ENTROU DE PENETRA NUMA NAU ( A Saga do Cacique Jadel Luna Poetá)

 

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Sou das andanças, busco novos horizontes, culturas, nossas raízes, sabores e amo conhecer gentes e ouvir as suas histórias. Já fui para todos os cantos do País e absorvi muito conhecimento, o que me enriqueceu como ser humano. Foi numa dessas empreitadas, que me deparei com uma história muito inusitada, a do Cacique Jadel Luna Poetá. Vou lhes contar o que ouvi pela boca do próprio ancião.

 

Estava eu visitando umas terras indígenas afastadas, uma espécie de reserva não oficial, mas, era tão dentro da mata, que eles viviam como nos tempos dos seus ancestrais, mesmo que tivessem aculturamento e contato com os 'brancos' por assim dizer, para comprar alguns suprimentos e receber tratamento médico, vacinas e outras coisinhas. O lugar era lindo, selvagem, nato, uma natureza que recebia o visitante em seu máximo deslumbre, fiquei impressionado.

 

A visita correu como de costume em outras aldeias, que eu já havia visitado. Comi a melhor tapioca com ervas da minha vida, experimentei um porco com taioba e farinha que estava uma delícia, me pintaram com henna, provei uma beberragem meio leitosa que me deixou meio aéreo, mas, não abusei. Comprei colares de contas e um cocar d'um azul incrível que teria lugar cativo, em minha parede da sala. Percebi depois de muito banho de rio e pescaria que havia bem longe das ocas, uma palhoça mais fechada que as demais, perguntei ao indígena que estava me mostrando tudo, se poderia ir até lá e a resposta me assustou, ele respondeu com um NÃO!!! tão categórico, que me calei obediente e não toquei mais no asssunto, até o término da semana que fiquei por lá. Mas, bicho curioso que sou, dei um jeito de antes de pegar a trilha de saída da tribo, de passar na oca proibida, talvez fosse alguma crendice daquele povo e isso não me afetaria, esperei o começo do cair da tarde e meio que escondido, dei uma volta maior e cheguei lá, o que encontrei me deixou bastante intrigado, vou contar para vocês, pois é preciso partilhar.

 

A trama das palhas eram mais fechadas naquela oca, muito barro e cordas se entrelaçavam naquela construção rústica, havia calor e um tênue movimento se percebia, imaginei que tinha alguém vivendo ali. Chamei num tom de voz moderado e um esboço rouco de voz me disse entre. A visão de um velho ancião, meio redundante, mas, ele era mesmo muuuito velho, preso por uma argola grossa no pé esquerdo, que ficava presa à um poste de madeira largo e revestido de moedas antigas de prata e mais alho, além de uma infinidade de cruzes de madeira. Confesso que até ri por dentro, será que pensavam que ele era um vampiro indígena rsss....eu não podia imaginar o quanto de verdade existia na minha hilária suposição.

 

Fui me aproximando devagar, expliquei que era um turista curioso e que como me negaram visitar aquela oca, a curiosidade foi maior do que o bom senso. Ele foi cortês em sua humildade e me perguntou, se eu queria ouvir a história dele, respondi que sim, me serviu água com gosto de cana de açúcar e começou um relato inacreditável.  

