The Speed of Fall

O caixeiro viajante das possibilidades bateu a minha porta outro dia na penumbra do anoitecer, mareado pelas dobras espaciais, com o mostruário de prata carregado de potes de milagres e licores de eternidade. Ele falava-me da grandeza dos alpha centauri, que vivem cada dia como o primeiro, num universo repleto de novidades.

Exausto o viajante das estrelas adormeceu na poltrona da minha sala de estar, deixando cair o mostruário do seu colo, que se abriu pelo impacto com o solo, do seu interior rolaram pelo assoalho potes com dizeres no mínimo estranhos.

“Ao morador da última mansão do universo mais distante” dizia o rótulo de um dos potes, “barganha das estrelas”, num deles havia algumas capsulas do que a descrição em letras miúdas diziam ser “luminescência astral” e uma tarja presa ao gargalo que destacava “por cinco medidas de tempo”. Num pequeno caderno de notas bem organizado havia a descrição de cada mercadoria que vendia, como por exemplo, as das capsulas de luminescência que me intrigaram “suvenir que encomendei aos seres que moram para além da singularidade, tigres asiáticos galácticos”, eu já havia ouvido falar desse povo, os tigres asiáticos galácticos era uma raça de sociopatas que foram banidos para NAJ-28, último planeta da nebulosa da criação, ainda no início das grandes navegações interestelares, seu conhecimento sobre farmacologia alienígena era milenar. Havia ali também anotado observações pessoais do viajante “viver como se fosse o ultimo dia, é o luxo das almas desesperadas no subúrbio da Via-Láctea”.

Não pude conter minha curiosidade, coloquei meus dedos dentro do pequeno pote de milagres e engoli a seco duas daquelas pílulas de luminescência, foi quando escutei os sons mais terríveis do universo, eu podia ver e ouvir um monstro primevo gritando de dentro da minha mente, seus grunhidos duraram pelos poucos segundos que eu pude contar num velho relógio que estava pendurado na parede adjacente a sala que estávamos, mas dentro de mim aquele momento permanecia por uma quantidade incontável de tempo, até se irromper num silencio abismal, do meio da calmaria um som começou a se elevar, a voz gutural em uma língua desconhecida balbuciava algo que meu entendimento não compreendia, mas que fazia meu corpo tremer, mais rápido e mais rápido, como um epilético caí ao chão me debatendo e babando, não sei por quanto tempo fiquei ali caído, pois novamente o relógio parecia não fazer sentido, no grande espelho que havia no recinto, de olhos eclipsados eu contemplava meu corpo desgovernado a debater-se contra o chão e contra a mobília… de súbito coloquei-me de pé, eu olhava meu reflexo, à medida que sentia meu peito inflar era acometido de dores torácicas terríveis, a sensação era a de ter engolido um grande felino vivo que tentava agora se libertar de meu estomago, em meio a minha agonia sem fim, duas mãos abriram violentamente meu peito de dentro para fora, o tecido do meu corpo rasgou-se como uma crisalida dando vida a um “eu” estranho e de alma negra, era eu, mas me faltava o que chamamos de humanidade na minha índole, a meus olhos eu era onipotente, capaz de qualquer coisa. Todos os desígnios malignos e desejos proibidos que espreitavam a fraca natureza humana emergiam sucessivamente em mim, o primeiro foi o de matar meu hospede que dormia profundamente sobre a poltrona, arranquei uma das espadas que estavam presas a velhos escudos que ornamentavam minha casa, afastei-me vários passos para tomar impulso e atravessa-lo com apenas um golpe, foi quando fui interrompido com a grito de espanto da minha vizinha, estranhamente eu havia adquirido a habilidade de atravessar paredes, catatônica ela observava-me com a espada nas mãos, talvez sem conseguir compreender como eu havia atravessado a parede para seu apartamento, arranquei-lhe a cabeça do corpo com um golpe da espada e profanei seu corpo me lambuzando no sangue daquela pobre mulher, eu sentia o frenesi torpe, maléfico e luxurioso que se espalhava pela minha nova pele, sensação esta que se repetiu nos muitos atos da maldade, assassinatos, infanticídios, latrocínios e estupros que cometi naquela noite horrenda.

A medida que se aproximava a aurora, a alma negra e psicopata ia se enfraquecendo e com ela os aguilhoes que me prendiam no fundo da mente como um espectador impotente diante de tudo que acontecia, pela manhã não existia mais resquícios daquilo que mais tarde eu chamaria de “O homem do pecado”.

Nas manhãs que se seguiram fui o mesmo, como bicho de Kafka acordava inerte e fatigado perdido na teia citoplasmática da minha realidade.