Uma Lágrima Para o Meu Funeral
 
O tempo não volta,
o que volta é a vontade
de voltar no tempo.
 
     É impossível dizer o quanto esta frase se faz verdade, afinal aqui estou novamente, uma mulher adulta querendo retornar àquele tempo em que era apenas uma garotinha, cujos anos não contavam meia dúzia. Meia dúzia também pode ser seis, lembra disso? Claro que lembra: me explicou isso na mesa da cozinha, me ajudando com a lição de casa, enquanto a mamãe preparava o almoço. Eu estava no prézinho, você na oitava série. Eu usava camiseta branca, shortinho vermelho e um tênis conga — e você tinha Kichute's e amarrava os cadarços nas canelas. Parece estranho hoje, mas naquela época os garotos faziam isso, principalmente os que jogavam futebol, e você era um dos melhores jogadores. Aliás, sempre foi o melhor em tudo. Você era o meu herói, o meu irmão mais velho. Eu o amava, ainda que não soubesse o que de fato é o amor.
     Às vezes no silêncio da noite
     Eu fico imaginando nós dois
     E fico ali sonhando acordada, juntando
     O antes, o agora e o depois
     Talvez nem se recorde de quando escutou esta música pela primeira vez, mas bem lembro que o ano era 1995 e a cantora Sandra de Sá. Você a tinha gravado nos dois lados de uma fita cassete e às vezes ficava a noite inteira ouvindo walkman. Meu quarto era próximo ao seu e dava para ouvir a portinha se abrindo e a fita sendo trocada de lado — e você chorando.
     Ah, Guilherme! Entre todas as canções que fizeram parte de nossa vida, esta é a que mais me marcou e hoje me pergunto se você sabia que ela nasceu sob o lirismo da alma feminina, mas que na verdade foi composta por um pai inspirado no sofrimento de sua filha ao romper com o namorado. Meu querido, a inspiração é uma dama astuta que vaga por caminhos obscuros e incompreensíveis, assim como a maldita sina que compôs a nossa história. Eu tinha cinco anos e você onze, quando me pediu para fazer aquilo contigo pela primeira vez, lembra?
     Entretanto, embora a desgraça tenha baixado suas asas sobre nós, houve os bons momentos e é deles que por ora quero recordar.
***
     Ainda morávamos naquela casa verde no final da Serafin Coli, seu telhado vermelho de duas águas e muro baixo tão recorrentes ao sossego de cidade pequena. Águas de Lindóia, um ótimo lugar para se viver e crescer — e é uma pena que na inexperiência de minha pouca idade ainda não soubesse o quanto amaria este lugar.
     Você sempre se portou como irmão mais velho, protetor e comedido, e mesmo eu sendo um toquinho de gente, sem dúvidas era a mais espevitada.
     Nossa rua não tinha saída e nem asfalto, tornando-se um verdadeiro paraíso para a molecada brincar. Diziam que eu gostava de ficar na calçada te assistindo jogar futebol, bolinha de gude ou rodar pião e se algum garoto te irritasse ou tentasse trapacear era a primeira a berrar e sair em sua defesa. O Guiga é meu irmão!, bradava, como se isso me desse o direito de livrá-lo de qualquer encrenca. E de certa forma livrava, porque nenhum garoto queria me ver gritando e chamando a atenção. Nossa vizinhança era incrivelmente tranquila, todos se conheciam e confusões eram raras.

     Confesso que a nostalgia me envolve quando penso nestes momentos, porque me traz à mente detalhes que se unem a acontecimentos que marcaram nossa infância, funcionando como chaves de acesso a uma época que jamais retornará.
***
     Éramos muito conhecidos na cidade. O vovô e o papai tinham uma loja de reparos de eletrônicos, Fratelli — Consertos de Tv's, Rádios e Eletrônicos em geral, no entorno da Praça Dr. Getúlio Vargas.
