O MONSTRO E O ANDARILHO

O MONSTRO

Passou a chave duas vezes no fecho da porta. Girando sobre seu calcanhar, pôde ter uma visão de toda a sala. Era uma sala espaçosa com uma grande mesa de madeira no meio, muito velha e empoeirada. Lembrou-se dos jantares de família, quando todos os primos se reuniam em volta dela alvoroçados. A casa ficava lotada e barulhenta. O único momento de silêncio era a hora da oração. Sua avó, mineira franzina de voz firme, era uma mulher muito religiosa.

- Que Deus a tenha. - repetiu, quase em sussurro, enquanto passava ao lado da mesa para verificar as janelas.

Téo nunca teve medo dos contos que seus primos contavam pelas noites no sítio. Sempre fora muito cético e se orgulhava bastante disso. "Tenho é medo de ladrão. Essa coisa de fantasma é baboseira!" repetia para seus primos.

Prosseguindo sua caminhada pela antiga casa observou, de relance, as velharias de prata, na estante, dividirem lugar com as teias de aranha. Cada passo que dava fazia o antigo chão de madeira ranger agudo. Notou que a alegria da casa, que ainda tinha em suas lembranças, havia se dissipado, dando lugar a um ar assombroso. Os incessantes flashes de luz da lâmpada fluorescente da cozinha, a única na casa que ainda lutava para se manter acesa, fazia parecer que uma tempestade, anunciada por trovoadas, se aproximava da sala.

- Só falta chover aqui dentro! – brincou Teó, prosseguindo sua caminhada pelos outros cômodos da casa.

Ao passar ao lado de uma janela, sentiu nos ossos a forte corrente de ar gélido que quase apagou sua vela, fazendo a chama dançar sobre a cera. Era um pequeno buraco no vidro do tamanho de uma mão espalmada.

- Talvez por isso essa casa seja tão gelada! - sussurrou novamente como se pudesse acordar alguém.

Voltou para garantir-se que a porta já estava trancada, afinal conferir não custava nada. "Cabeça de corretor vive tão cheia de problemas", pensou dando uma quase inaudível risada. Divagou por um instante sobre o fato de seu trabalho acabar trazendo-o de volta àquele antigo sítio, perdido em sua memória, para poder tratar de negócios em uma cidade próxima. Imaginou que no dia seguinte pela manhã já estaria de partida. Mal sabia o que a noite lhe reservava.

Apagou a luz da cozinha e foi deitar-se na cama que costumava usar em suas visitas ao sítio. Preferiu não dormir na cama da avó por respeito, não por medo do espírito da velha, que havia falecido tranqüilamente durante o sono. Afinal, não acreditava nessas “baboseiras”.

Sentiu o corpo afundar no colchão. O forte cheiro de mofo que ultrapassava o lençol não lhe incomodava as narinas. Cobriu-se com os dois cobertores que tinha levado, preparado para o gelado tempo mineiro de julho e fechou os olhos.

Um prolongado uivo. Lembrou-se de uma das histórias que seus primos contavam. Um Lobisomem, que vivia pelas redondezas e saía uma vez por ano para sua caçada. Para alimentar-se de carne. "Humana ou não!", diziam os primos!

- Hnf! Bobagem! - Pensou rindo novamente.

Passou um bom tempo se revirando de um lado para o outro sem conseguir dormir, tanto pelas insistentes lembranças nostálgicas que lhe vinham involuntariamente à cabeça quanto pelo frio que parecia vencer os dois cobertores.

- Maldita janela! Deve ser alguma corrente de ar frio entrando por ela e, obedecendo à Lei de Murphy, vindo diretamente a mim! - falou já se levantando para resolver o problema. Precisava dar um jeito naquele buraco da janela.

