Sob os Porões da InSanidade
 
Abandone toda a esperança,
aquele que aqui chegar,
Dante Alighieri.
E Clarisse está trancada no banheiro
E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete
Deitada no canto, seus tornozelos sangram
E a dor é menor do que parece
Quando ela se corta ela se esquece
Que é impossível ter da vida calma e força
Viver em dor, o que ninguém entende
Tentar ser forte a todo e cada amanhecer

                                             Clarisse, Renato Russo.

 
    Instituto Psiquiátrico de Barbacena, 1952.
    A madrugada estava silenciosa, arejada por uma brisa fresca que invadia uma das janelas abertas, balançando o par de cortinas brancas como dois braços fantasmagóricos.
     Imaculadamente limpo e organizado, os aposentos da Madre Magnólia Vieira ficavam afastados das demais dependências do sanatório, mesmo assim ela acordou sobressaltada, o coração batendo em desalinho e o suor escorrendo na face. Sonhara algo que não recordava ao certo; algo intenso, vívido o suficiente para fazê-la sentir-se acuada no negrume do próprio quarto. Engoliu em seco, era como se a escuridão tivesse olhos lancinantes agora, agulhando-a por todo o corpo.
     Jesus!
    Expirou. Isso nunca havia acontecido, deveria estar imaginando coisas. Não, claro que não — aliás, talvez nem tivesse trancado as janelas ao deitar. Moveu os olhos em todas as direções. Algo a observava, algo que mesmo à distância causava arrepios. Era uma mulher devota a Deus, seria o Inimigo tentando acossá-la?
     O fedor.
     A Madre não dera conta a princípio, porém o que de fato a acordara fora o terrível fedor que tomava conta do quarto: forte, agressivo e real — humanamente real. Havia alguém de carne e osso ali. Afoita, ergueu-se para acender o abajur, descobrindo pés e pulsos amarrados à cama. Instintivamente abriu a boca para gritar e de imediato uma mão repulsiva enfiou-lhe um trapo de pano na boca — e a mesma mão, pequena, ossuda e suja, acendeu o abajur no criado-mudo, relevando a quem pertencia.
     — Espero que ainda se lembre de mim, porque não a esqueci um só minuto, serva de satanás — sussurrou a garota, golpeando-a brutalmente.

***
     O lugar era amplo e malcheiroso, de um verde desbotado encardido, as paredes salpicadas de reboco corroído e manchas de excremento ressecado. E obscenidades. Estavam por todos os lados, escritas com carvão, cacos de telha, sangue, fragmentos de ossos, epiderme e dejetos.
     Desesperança.
     Ódio.
     Angústia.
     Dor.
     Repulsa.
     Desejos.
     Rebeldia.
   Ali estavam todos — metáforas alegóricas dispersas em rabiscos retorcidos, lúgubres poemas e cenas horrendas de homicídio-suicídio. No auge da aflição, tudo era válido para exteriorizar a decadência da liberdade perdida, amordaçada pela sanidade encarcerada na loucura do que não era compreendido.
     Próximo à fileira de janelas de ventilação, ao alto, um corpo decapitado segurava a própria a cabeça, enquanto esta se alimentava de uma de suas pernas. Abaixo, um rato esquelético de enormes olhos lunáticos e hábito de freira se masturbava; e o pênis era um braço leproso, com o orifício anal na palma da mão, que numa espécie de prazer psicodélico ejaculava rostos infantis em carrancas chorosas e enlutecidas. Um pouco à esquerda, representada quase em tamanho natural, uma mulher jazia dependurada num galho de árvore, enforcada, o corpo recoberto de vaginas salivantes, que com línguas bifurcadas pareciam sibilar e seduzir o espectador.
    E havia a realidade, as íntimas realidades — mórbidas, deprimentes, desafiadoras à certeza da racionalidade humana.
   J08F36, alta e desnutrida, levantava-se pela manhã e caminhava em círculos durante todo o dia, mesmo em locais abertos, levando no rosto um inexpressível sorriso que há muito que lhe atrofiara a face, mantendo-a com os lábios erguidos e os dentes podres à mostra como numa assustadora máscara de pedra.
    N15A45, mirrada ao extremo, mantinha-se com os ouvidos colados ao chão, resmungando como se conversasse com alguém dentro daquele piso imundo, o corpo já tão acostumado à posição que se tornara retilíneo e as pernas desacreditadas de andar.