     Adorava quando íamos de mãos dadas até lá; eu agarrada ao Boneco do Fofão e você tentando me convencer a deixá-lo em casa. Esse brinquedo é muito feio, Amelinha. Vai assustar os clientes , e dávamos risada. Chegando, o vovô me colocava sentada no balcão, enquanto o papai te chamava para a bancada de trabalho e explicava conceitos de eletrônica para quando quisesse fazer seus próprios reparos. Filho de peixe, peixinho é. Você aprendeu rápido e logo estava trabalhando meio-período, e acho que todo dinheiro que ganhava gastava me comprando sorvetes e guloseimas. Nossa, Guiga, eu o amava do fundo do coração; não apenas por isso, mas por tudo o que fazia por mim.
***
     Lembra da Doriana? Duvido que não, pois a ganhou no III Campeonato Mirim Águas de Lindóia, promovido pela Liga dos Comerciantes. Você foi artilheiro e o prêmio cedido pelo Canil Bastos apenas simbólico, mesmo assim nunca esquecerei "Seu Bastos" te entregando aquela coisinha malhada com um laçinho na cabeça, em plena quadra de esportes do colégio, e imediatamente você vindo até mim na platéia e dizendo: Agora o Fofão será aposentado. Todos riram e aplaudiram seu gesto — e eu somente o abracei com toda força, aos prantos.
     Acho que se escrevesse Minhas Memórias, haveria capítulos inteiros para aquela cadelinha, mas por ora é suficiente dizer que a partir daquele dia nos tornamos inseparáveis. Doriana era uma dálmata tipicamente bagunceira, que nos divertia à beça e às vezes deixava a mamãe e a vovó loucas. Lembro que se esquecêssemos a porta do banheiro aberta ela pegava o papel higiênico e saía em disparada, causando uma tremenda confusão. A danada era arisca e se esquivava de nós com facilidade, justificando seu nome.
     Doriana nos trouxe muitas alegrias e é uma pena ela estar envolvida num dos episódios mais trágicos da história do nosso bairro.
***
     Desde que chegou Doriana ganhou o coração de nossa família e da molecada da rua, afinal ela interagia tanto com a gente que mais parecia uma criança arteira de quatro patas. Lembra do que aconteceu com meu Fofão? Ela adorava aquele boneco, só que ao invés de brincar o enterrava em buracos que fazia no quintal e um ou dois dias depois o desenterrava para colocá-lo em outro esconderijo. Vivia fazendo isso e logo restaram somente os cacarecos do pobre coitado.
     Quem descobriu essa peripécia foi a vovó, porque a Doriana, talvez entediada, fazia isso quando estávamos na escola, porém quem deu a ideia de enterrar brinquedos e mandá-la procurar foi você. Era divertido. A gente a deixava cheirar um brinquedo e depois a segurava dentro de casa, enquanto o outro cavava e escondia. Quando a soltávamos, ela seguia o rastro e sempre o encontrava, pegando e saindo em enlouquecida para que corrêssemos atrás. Às vezes fazíamos isso no terreno baldio do fim da rua e juntava quase uma dúzia de crianças para tentar pegá-la, dificilmente conseguindo.
     Foi uma das fases mais felizes de nossa vida, até acontecer aquilo com a Soninha.
***
     Nenhum um dos dois assumia, mas era evidente que se gostavam. Ela tinha a sua idade e bastava sair na frente do portão ou falar algo contigo que seu rosto ficava todo risonho. Vocês se abobavam perto um do outro. Muitos diriam que era um namoro à moda antiga, (que não necessitava de palavras ou confirmação — do tipo que enlaça os apaixonados simplesmente por reconhecerem a reciprocidade de sentimentos), porém para mim eram apenas dois namoradinhos que só faltavam dar beijinho. E não, eu não tinha ciúmes dela, pelo contrário.
     Soninha era um amor de pessoa, entretanto todos sabiam que sua família enfrentava problemas.
     A mamãe e a vovó conversavam bastante durante os afazeres domésticos e viviam dizendo que seu padrasto Ernesto não valia um tostão furado: ele era um homem trabalhador, que sorria e cumprimentava a todos, porém dentro de casa maltratava a esposa, a enteada e outros dois filhos mais novos.
     Criança não é boba e presta atenção às coisas, mesmo que não pareça. Desculpe nunca ter falado sobre isso antes, mas eu ouvia um mundo de absurdos enquanto penteava o cabelo de minhas bonecas na cozinha ou brincava de tomar chá com a Doriana ao pé da máquina de costura da vovó — absurdos que ainda hoje são difíceis de acreditar, quem dirá naquela época.