Seus olhos já haviam se acostumado à escuridão. Decidiu que não era necessário acender a vela novamente. Encontrou no armário alguns velhos lençóis, que decidiu colocar no buraco até entupi-lo completamente. Seguiu com passos firmes até a janela. Agachando-se sobre seus joelhos, começou a procurar algum grande o suficiente para tampar o buraco de uma vez só... Talvez nem precisasse de dois. Escolheu um lençol manchado com babados e levantou a cabeça na direção do buraco.

Um vulto lá fora! Com o susto, Téo caiu para trás sem equilíbrio! Numa fração de segundo seus olhos captaram a imagem. A menos de meio metro de distância da janela alguém passara apressado! O susto fez seus pulmões se encherem de uma só vez, numa potente aspirada. Com os olhos arregalados e com a respiração presa, podia ouvir seu coração batendo rápido. O que seus olhos tinham visto não parecia uma pessoa! Viu muitos pêlos e...

"Sangue??? Não pode ser! Essa história de lobisomem não existe! Eu estou vendo coisas, com certeza! Com certeza... ", ia pensando nervosamente enquanto respirava sem controle sobre os pulmões. "Deve ter sido algum fazendeiro pegando atalho para casa... e os pêlos? Deve ter sido um engano da minha cabeça ocupada. Ele deve estar com uma roupa marrom, e, afinal de contas, ele passou muito rápido na minha frente. Como eu poderia distinguir isso? E o sangue... é coisa da minha cabeça. Só pode ser. Malditas historinhas de terror!". Decidiu ir lá fora para conferir. Não podia estar enganado!

Dirigiu-se nos calcanhares em direção a cozinha onde o chão era azulejado. Não queria fazer barulho! Sairia pela porta do lado direito da casa, direção para a qual seguira o vulto. No caminho virou, por vezes, a cabeça em direção à janela. Chegou à porta da cozinha que dava para o lado de fora. Olhou pela fechadura, mas não conseguiu ver quase nada.

Abriu uma fresta com cuidado e espiou lá fora novamente. Nada. Continuou abrindo-a lentamente. O rangido crescente da porta o fez ter calafrios. Olhou para os dois lados e não viu ninguém. Resolveu seguir na direção do vulto.

Quando deu o primeiro passo para fora da casa, pareceu ter tirado um tampão dos ouvidos. Todos os sons ambientes tornaram-se altos e claros. Ouviu as folhas farfalhando ao sinistro sabor do vento. Foi caminhando em direção a parte de trás da casa. Precisava alcançar a quina para ganhar um maior campo de visão. O frio machucava-lhe os ossos. Prosseguiu vagarosamente, medindo todos os passos como se andasse em um campo minado. No chão as sombras das árvores mais altas, guiadas pela lua e pelo vento, dançavam num ritmo intenso. Tinha a impressão que as sombras tentavam agarrar-lhe os pés.

Aproximando-se do fundo, foi desvendando a paisagem cuidadosamente com seus olhos assustados. E mais uma vez perdeu o ar, quase soltando um grito de susto. Dessa vez não tinha dúvidas do que estava vendo!

Estava de costas. Seus pêlos eram compridos e se estendiam dos pés à cabeça! Téo sentiu um frio na espinha que rapidamente se espalhou por todo seu corpo. Ombros, pernas... e, então, congelou! Sentiu todos os pêlos de seu corpo arrepiarem. Teve vontade de sair correndo dali, mas a única coisa que conseguia fazer nesse momento era observar os movimentos do Monstro!

Seus braços peludos estavam levantados e semi-flexionados sobre a cabeça como se comemorasse algo. Seu corpo dançava sobre sua cintura, porém não estava se movendo. Téo sentiu todo o ar deixando seus pulmões quando pôde por fim perceber o sangue! Nas costas, nos braços... Muitas manchas de sangue!

O vento gelado, que soprava sua nuca, confundia ainda mais as suas idéias. O Monstro, então, deu um alto urro e abaixou os braços. Pareceu chacoalhar alguma coisa contra o tronco, como um homem sedento tentando descobrir se ainda há água dentro de um coco, "...ou como um ser faminto que tenta descobrir se ainda há carne dentro de um crânio...", pensou alucinado de medo enquanto soltava de uma só vez todo o ar que enchia de seus pulmóes. Mas o barulho da respiração dessa vez foi alto demais. E o Monstro se virou...

