O CANOEIRO DE PARIS

 

"Verossímil ou não, doutor, ei-la em toda a sua verdade."

ALLIETTE

 

À ELISA, UM BRINDE ÀS NOSSAS AVENTURAS

 


Hoje, faz dezessete anos que estivemos em Paris. Foi a nossa primeira viagem internacional. Comemorávamos um ano de casamento; minha esposa queria aperfeiçoar o francês e eu queria aprender uma técnica de desenho realístico que um artista local ensinava. Se fosse só por isso, talvez, eu não escrevesse uma linha sequer sobre esse passeio. Milhares de pessoas viajam para fazer cursos e tirar fotos na grande torre. Nada de extraordinário nisso. Mas, aconteceu algo que merece o trabalho de rascunhar algumas palavras.

 

Fomos em outubro. A nossa intenção era ficar até o Reveillon. As expectativas estavam elevadíssimas. Uns amigos que haviam chegado da Europa e cheios de novidades, nos faziam as maiores recomendações. Cada fotos lindas! Com certeza, uma experiência incrível, e além do mais, já tínhamos traçados tudo  em nossa lua de mel. Foi um ano de preparação. "Mas, não seria melhor quitar logo o apartamento? "E o carro, não está na hora de trocar?" E esse dinheiro da viagem, não seria melhor guardar para quando o bebê chegar?" Tudo tem o seu tempo e o tempo para viajar era aquele. Era a nossa resposta. E, um ano voou como minutos.

 

Chegamos em Paris no dia quarto pela manhã, não por coincidência o aniversário de Elisa.  Para comemorar, tive a feliz ideia de jantarmos num restaurante chique à margem do Sena. Todas as revistas de viagens  e agentes indicavam o local. Descansamos o dia e à noite saímos. Por mais que a beleza da cidade seja explendida, ninguém  aguenta 12 horas de vôo.

 

No restaurante  a fila estava enorme; um sinal de que a publicidade estava funcionando. "Se demorava assim só para entrar imagina para comer?" Foi o que eu pensei, mas era o aniversário de Elisa, claro que valia à pena. Enfim, a nossa vez! Fizemos o pedido e enquanto o jantar era preparado, um garçom nos informou  que há  barqueiros que levavam turistas em passeio pelo rio enquanto a comida era preparada. Topamos! Afinal, ficar pelo menos 45 minutos sentados, esperando e o pior, vendo os outros comerem... Abraçamos a sugestão. 

 

À margem do Sena, procuramos nos informar. O estranho foi que não viamos nenhum barqueiro ou guia. Talvez, devido ao movimento intenso de turistas descendo rio... Ou tão fraco que os barqueiros não se deram ao trabalho de sair de casa naquela noite. Esperamos um pouco e vimos um. Estava meio longe.  Mas fomos em sua direção.

 

"Se eu fosse vocês não iria passear com aquele barqueiro!" Voltei a cabeça para ver quem estava falando com a gente. Era um mendigo. "Perdão, você disse alguma coisa?" Ele repetiu a mesma frase de antes, só que mais pausadamente: "Se eu fosse vocês não iria passear com aquele barqueiro" e apontou em direção ao homem que estava junto a uma canoa.

 

Veja bem! Um mendigo falando português, na França, e ainda por cima nos aconselhando para não irmos fazer um dos mais belos passeios do mundo. Quem me conhece sabe que eu até poderia não ir, mas queria saber o motivo.

 

"Por que não podemos ir passear com aquele barqueiro?" Foi a pergunta que fiz, mesmo sob os protestos silenciosos da minha esposa que Lançou-me um olhar fulminante, por sorte não virei pedra. É que, ainda no Brasil, recebemos inúmeras instruções sobre como "turistar" de forma segura na França, e uma delas era para termos cuidado com os mendigos. Mas, aquele mendigo era diferente, convenhamos. Falava português. Acho que isso, por se só, criou uma espécie de empatia entre mim e ele.

 

"Se me pagarem um café com crepe eu conto o que sei sobre aquele barqueiro." A princípio, não queria dá crédito àquele morador de rua, mas havia uma história e, se tem algo que gosto é de ouvir uma história.

 

Eu o chamei para ir a um  café ali perto, mas ele preferiu comer sentando no banco olhando para o rio, "os café não são muito amistosos com quem anda maltrapilho e fedendo além do normal",  disse sem desviar os olhos do barqueiro. Minha esposa não estava acreditando que eu estivesse caindo em um golpe tão descarado assim. Eu lhe disse que ficaríamos três meses na França e perder alguns minutos não faria  diferença. "Mas, é que é o meu aniversário!" Falou chateada.  Disse que iríamos jantar, depois a gente passeava. Afinal, ainda era cedo. Sob protestos, ela aceitou. Compramos o café e o crepe para nós três, um lanchinho antes da refeição principal, e voltamos para ouvir a história do mendigo. Ele estava lá, sem pressa, nos esperando. Bastou entregar o lanche que ele começou a falar como se a comida fosse a corda de um relógio antigo.