     Não quero que se chateie por tocar neste assunto, porque sei o quanto tudo isso o magoou; é que certos detalhes surgem à cabeça e creio ser melhor colocá-los para fora de que ficar se remoendo em infindáveis monólogos interiores.
     Como bem sabe, Soninha sumiu numa noite de quaresma, de sexta para sábado.
     Dona Lourdes avisou vizinhos e amigos na manhã seguinte e logo a notícia se alastrou como pó jogado ao vento. A polícia foi chamada e antes de qualquer indagação descobriram que Ernesto também havia desaparecido. Imediatamente Dona Lourdes revelou que eles tiveram uma discussão na tarde de sexta e ela o havia expulsado. O motivo, as bebedeiras e as agressões que às vezes toda a rua ouvia. A princípio tudo pareceu óbvio demais e não precisou chamar nenhum Poirot para apontar um suspeito.
***
     A família de Soninha morava quase na frente de nossa casa e os fundos do seu quintal dava acesso ao terreno baldio onde costumávamos brincar. A polícia não tinha experiência naquele tipo de crime e muita gente apareceu para ajudar nas buscas, tendo momentos que nossa rua estava tão lotada que mais parecia um encontro de romaria. Vieram até repórteres de cidades vizinhas. Ninguém duvidava que Ernesto houvesse regressado à noite, raptado Soninha e fugido sem ser notado — e o modo mais discreto de fazer isso seria pelos fundos.
     Acho que as buscas duraram uns oito dias sem qualquer resultado, não foi? Não sei como elas foram realizadas, mas hoje, olhando para trás, creio que a própria desorganização tenha destruído as possíveis pistas para a rápida solução, aumentando a angústia e apreensão da população, principalmente da Dona Lourdes, que clamava para que encontrassem a filha. Era de cortar o coração.
      E foi então que você teve uma ideia que mudaria tudo, acabando por tornar suposições sinistras em algo obscuro e tenebroso.
***
     Os irmãos de Soninha também brincavam com a gente e naquele dia, sentados na calçada, você pediu que trouxessem uma roupa dela. Eu era pequena e nossos pais acharam melhor me manter dentro de casa até aquele furdunço passar; mesmo assim, pendurada na janela de frente para a rua, vi quando saíram e logo voltaram trazendo uma camiseta de escola, que você deu para Doriana cheirar. Havia bastante gente ali, mas ela cheirou o tecido algumas vezes, depois foi sondando o ar, passando entre as pessoas, invadindo e zanzando pelo quintal de Soninha e por fim saindo em disparada para os fundos da casa — vocês indo atrás dela iguais loucos.
     Muitas versões surgiram a partir dai, mas prefiro a que você contou meia hora mais tarde ao entrar em nossa casa, os olhos esbugalhados e tão ofegante que mal conseguia falar, Doriana em seu colo como um bebezinho, toda suja de terra.
     Mãe, a Doriana cavou perto da cerca do terreno baldio e achou a Soninha.
     E nem terminou a frase, um repórter com uma câmera fotográfica já invadia o quintal perguntando seu nome e todos aqueles detalhes que aparecem nos jornais. Vocês saíram na primeira página do Diário Matutino e foram notícia por meses — e fiquei super feliz quando o papai leu que a cadelinha heroína pertencia à irmãzinha querida de um dos melhores jogadores da Liga dos Comerciantes de Águas de Lindóia.
***
       Mas nem tudo eram flores, afinal sua consagração corria em paralelo com a sucessão de desgraças de nossos vizinhos. Naquele mesmo dia, ao saber que haviam encontrado o corpo, Dona Lourdes se trancou no quarto e cortou os pulsos com uma tesoura de costura, só não morrendo por que alguém pulou a janela assim que bateram na porta e ela não respondeu.
     Para uma cidade tão pacata, o incidente foi como uma borrifada de sangue no rosto dos cidadãos. Ninguém era capaz de acreditar que algo assim de fato pudesse acontecer — e em minha ingenuidade ainda te perguntei, passado algum tempo, se a Doriana tinha tocado no defunto de Soninha e você respondeu que ela tinha abocanhado a mão e tentado correr, só não conseguindo porque estava presa ao corpo. Sua sinceridade me valeu noites sem dormir, mas nunca reclamei.