Não pensou em mais nada! Quando viu que a abominável criatura começara a virar sobre sua cintura, saiu em disparada! Atravessou como uma flecha a cozinha, pegando a chave do carro em cima da mesa. Não teve coragem de olhar para trás! Correu até a sala cortando caminho por dentro da casa. Talvez conseguisse ganhar algum tempo!

Abrir a porta principal da sala, que tinha sido trancada nas duas voltas da chave, pareceu-lhe demorar minutos! Quando finalmente saiu, pôde ver num relance a aberração contornando a lateral direita da casa, vindo em sua direção! Téo, então, começou a berrar por socorro enquanto corria aos tropeços na direção do carro. Os sons que o Monstro fazia se misturavam aos seus gritos numa sinistra sinfonia.

Entrando aterrorizado no velho Santana, não pôde enxergar nada na escuridão que se espalhava à sua frente. Quando acendeu os faróis conseguiu, então, ver a face do Monstro, quase em cima do carro! Viu as manchas de sangue sobre todo seu corpo! Era asqueroso! Tinha um focinho achatado, com a ponta preta, e um rosto redondo! Bem diferente do que imaginava sobre lobisomens das histórias do sítio! Viu o Monstro, enquanto caminhava em direção ao carro, colocar as duas mãos sobre a cabeça como se estivesse desesperado de fome.

Téo engatou a ré e acelerou. Arrebentou o antigo portão de madeira e a parte de trás de seu Santana ao sair às pressas do sítio. Nunca mais voltou àquele lugar. Nunca mais duvidou de histórias infantis.

O ANDARILHO

Voltava cambaleando alcoolizado pela estradinha de terra. "Maldita hora para me perder dos amigos!", pensou. Agora não sabia nem o caminho certo para voltar. Mas tinha certeza que era por aquela estrada. Talvez conseguisse encontrar o sítio se ninguém tivesse tirado o pôster de papelão da Julia Roberts, que tinham afanado na tarde anterior de uma locadora na cidade, da frente do portão.

- Quem diria! Eu... perdido em Minas... procurando pela Julia Roberts! - e deu uma risada bêbada. - Beto e Roberts. Até que não seria nada mal!

Ouviu um uivado prolongado. E riu-se novamente.

- Lobisomens!!! - murmurou Beto, que não acreditava nessas coisas.

Viera para Minas com os amigos para passar o feriado. O sítio, do pai de um deles, que lhes servia como hospedagem estava de cabeça para baixo.

Um vento forte bateu no tronco de Beto. Mas não sentiu o frio, apenas o impacto do sopro gelado do ar. Afinal, a sua roupagem pesada que lhe fizera passar calor na festa à fantasia inteira, salvava-lhe agora na volta para casa! Nesse frio não precisava tirar a parte da fantasia que lhe cobria a cabeça para que pudesse respirar melhor.

- Perfeito! Fui simplesmente perfeito! - e se lembrou com orgulho do sucesso que fez na festa. Sua imitação de Chewbacca¹, o monstro coadjuvante de sua série favorita, Star Wars, era impecável. Treinava o grunhido, característico do monstro, desde que começara a ver o épico, influência direta de um tio maluco por séries espaciais. Aqueles pêlos todos lhe cobrindo a fantasia o salvaram de ser congelado!

Sentiu uma pressão sobre sua bexiga. Decidiu entrar em algum sítio para aliviar e, quem sabe, encontrar alguém acordado por ali para pedir alguma informação, ou quem sabe emendar uma nova festa.

- É feriado afinal! Quem sabe não encontro um sítio só com mulheres por aqui? - naquele pensamento esperançoso que só boas doses de whiskey fazem alguém ter.

