OS MISTÉRIOS DA ACRÓPOLE

Andava despreocupado pelo shopping, estava no primeiro andar, em frente a uma livraria. Resolvi entrar. Olhava todas as prateleiras e estantes. Milhares e milhares de exemplares expostos. Um deles me chamou a atenção. Tinha a capa escura, com desenhos surreais. O título bastante interessante: "Os mistérios da acrópole”. Quis lê-lo. Levei-o.

Ao passar pela caixa, a moça disse enquanto me agradecia pela compra. Tenha uma boa leitura! Não lhe dei atenção. Corri para casa. Não sei porque, mas, senti uma atração diferente por conhecer o que havia na tal acrópole.

Tomei um banho, vesti o pijama e comecei a leitura.

Coloquei uma pilha de travesseiros, recostei neles e fui lendo tudo o que estava escrito sobre o autor, capa, contracapa e prefácio. Era bem espesso, mais de quinhentas páginas.

Entrei no prefácio que dizia que a obra era o mais puro relato dos mistérios na acrópole escondida em meio a uma densa floresta solta nos vales e incrustada nos imensos montes de arenito, com mais de mil metros de altitude, os vales cobertos por lagos, cachoeiras e rios abundantes e era ali que se enterravam os mistérios. Li rápido, pois, minha curiosidade era aguçada pelo desejo de saber o que estava por vir. Quais mistérios seriam esses e por quê acreditar neles?

O trem saía na primeira hora do dia. Precisei ser pontual para o embarque. Quando cheguei na estação escutei o apito. Sai correndo e consegui entrar no último vagão. Procurei por uma poltrona vazia e por sorte havia uma, no canto, sob a janela, no fim do corredor. Estava meio escuro.

Ao meu lado ia uma mulher. Notei que era do sexo feminino por conta da bolsa de mão. Cumprimentei-a, mas não obtive resposta.

Estava tão eufórico que ouvia as batidas do meu próprio coração e a respiração bem ofegante. Tentei acalmar. Fechei os olhos. O barulho e o sacolejar dos vagões sobre os trilhos davam a sensação de que não estava indo para um lugar agradável. Não me incomodei com a previsão. Queria mesmo amanhecer na acrópole.

A mulher ao meu lado havia desaparecido. Fiquei pensando, porque não a vi desembarcar.

E era verdade, não me enganei. Ela não descera, havia ido ao banheiro. Acho que cochilei.

Fingi que dormia quando a vi se aproximar. Meu coração deu um salto. A criatura era horrorosa. Tinha os olhos esbugalhados e enormes embaixo de uns óculos fundo de garrafa. Os cabelos eram crespos e ralos que em alguns lugares dava para ver o couro cabeludo. Os dentes saiam para fora dos lábios, mesmo com a boca fechada. Reparei que dos braços, sob a camisa xadrez de mangas longas, escapuliam pelos grossos e avermelhados. De esguelha pude ver que os mesmos pelos lhe saiam também pelo colarinho da camisa, ainda que esse estivesse fechado até o último botão. Fiquei estarrecido.

Tive vontade de procurar outro assento, mas, percebi que não havia lugar desocupado. Tive urticária. Queria que chegasse logo ao meu destino.

Às seis em ponto o trem para na estação. Hora de descer.

Devido o vagão estar muito cheio, permaneci sentado até que a mulher se fosse. Assim que ela se levantou, fui atrás.

Quando cheguei lá fora, as pessoas que estavam no meu vagão tinham sumido, inclusive a mulher peluda. Olhei para todos os lados e me vi sozinho.

Eram tantas montanhas que não dava para ver o sol. O lugar era frio e úmido. O chão da estação estava coberto de lodo verde. Os guichês e balcões completamente vazios. Quando retornei à porta, o trem também havia ido sem que eu ouvisse o apito e muito menos o chacoalhar das engrenagens.

Meu coração veio na goela. Precisava fazer xixi. Certamente eu estava meio dormindo. Fui ao banheiro, na volta, descobriria se estava enganado.

Vi a placa indicando a toalete masculino. Na entrada, havia um emaranhado de arbusto verde com um cheiro nada agradável. O lavatório era uma pedra em forma de leão e a sua boca servia de torneira. A pia era uma tartaruga gigante de casco para cima. O tal leão tinha um dos olhos cor de fogo. Pus o dedo e jorrou água. Ao pôr as mãos descobri que estava muito quente. Assim que a água caiu, a tartaruga escondeu o pescoço. Apertei o outro olho do leão, a água saiu fria. Enfiei logo as mãos e lavei-as.

A essa altura, nem raciocinava mais.

Empurrei a porta do banheiro e não vi mais nada. Quando abri os olhos, vi uma cobra gigante enrolada, era o vaso sanitário. A cabeça estava no alto da parede de onde saia água, era o chuveiro e a descarga era a ponta da sua cauda cheia de anéis, que apertando contra a parede desciam os dejetos do vaso. Ainda deitado no chão, vi que tinha feito xixi na roupa.