***
     Éramos jovens demais para compreender a motivação da tentativa de suicídio de Dona Lourdes e outros vários detalhes que foram surgindo ao longo dos dias, porém rumores ganharam força quando um vizinho comentou que ela não esboçou qualquer reação ao saber que a filha havia sido encontrada bem ali no quintal: apenas levantou do sofá da sala e se trancou no quarto, visivelmente reconhecendo as implicações daquela terrível descoberta.
     As indagações vieram por parte de reportagens locais, focando exclusivamente na mãe de Soninha. Ela dizia nada saber, mas tentou fugir do hospital assim que se recuperou. Depois disso a polícia também passou a investigá-la, descobrindo por meio da vizinhança que ninguém viu Ernesto deixar a casa no dia da suposta discussão — e que dias antes ele tinha cavado o entorno do quintal para levantar um muro. O cadáver de Soninha foi encontrado num dos trechos dessa vala, mas toda a extensão restante estava aterrada. Não fazia sentido.
     Desconfiados, reabriram o buraco, encontrando enfim o corpo de Ernesto, cruelmente desmembrado. Foi um escândalo e todos os olhos se voltaram para Dona Lourdes, que, como você sabe, diante de tanta pressão, sofreu complicações de um aneurisma horas após chegar à delegacia, levando para o túmulo muitas respostas, e infelizmente alimentando e dando margens às mais tétricas suposições.
     Teria Ernesto abusado de Soninha e ao revelar à mãe ela tenha reagido da pior maneira possível? Estariam ocorrendo há muito tempo? Teria Dona Lourdes assassinado o marido num instante de fúria e em seguida a filha para encobrir o crime? Teria sido ajudada por alguém? As perguntas eram tantas quanto às descabidas hipóteses.
***
     Nossa cidade nunca mais seria a mesma após o incidente, é obvio, mas pelo menos você parecia bem, embora tenha sido nessa época que passei a ouvi-lo chorar baixinho ouvindo walkman — e você tenha insistido muito mais para que fizéssemos aquilo.
     Não mais brincávamos de esconder brinquedos com a Doriana, de pega-pega ou amarelinha na rua e é bem verdade que nos afastamos um pouco de nossos amigos. Os pais estavam ressabiados; não saber a motivação de Dona Lourdes gerou a desconfiança de que qualquer criança poderia morrer e nunca ser encontrada.
     Por outro lado, nos tornamos mais próximos.
     A quantidade de consertos aumentou com sua popularidade e o papai desocupou um quartinho conjugado à garagem, fazendo uma oficina. E era lá que ficávamos: você reparando aparelhos e eu por perto com a Doriana e minhas bonecas. Poderia brincar em qualquer parte da casa, mas preferia ficar contigo, tagarelando e ouvindo a rádio local numa vitrola móvel Philips.
     Havia magia naquele espaço, Guiga, eternizada ao som de The Chi Lities Oh Girl, Mulheres de Atenas, How Can You Mend A Broken Heart?, Bandolins, Emotion, Valsinha, What A Feeling e várias outras que tocavam na programação vespertina. Eu tinha perto de nove anos e pouco entendia de música, porém elas se atrelaram ao magnetismo que sua presença exercia sobre mim, transformando-as em ótimas lembranças.
     E a rádio não trazia apenas músicas, mas também notícias — trágicas, por vezes.
***
     Era hora do almoço e eu chegava da escola. A mamãe lavava alfaces, a vovó experimentava o tempero do feijão e você entrava na cozinha secando as mãos num pano de prato, quando o locutor interrompeu a programação para anunciar que dois mediantes haviam sido baleados e mortos numa tentativa de assalto ao posto Ipiranga, na saída da cidade.
     Esses detalhes se fixaram em minha mente como se pregados com ferro em brasa, porque em seguida foram informados os dados de uma Parati — placa IOS-9512, virando nosso mundo de ponta-cabeça.
***
     O papai tinha saído pela manhã com destino a São Paulo para comprar componentes na Rua Santa Ifigênia e levava uma boa quantia em dinheiro. Desapareceu em algum ponto do percurso e os únicos que sabiam seu paradeiro eram os assaltantes mortos no posto de gasolina. Ambos eram moradores do bairro, frequentadores da Fratelli, e certamente ele não negaria carona se os encontrasse na beira da estrada.
