanhas de Vallegrande.