Ao sair do banheiro olhei as descomunais montanhas cobertas de vegetação e árvores frondosas.

Uma legião de macacos rondava a estação. Fui andando devagar e encontrei uma criatura corcunda, de pernas tortas, barbas enormes e com uma cabeleira que ia até as nádegas. Vestia uma túnica suja feita de aniagem. Trazia sobre a corcunda um saco cheio de abóboras. Empilhou-as na calçada da estação.

Estava atordoado, mas resolvi perguntar assim mesmo sobre um lugar para que eu pudesse descansar. Ela me entendeu, mas, deu a resposta numa língua esquisita que não compreendi. Agradeci e ela soltou uma gargalhada.

Tremi dos pés à cabeça e comecei a suar frio.

Seus dentes eram pontiagudos e encardidos, uns mais compridos que outros e pareciam estar sujos de sangue.

Quase sai correndo, mas, para onde eu iria, se de todos os ângulos que eu olhava só via montanhas, de onde desciam grossas cachoeiras, matas e os tais macacos barulhentos.

Entrei novamente no bar da estação. Atrás do balcão havia uma mulher gorda espremendo laranjas. Chamei-a, ao se virar pude ver que tinha apenas um olho no meio da testa e sorriu, era totalmente banguela.

Resolvi caminhar por ali. Não havia outra saída. À medida que eu ia andando atrás de mim ia desaparecendo. Sumiu a estação, os macacos, assim como, a criatura com suas abóboras.

Desci uma ladeira para chegar mais próximo da cachoeira. O caminho foi-se abrindo e começou a aparecer algumas flores coloridas e milhares de borboletas sobrevoando-as. As borboletas eram carnívoras. Notei que comiam todas as flores e deixavam os ovos pelo chão afora. Os ovos, imediatamente se tornavam lagartas, que também comiam as folhas e o caule e assim que os comiam, morriam.

Avistei um grande lago ao pé da montanha de onde descia a cascata maior. Embora com o coração aos pulos de tanto medo, resolvi verificar o local. A água era azul e transparente, dava para ver o fundo e os lambaris prateados trombando um no outro. Por um instante esqueci onde estava e fiquei admirando a beleza do local. Olhei para cima e vi que a montanha de onde pendia a água cristalina era cheia de fendas e grutas. Nas fendas pude ver muitas araras coloridas com seus parceiros e filhotes. Dava para atravessar o lago por sobre os blocos de pedras. Estavam ali, como que se alguém os tivesse colocado propositalmente. Os mais altos davam uns três metros de altura. Subi o barranco e pulei sobre o primeiro bloco e fui andando sobre eles, rapidamente atravessei e dei de cara com uma entrada larga esculpida na rocha e lá dentro havia um grande salão. Tive medo de entrar, mas alguma coisa me puxou para dentro. A porta se fechou. Quis sair correndo, mas, não dava. Estava perdido. Preso. De repente, uma luz se acendeu no fundo da grandiosa gruta.

Pensei comigo: tenho que encarar. Não há como fugir. Cautelosamente fui andando na direção da luz, à medida que andava ela ia ficando mais distante. Andei até ficar exausto. Quando eu parava para descansar a luz também parava. Em dado momento sentei ao chão. Levantei os olhos e visualizei um despenhadeiro que não tinha mais fim. Achei que o chão ia me engolir. Não podia parar. Uma força estranha me levava. O lugar era escuro e fétido.

Descia como se desce a uma mina. No fundo, havia muitas caveiras e ossos esparramados no barranco. Permaneci ali sem coragem de levantar. Meu coração batia, descompassadamente. Minha roupa estava encharcada. Não soube decifrar se estava suado, ou se tinha chovido. Precisava sair daquele lugar, mas, não atinava o que podia ser feito.

Chegou um carrinho vindo do alto através de uma corda de cabo de aço. Não pensei duas vezes, passei para dentro dele. Havia mais duas pessoas junto comigo, porém, só via o corpo, o rosto estava escondido por uma máscara preta. Podia distinguir que se tratava de um casal, homem e mulher... traziam colares no pescoço com várias voltas, feitos de dentes humanos. Olhava e sentia nojo. Um cheiro de carniça pairava no ar. Chegamos à superfície. Os dois saíram abraçados sem nada falar. Assim que me deram as costas, sumiram.

Desci horrorizado e com muito medo. Comecei a procurar o caminho de volta e nada via. Uma névoa fechava tudo à minha volta. Mal sabia onde pisava.

Olhei para o céu, mas esse não existia. Era tudo um espaço em branco, sem céu, sem nuvens e sem sol. Baixei a vista para ver onde pisava, também não vi nada. Estava flutuando num espaço que parecia não ter gravidade. Quis chorar, também não pude. Constatei que não havia sentimento em mim, até o pavor tinha se dissipado.