 

"Acho que vocês já perceberam que eu também sou brasileiro. Sou de Lastro, uma cidadezinha do sertão paraibano e há três décadas estou na cidade Luz, a maior parte como mendigo, mas nunca me distanciei daqui. Viemos em 1976 para comemorarmos o nosso aniversário de casamento. Eu e minha linda esposa Zélia. Era a nossa boda de papel. Vivíamos um sonho. o sonho mais lindo das nossas vidas. Paris ainda era uma bela cidade. Não o que se ver hoje em dia, um amontoado de gente com câmeras nas mãos, tirando foto de tudo e vendo nada. Tanto faz estarem aqui ou em Bauru. Nada importa para eles. Há trinta anos não. Era lindo o brilho no olhar dos visitantes que vinha de toda parte do mundo. À noite era um espetáculo. As estrelas iluminavam o céu e as ruas e o Sena era outro céu. Os namorados passeavam despreocupados seguindo o ritmo do amor. Era assim que eu e minha amada Zélia nos sentíamos.

 

O hotel em que ficamos era onde está o restaurante em que você talvez tenham pedido Poulet frites, delicioso por sinal. Do quarto, saltava aos nossos olhos uma fabulosa vista do rio. durante o dia, eramos uns verdadeiros turistas. Torre Eiffel, Jardim de Luxembourg, Notre Dame, a casa de Van Gogh e dezenas de outros lugares, conhecemos tudo. À noite, celebrávamos com uma bela garrafa de vinho Saint-Émilion. Era a vida que pedíamos a Deus.

 

Com a  taça cheia eu bebia e olhava o rio pela janela. Era como se ele estivesse ao alcance das minhas mãos. Tinha a sensação de que dava para encher a minha taça com suas águas só estendendo o meu braço. Então, tive a ideia brilhante: irmos navegar entre as suas estrelas. Foi em uma noite como hoje, um quatro de outubro.

 

Ela amou. Seria a coisa mais romântica que tínhamos feito desde que chegamos. Com poucos passos alcançamos às margens do grande rio. Ela me falou que eram as águas mais lindas que já vira. Eu concordei com um pequeno sorriso. Andamos de mãos dadas por um tempo sem que encontrássemos um barqueiro. Como hoje, parecia que todos estavam de folga. Andamos mais um pouco. Poderíamos passear de mãos dadas a noite toda. Estávamos felizes um com o outro. Finalmente um barqueiro. Quase que corremos ao seu encontro para evitar que algum outro casal chegasse primeiro nele. Parecia experiente, mas não passava confiança. Me refiro ao seu porte. 

 

Ele era magrinho. Mas nós não éramos tão pesados a ponto de causar-lhe dificuldades. Quando olhamos mais de perto, ele parecia ter uma deficiência. Sabe aquelas pessoas que tem uma corcunda, um tipo de protuberância nas costas? Nosso barqueiro era assim. Quando nos viu, ele mesmo ofereceu imediatamente o seu serviço. Apesar da primeira impressão não tão favorável, ele era simpático. Eu quis acertar o preço, mas ele disse que naquela noite o passeio era de graça. Um presente de casamento.

 

Mas, quem falou para ele que estávamos comemorando algo? Talvez fosse o nosso amor  tão explícito. Ele subiu de um salto na canoa. A sua agilidade era impressionante. Nós tivemos um pouco de dificuldade, mas subimos;segurei a mão da minha amada e assim, iniciamos o nosso passeio.

 

A lua refletindo na água e o rio nos iluminava. Tudo perfeito. A gente balançava ao ritmo do rio.  Eram ondinhas que batiam na canoa e a canoa revidava delicadamente. Era como uma valsa. O balançar aos poucos ia aumentando o ritmo. Olhamos para o barqueiro, ele estava impassível. Concentrado em seu serviço. A cada novo balanço, aos poucos ele foi mudando e percebemos que em seu rosto nascia um sorrizinho. Foi necessário nos segurarmos nas bordas da canoa. Com a outra mão eu segurava Zélia e ela me segurava. Perguntei a ele se isso era normal.

 

O barqueiro começou a sorrir alto  Quanto mais balançava a canoa mas ele sorria. E cada vez mais alto, até quase gritar. Ele colocou o remo dentro da canoa. Levantou o próprio peso equilibrando-se no remo. Parecia uma rã pendurada em um galho. Pensei em saltarmos. Mas, tive receio sobre a profundidade do rio e minha esposa não sabia nadar.  Sem contar que estávamos longe da margem. O pânico tomou conta de nós dois. Como agir? Apenas o que mais queria era proteger a minha Zélia. Enquanto eu pensava no que fazer, o barqueiro avançou sobre nós. Parecia que criara pernas como aranha. Com seus braços finos e pernas compridas, deu dois saltos  e voou em  mim. Zélia gritava, quase caindo no rio. Eu gritava com aquele ser preso no meu pescoço. E o barqueiro ria delirantemente. . Arrancando-me mechas de cabelos e de barba com uma força monstruosa e me causando dores horíveis. Eu estava literalemente preso entre suas pernas e braços.  Como era possível que tudo aquilo estava acontecendo e ninguém estava vendo ou vindo nos ajudar? Parecia que tudo estava normal ao longe. Estavamos vivendo um inferno e mais ninguém percebia.