O ancião não sabia precisar ao certo, mas, acreditava que era em torno de 1915 e ele era como eu, muito curioso, bem jovem enveredou por aquelas matas até alcançar o mar, que nunca tinha visto. Estranhou a água salgada, as ondas batidas, mas, se encantou com a paisagem. Continuou andando e não via ninguém por aquelas bandas, avistou batendo numas pedras uma nau velha, com o casco todo arrebentado, o que deveriam ser velas eram só farrapos, mas, parecia que tinha algum movimento lá dentro, a curiosidade menina aguçava e ele resolveu entrar na nau fantasmagórica. Estranhou também não ver nada que prendesse a embarcação, pois batendo daquele jeito nas pedras, não afundou tampouco se destruiu totalmente com o tempo. O velho índio não sabia dizer o nome do buraco por onde conseguiu entrar, mas, imaginei ser uma espécie de escotilha, não corrigi deixei que ele seguisse o relato. Contou que ao entrar achou tudo muito escuro e limpo demais, para um barco grande tão destruído. Ouviu cantorias na sua própria língua e isso fez com que ele fosse a procura do som, se espantou com o que viu. Eram uns dez indígenas, mas, com a pele tão branca que pareciam feitos de Lua, o velho Cacique Jadel Luna Poetá ainda menino, tentou interagir com eles, só que ao invés de lhe responderem, apenas ficaram todos juntos cheirando cada pedacinho dele, até em lugares que nem cachorros já o haviam cheirado. Deu um certo medo, ele se controlou pois eram índios como ele. Começou uma apalpação estranha com batidinhas no pescoço e nos pulsos e um deles arreganhou a boca, onde dentões pontudos morderam com força o seu pescoço, outros logo se aproximaram para fazer a mesma coisa, só que antes que eles cravassem de novo os dentes, ele correu que nem doido e pulou no mar, mesmo que as ondas que desconhecia o cansassem muito, chegou até a praia com os bofes na boca. Arrumou forças com seus ancestrais e colocou asas nos pés, fugindo de lá o mais rápido que pode, que índios estranhos viviam naquela nau.

 

Chegando à tribo contou tudo o que havia presenciado e ninguém parecia acreditar nele, exceto o pajé que resmungou alguma coisa incompreensível e lhe deu um tapão na cara, mandando que o prendessem numa árvore com cordas bem fortes até a próxima Lua cheia e o deixassem lá. Mandou deixar água, peixe seco e farinha perto dele, calou-se e ninguém questionou a ordem dele, só o velho ancião menino ficou sem entender, o motivo de estar sendo punido...até o nascer da Lua cheia.

 

Quando a nova lua cheia despontou alta no céu, o menino que viraria ancião, começou a ganhar pelos, coisa que não tinha antes, foi ganhando uma força absurda e uma sede de sangue que não entendia. Sua boca foi se abrindo e dentões foram surgindo rasgando as gengivas. O gosto do próprio sangue era bom, muito bom, quase que se mordeu. Um porco do mato apareceu e já que as cordas que prendiam seus pés, com o ganho de massa muscular repentina se arrebentaram, ele se lançou sobre o animal sem lhe dar qualquer chance, sugou seu sangue com gana e saciado adormeceu. Acordou com uma sensação estranha, completamente nu e sem pelos. Reparou que havia respingos de sangue por todo lugar e que já não estava na mata e sim numa oca bem fechada. A tribo estava toda junta no centro da taba, ouviam o pajé com muita atenção e os olhares eram de pesar e até um certo medo. Onde estava era mais distante deles e não conseguia entender o que ele falava, no dia seguinte pelo menos era o que ele pensava, entraram dois amigos do Cacique e o prenderam como eu o tinha encontrado em minha visita.

 

Durante a Lua cheia ele havia matado não só o porco, mas, também duas jovens índias da tribo, então, ele terminou o seu relato me olhando fundo nos olhos, que estavam estupefatos na hora e tenho que confessar, que durante o tempo em que eu ouvia a história dele, eu fora me afastando cada vez mais dele. Percebi que a noite já ia alta e uma Lua cheia se apresentava, me despedi vendo alguns pelos aparecerem em seus braços e fugi. Corri como um louco e à beira do rio, encontrei um pescador dormindo numa rede dentro da lancha, joguei umas cédulas sobre o homem assustado e praticamente implorei, para ele me tirar dali. Até hoje tenho pesadelos com este episódio em minha vida. Creio que frustrei uns bons anos da minha estrada, por medo de me aventurar em lugares pouco públicos. O fato me marcou tanto, que amante de uma boa carne mal passada, hoje em dia não consigo ver sangue tampouco aprecio a cor vermelha.  

 

 

 

 

 

* Imagem - fonte      vocerealmentesabia.com

 

 

 

 

 

 

Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 23/05/2022
Reeditado em 23/05/2022
Código do texto: T7522261
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