Podia pensar. Que bom! O Cérebro estava no lugar. Minhas roupas secaram. Olhei para mim, vi que estava vestido, mas, o corpo era tão leve, que não o sentia. A cabeça sim, pensando por onde sair e porque estava ali, flutuando.

Ouvi um grito: - Tem alguém ai? – respondi que sim. Estou aqui, mas, aqui, aonde? Como ia descrever tudo aquilo! Ouvi novamente a voz: - Venha para cá! - Para cá, onde, por favor, não vejo nada, só um espaço vazio!

A voz era feminina. Disse: Segura na minha mão. Tateei e achei a mão. Era gelada. Misericórdia, pensei! Será que é uma alma penada?! Deus do céu, acuda-me! Até então, não havia pensado em Deus. Que burrice a minha! Só mesmo Deus para me tirar dessa enrascada!

Segurei firme, não podia soltar. Sentia uma dor tremenda, porque era fria demais. Uma pedra de gelo, contudo, era a única chance de sair daquele lugar macabro.

Fechei os olhos e me deixei conduzir, não sabia para aonde, mas, fui. Volta e meia segurava o pulso da mulher com a outra mão para não me perder. Ela não fazia nenhum esforço. Eu que tinha que dar um jeito de ela não se desprender de mim. Esfregava a mão dormente na minha roupa enquanto com a outra me agarrava ao seu pulso. Aos poucos fui percebendo que o pulso tinha vida, somente a mão era de gelo, molhada e que pingava sem parar. Quando aqueci um pouco minha mão morta e voltei para segurar a mão da mulher, a mão havia desaparecido, ficou só o cotoco do punho, grudei nele. Estava quentinho. Fui levado daquela forma por um tempo incalculável, que não saberia precisar.

Não via a hora de poder encontrar algo palpável aos meus pés e aos meus olhos.

Senti um vento forte no meu rosto. Sacodia minhas tranças. Não lembro se algum dia tive tranças. Agora tinha, duas grossas e longas tranças pregadas na minha nuca. Será que virei Rapunzel e estou presa na torre do castelo? Sacudi a cabeça para me livrar do pensamento estapafúrdio. Meus olhos permaneciam fechados. Tinha medo de abri-los e me deparar com mais alguma coisa tenebrosa.

Não mais que de repente, senti meus pés molhados e a água foi subindo vagarosamente. Olhei sem pestanejar e estava com a água chegando à cintura e sozinho de novo. Era o lago transparente. O mesmo em que vi os lambaris, mas, essa parte estava do outro lado da montanha. Fui andando temerosamente até a orla. Havia muitas flores rasteiras penduradas, as quais estavam carcomidas dos peixes, que delas se alimentavam. Vi ainda, muitas crianças de roupas brancas sentadas sob as frondosas árvores que circundavam o imenso jardim junto ao lago.

Olhei para o céu e o vi azul como nunca e as montanhas tomadas de arbustos e cipós de onde se podia ouvir o canto estridente dos pássaros e o ronco ardoroso da cachoeira.

O lugar era lindo. Diferente do que eu vi quando cheguei.

Olhei ao redor. Sentei no lajedo de pedras. As crianças foram embora, mas, ainda dava para escutá-las. Quis acompanha-las, mas não tive forças. Não sei por quanto tempo fiquei ali.

Sobressaltei-me com o latido de vários cães. Fiquei esperando. Alguém tem que aparecer por aqui, mas, que não me apareça nenhum bicho feroz, pensei em voz alta.

Mais calmo, pude olhar o lago. Constatei que não era tão grandioso, todavia, onde caia o volume de água e pela altura que caía, devia ser bem profundo. A água estava azul e por uma das fendas da montanha o sol batia na água e se refletia nas folhas das árvores, que balançavam com o vento, dando um resplendor dourado que parecia ouro misturado à cortina de água que descia. Os peixes nadavam e pulavam nas sementes que caiam das árvores, antes que elas alcançassem a água.

Todo aquele sufoco que tinha passado,virou calmaria. Realmente o lugar era de paz. Suspirei fundo. Amanheceu e o sol já estava quase a pino. Sentia uma dor terrível no pescoço e o livro estava caído sobre o tapete.

Marta entrou no quarto, perguntando o que aconteceu. Não soube responder. Nunca tinha acordado tão tarde. Alonguei-me para melhorar a dor no pescoço e fui ao banheiro, enquanto ela abria as cortinas.

Sentado no trono,refiz tudo o que vivi nessa noite de pesadelo e perdi totalmente a vontade de ler o livro.

Doei-o nesse mesmo dia, à primeira pessoa que teve a curiosidade de perguntar sobre ele.

Creusa Lima
Enviado por Creusa Lima em 24/10/2020
Reeditado em 27/01/2024
Código do texto: T7095164
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