     B40A50 era uma mulher quase normal, se não fosse o hábito de comer os próprios membros. Dos dedos dos pés restavam nada mais que tocos desfigurados — e mãos nem mais existiam: roídas até o punho semi-cicatrizado, ela os lambia como se fossem sorvetes de carne besuntados de sangue.
     P12F37. A23D43. M32J40. C26A51.
     Patrícia, 12 anos, fevereiro de 1937. Amélia, 23 anos, dezembro de 1943. Maria, 32 anos, junho de 1940. Catarina, 26 anos, abril de 1951.
     Naquele lugar as pessoas eram desumanizadas, destituídas de sua liberdade e transformadas em meros números de identificação. Era uma época em que distúrbios mentais tornavam as pessoas indesejáveis, sendo assim abandonadas por seus entes para apodrecer numa instituição que deveria tratar e deles zelar.      Entretanto, a realidade estava bem longe disso.
    Há muito o Instituto se tornara uma espécie de monturo social, aprisionando não apenas doentes mentais, mas também viúvas, mães solteiras, homossexuais, bêbados e mendigos, fazendo-os sucumbir aqui e ali, imersos em delírios reais ou induzidos, definhando à míngua de supervisão médica e servindo de alimento à fome e degradação moral.
     Aquele era o pavilhão feminino Zoroastro Passos, porém a Instituição era gigantesca e abrigava quase cinco mil pacientes em condições inferiores a subumanas. Na imensidão dos pátios abertos de um total de dezesseis pavilhões, cercados por muros e arame farpado, pessoas caminhavam ao léu, nuas ou precariamente vestidas, entregues às particularidades de suas degenerações psicológicas (tendo espasmos, falando sozinhas, gritando, rolando no chão, agredindo a si…) ou em busca de água e comida. Subnutridas e expostas às intempéries, muitas morriam de frio ou devido a queimaduras de sol, que sem cuidado transformavam-se em feridas purulentas, atraindo moscas que depositavam sua prole para comer a carne apodrecida dos infelizes ainda vivos.
     As condições eram lastimáveis.
     E de quem era a culpa? Uma bela pergunta com uma variante de respostas.
     Fundado em 1903, com capacidade para 200 pacientes, o Instituto Psiquiátrico de Barbacena, na cidade de Minas Gerais, chegou a ser referência no tratamento de doenças mentais, contudo já em 1930 passou a ser administrado pelas Irmãs Vicentinas e pela Igreja Católica, sofrendo drásticas mudanças.
   Sob novos cuidados, a instituição angariou mais verbas do Estado e, em contrapartida, se viu obrigada a aceitar mais pacientes — na maioria pessoas normais e sem quaisquer distúrbios, que eram trazidas aos montes através da estrada de ferro nos chamados “Vagões de Loucos” e ali depositadas sem a mínima supervisão. O Estado decidira fazer indiscriminada limpeza humana em suas cidades, ordenando que andarilhos, bêbados e indigentes fossem enviados à instituição.
     Por outro lado, não eram realizados exames médicos para “atestar loucura”, bastando o indivíduo ser levado ao instituto para que lá fosse trancafiado. Deste modo, famílias internavam filhos travessos, mães solteiras, idosos ou parentes com desvios sexuais. Maridos desprezíveis se livravam de esposas indesejadas ou amantes rebeladas, assim como delegados desovavam ladrões pé-de-chinelo, baderneiros e desocupados — e, indubitavelmente, até mesmo o mais são dos homens poderia ali ser julgado como louco e enlouquecer em pouco tempo, afinal, ante o trauma psicológico de conviver num lugar repleto de lixo e degeneração humana, qualquer sanidade se esvairia em gritos alucinados.
     A sociedade enxergava tais pessoas como a escória que deveria ser aprisionada e esquecida.
     E em poucos anos a instituição fora superlotada, dando margem à negligência médica, terapêutica e higiênica. Roupas, mobílias, remédios e alimentação básica foram se escasseando ao extremo. Logo os internos passaram a ter que se arranjarem sozinhos, dormindo sobre capim seco e bebendo água de esgoto nos pátios, enquanto alguns outros famintos vasculhavam nas fezes alheias algo que pudesse ser consumido. As condições eram verdadeiramente miseráveis, talvez equiparadas aos campos de concentração nazista, onde nem mesmo a morte significava o definitivo descanso.
     A morte?