     Até hoje ele está desaparecido e dói horrores pensar que seu corpo pode estar escondido numa vala ou algo assim.
     Ah, Guiga, infelizmente não perdemos apenas o papai naquele dia, mas toda a nossa família.
***
     Passamos a viver numa espécie de paisagem tétrica dilacerada pelas laminas alucinadas de um Picasso malevolente, estagnada com as cores insalubres de um Renoir moribundo e sob a luz desesperançada de um Deus desalmado.
     O vovô decretou falência após gastar todas as economias da família em buscas infrutíferas pelo papai.
     A vovó adoeceu e definhou por conta de doenças que desistiu de tratar.
     A mamãe tornou-se uma parasita de si mesma, constantemente sedada para não chorar até à morte.
     A Doriana morreu envenenada por algum vizinho desnaturado.
     E eu simplesmente cedi aos seus apelos.
***
     Venci a duras penas, como bem sabe.
     Com muito custo fui para a capital, estudei e me formei na polissêmica psicanálise-psicologia — e sempre que retorno a este lugar, penso na noite em que você entrou no meu quarto, sentou ao meu lado na cama e me fez uma última súplica. Não posso mais suportar, Amelinha… isso está acabando comigo. Segurou forte minhas mãos, chorando.  Faça pelo amor que tem por mim. Eu estava com onze anos, portanto faziam seis desde sua primeira investida. Você nunca desistiria da ideia.
     Dias depois nos encontramos num local afastado da cidade após o horário da escola e caminhamos por quase uma hora até este local. Um lugar pitoresco, aos fundos do velho cemitério da cidade, circundado de rochas altas e bem escondido.
     Fazia uma tarde de sol brutalmente linda e todo o meu corpo ardia em brasa pelo calor, mesmo assim tremia. Estava indecisa; você resoluto e preparado. Como numa espécie de êxtase, limpou o chão e estendeu a toalha de banho que havia trazido na mochila da escola. Deitou, estirando-se, fazendo os tênis de travesseiro. Estou pronto, Amelinha, faça isso por mim.
     Minhas pernas entrevaram e eu sentia lágrimas tremulando na beira dos olhos, loucas para se libertar. Poxa vida, você era meu irmão, sangue do meu sangue, mas a cega devoção que eu tinha por você desligou quaisquer vestígios de racionalidade existente em mim!
     Resignada, coloquei meu corpo sobre o seu, suas mãos envolveram as minhas e imediatamente senti algo oculto entre elas: uma lâmina longa e pontiaguda, que você posicionou acima do peito, mirando o próprio coração. Eu tremia e você me puxou contra si, fazendo o tempo desdobrar-se num silêncio tão absurdo que pude ouvir o pulsar dos nossos corações.
     Seus olhos se arregalaram ao sentir a penetração, mas os lábios foram se abrindo num maravilhoso sorriso de satisfação. Isso, Amelinha, tire de mim essa dor que é viver. Não pude aguentar, as lágrimas vieram numa corrente incontrolável que me sacudia e empurrava a lâmina cada vez mais. Queria parar, recuei. Faça! Seu rosto é o último vestígio de vida que quero levar para a morte. Há um demônio em mim que arrasta minha alma para a escuridão sempre que abro os olhos… Ele me acompanha. Faça-o desaparecer.
     Ah, Guiga, para o mundo você desapareceu, porque jamais revelei o que houve e sinceramente nossa família mal se importou, mas para mim não. Me tornei o que sou para entender o que se passava dentro de você e confesso que o nosso caso é o mais difícil que já enfrentei.
     O tempo não volta, o que volta é a vontade de voltar no tempo, porém é deitada em seus braços, agora frios e descarnados, que retorno ao tempo de nossa casa verde… e choro baixinho para ninguém ouvir.
     Às vezes no silêncio da noite
     Eu fico imaginando nós dois
     E fico ali sonhando acordada, juntando
     O antes, o agora e o depois…
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Sabor de Sangue
Enviado por Sabor de Sangue em 21/05/2020
Reeditado em 03/06/2020
Código do texto: T6953980
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