 

Tentei me desvencilhar, mas suas unhas se enfincavam nas minhas costas e eu gritava de dor. Seus dedos pareciam penetrar em minha carne, remexia meus músculos me rasgando. E tudo isso muito rápido. A sensação que tive era que ele queria me atravessar. Meu último ato de desespero  foi enfiar-lhe os dedos nos olhos, quase que os arranquei da órbita. Pareceu ter dado certo. Soltou um grito horrendo parecido com um grunido. Quando pensei que tinha conseguido me soltar, ele com mais fúria  cravou seus dentes no meu pescoço. Mordeu-me; estava espumando de ódio. Foi a dor mais terrível que já senti. No lugar de dentes, o miserável tinha agulhas que penetraram em minha carne. A dor foi lancinante. Ele  levantou a cabeça e vi em sua boca o pedaço de carne ainda sangrando. Era como se fosse um predador exibindo o seu trofeu.

 

O maldito pulou de  mim e saltou em cima da minha Zélia. Coitada. Não sei como não desmaiou diante daquelas cenas; era a criatura mais delicada do mundo. Mas ali,  paralizou de medo. Ele Agarrou-se ao pescoço da minha esposa e a derrubou da canoa, caindo os dois na água. Tentei impedir. Pulei, mas não pude salvá-la. Ainda toquei sua mão, só consegui pegar a aliança que trago  nessa corrente. Vi minha amada afundando com o endemoniado barqueiro preso ao seu pescoço. Ele ria. Eu podia ouvir o seu riso demoníaco mesmo debaixo da água. Tive que subir à superfície. Não consegui prender o fôlego por mais tempo, por pouco não me afogo. Antes também tivesse morrido naquele dia. 

 

Corri feito louco à procura de ajuda. Fui às autoridades e lhes contei a minha história. Mas me tomaram por louco. Não acreditaram em nada. Diziam que era invenção minha. Ninguém havia visto barqueiro algum naquela noite no rio. Além do mais, Fui preso por conta do desaparecimento da minha esposa, mas logo me libertaram, pois concluíram que não havia esposa alguma. Passei dias e dias na margem do rio procurando ver se recuperava o seu corpo. Perguntei a todos os barqueiros e pescadores que passavam por aqui. Fui aos necrotérios da cidade e das cidades vizinhas. Nunca a encontrei. Ela havia sumido.

 

Nesses trinta anos, pouco saí daqui. Nunca mais voltei para minha terra. Gastei todos os meus recursos nessa procura. Trabalhei em tudo o que se pode imaginar... Mas fui envelhecendo e cada dia mais difícil de conseguir algum bico que pudesse me garantir um local para passar a noite ou um prato de comida. Passei a mendigar pelas ruas, mas nunca longe dessas margens.

 

Até hoje eu sonho com a minha Zélia... Saindo do rio e me abraçando. Linda como sempre, mas quando estamos juntos, aquele maldito se pendura em seu pescoço e a leva para as profundezas novamente.

 

Desde que aquele dia eu fico aqui alertando os casais desavisados. Uns me escutam, outros me têm por doido, mas não deixei o miserável fazer mal a mais ninguém. Fiquei esperando ele por muito tempo. Aos poucos, fui percebendo que o maldito barqueiro só vinha uma vez por ano, no dia quarto de outubro. E, quando a noite passa e ele não consegue mais alguma vítima ele me olha de longe, com aquela cara com ar de riso de perversidade, igual ao dia em que ele levou a minha amada Zélia. 

 

Pesquisando sobre essa história, achei um livro de 1867, escrito por Émile Zola e conta a história de um rapaz chamado Camilo, com as mesmas características do barqueiro assassino. O amante da sua esposa o matou e, antes de morrer, ele mordeu o seus algoz no pescoço, como fez comigo, vejam. Faz trinta anos e ainda sangra. É como se eu tivesse sido mordido hoje.

 

Já  desapareceram 19 mulheres e a minha Zélia foi a última. Desde 1976 aquele miserável não causa mais dor a nenhum casal e assim vai ser até o meu último dia de vida. Foi a promessa que fiz a mim... Uma maneira de honrar a memória da minha amada.

 

Acho que o  prato de vocês já está pronto. Obrigado pelo lanche, pela companhia e por ouvir a história de um velho doido, pelo menos segundo as autoridade."

 

Saímos dali estarrecidos com a história. Um monólogo de quase meia hora que prendeu a nossa atenção em todo o tempo. Até Elisa, apesar de incrédula, podia ver um pouco de medo ao observar o canoeiro ao longe. Verdade, mentira ou loucura? Por via das dúvidas, jantaríamos e iríamos logo para o hotel; três meses é tempo suficiente para explorar Paris, mas não comecariamos naquela noite.

 

FIM

 

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George Itaporanga
Enviado por George Itaporanga em 07/03/2023
Reeditado em 18/02/2024
Código do texto: T7734615
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