Mijar na estreita estrada de terra também lhe pareceu uma idéia de alta periculosidade, já que seus reflexos não estavam lá dos melhores!

Encontrou um portão encostado. Foi entrando pela estradinha que levava a garagem e viu um Santana vinho ali parado. Decidiu dar a volta até a parte de trás da casa.

- Se vou tirar água do joelho na casa de um desconhecido, pelo menos que seja, educadamente, na parte dos fundos! – murmurou contornando a casa.

No caminho foi pensando tristemente no estrago que tinham feito em sua fantasia favorita. O compartimento para munições que atravessava o peito na diagonal tinha se perdido no meio da festa (Ou no começo, ou no fim. Não se lembrava!). Pior ainda foi o grupo de "soldados imperiais" armados com paintball que, o considerando uma real ameaça, decidiram bombardear-lhe todas as vezes que o viam na festa (e também porque era o único alvo do lugar que, por conta de sua roupa, não se machucava com as potentes bolinhas coloridas). Sujaram-lhe toda a fantasia! Pelo menos aqueles pestes já tinham gastado todas as bolas azuis entre eles antes mesmo de chegar à festa, restando apenas a munição vermelha, que seria consideravelmente mais fácil de limpar naquela pelugem marrom.

Alcançou a parte de trás da casa e escolheu uma bela rameira de rosas para regar. Por sorte a fantasia tinha sido inteligentemente projetada com um zíper especial para essas horas. Beto pensara em tudo! Enquanto a pressão ia se aliviando, sentiu um tédio. Já que não tinha ido ao banheiro nenhuma vez desde que chegara à festa, descarregava, de uma só vez, todas as dez latas de cerveja e três doses de whiskey na roseira. Teve, então, uma idéia (daquelas que só bêbados têm) para combater a monotonia da ação. Decidiu prosseguir sem as mãos! Tirou uma mão de cada vez, para não perder a mira, colocando-as em seguida sobre a cabeça. Naquele momento, enquanto tentava manter-se ereto sobre a coluna, descobriu a verdadeira utilidade da posição original: o equilíbrio! Cambaleava muito sobre sua cintura, mas se divertia com o fato. Aquilo sim que era desafio!

Sentiu, então, uma forte pontada! "Não pode ser!!!", pensou dando um alto berro de dor. Pedras nos rins? Beto sabia como seu pai sofria com isso e sempre se lembrava do fator genético. "Preciso ir ao médico!", balbuciou baixinho abaixando as mãos novamente. Enquanto balançava seu instrumento, simulando baixinhos os sons da espada Jedi, Beto ouviu uma respiração alta nas suas costas. Virou-se e viu alguém sair correndo!

- Eeeei! - era sua chance de descobrir o caminho de volta!

Fechando o zíper, saiu em disparada atrás do vulto. Ao passar pela lateral da casa viu uma porta aberta.

- Que maluco! E ainda deixa a porta aberta! - disse caminhando de volta por onde tinha vindo. Ao chegar na parte dianteira da casa viu o fugitivo sair em disparada pela porta. Tentava gritar para ele, mas o apavorado homem berrava junto e não conseguia ouvi-lo! Beto, então, o viu “mergulhando” desengonçadamente no carro.

- Mas por que diabos esse cara está assustado? - resmungou Beto enquanto o viu o farol se acender.

- Meu deus! A fantasia do Chewbacca! - falou colocando as duas mãos sobre a cabeça para tirar a fantasia!

Mas era tarde demais. O homem já tinha engatado a ré e saído a toda velocidade, destruindo o portão com a parte de trás do velho Santana.

- Xiii! Fiz merda! - murmurou Beto voltando à estrada de terra.

- Bom. Voltemos ao que interessa... Julia Roberts! - prosseguindo sua longa caminhada pela noite...

[1] Monstro alienígena personagem da série Star Wars.

Josadarck
Enviado por Josadarck em 19/05/2008
Reeditado em 08/03/2009
Código do texto: T995512
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.