   Era para alguns apenas a extensão de uma vida de sofrimento. Faculdades de medicina da região pagavam boas quantias por determinadas partes do corpo, fazendo com que médicos inescrupulosos contrabandeassem órgãos ou por vezes aceitassem encomendas de cadáveres específicos. Uma jovem? Um idoso? Uma criança? Um adolescente? Aquilo era tão natural quanto ir à padaria comprar pão, enfim um óbito a mais não faria a menor diferença num local onde gente morria o tempo todo.
     De fato, aconteciam histórias terríveis naquele lugar e o comércio indiscriminado de cadáveres talvez nada fosse se comparado às atrocidades destinadas àqueles que ainda viviam.
***
     Clarisse tinha quatorze anos, o corpo franzino e o rosto apático.
     Em pé num dos cantos, liberou a bexiga e observou a urina descer por entre as pernas e molhar os trapos encardidos do vestido. Depois se sentou, trazendo os joelhos para junto de si, chapinhando num gesto desalentado como quem brinca numa poça d’água. Um dos seus belos olhos azuis havia sido furado numa briga por alimento e minava pus agora, dando-lhe uma aparência repulsiva.
    Um grito longo e estridente subitamente ribombou entre as paredes da construção, assustando pardais empoleirados na janela e chamando a atenção das pacientes dispersas ali. Umas apontavam, outras se encolhiam e algumas se punham a chorar.
     A enfermaria ficava a uma centena de metros dali, mesmo assim os gritos de dor e desespero vagavam com o vento, entrando pelas janelas altas e ecoando como agourentos fantasmas enlouquecidos. Todos sabiam o que eles significavam. Terapia de choque, um paliativo sádico destinado a acalmar pacientes agressivos — e também punir rebeldes que não se adequassem às normas.
    Gritos, gritos e mais gritos. Eram medonhos, angustiantes.
    Clarisse sentiu um breve tremor. Quantas vezes tivera braços e pernas amarrados e eletrodos postos em sua cabeça, aplicando-lhe choques capazes de lhe revirar os olhos e fazer espumar saliva pela boca e nariz? Nem sabia; aliás, deixara de saber muita coisa. Aquilo era o inferno, terrível o suficiente para mergulhar a mente numa letargia lúcida e voraz, que dissolvia o presente e destruía as reminiscências do passado.
     O passado — destruído.
     O que restou? Basicamente as piores fases.
     Crescera numa casa modesta com uma parenta que não era sua mãe — e desta última nunca tivera notícias. Não era alegre nem triste, apenas vivia, mas quando completou onze anos foi dada a uma família abastada para que trabalhasse como empregada doméstica. Onze anos. Na época isso era permitido e bastante comum. O advogado tinha muitas posses, idade avançada e uma esposa obesa que obtinha nos alimentos o único prazer de viver. Avantajada, mal levantava da cama. Não tinham filhos e empregados não permaneciam ali por muito tempo.
    Um mês, dois, três? Uma semana? Dia? Tarde? Noite? Cozinha? Celeiro? Quarto? Não sabia, mas recordava perfeitamente de ter sido agarrada por trás, braços fortes e peludos a apertando como um torniquete, jogando-a com as costas no chão, arrancando suas roupas e a invadindo em abruptas e cruéis estocadas. Uma-duas-três. Quatro e ele desacelerou, desabando sobre ela como um sufocante peso morto, que só não a matou por que um barulho soou em algum lugar e ele levantou-se depressa, subindo as calças e a deixando esparramada no piso, esvaindo-se em sangue e horrorizada demais para sequer gritar.
     A primeira menstruação nunca existiu e antes da gravidez se pronunciar houve pelo menos quinze outros estupros. Onze anos, seis meses de gestação. Numa noite o advogado a acordou, suas malas já estavam prontas. A única viagem de carro que fizera na vida, longa e angustiante; no banco de trás, mais duas violações em beiras de estrada. No Instituto, aos fundos, um funcionário os aguardava; dinheiro foi trocado de mãos e ela enxotada para dentro como um cão sem dono. O advogado se livrou de um problema e o funcionário ficou duplamente satisfeito por tê-lo ajudado — e Clarisse amargou o restante da madrugada entre abusos e ameaças.
     Ingênua.
    Desde o início não tinha ideia do que estava acontecendo ao seu corpo, porém nutriu imenso amor àquela bonequinha que rebentou de dentro dela, antes do tempo. Mal completara doze, uma criança dando à luz outra criança. Despreparadas, ambas quase morreram, contudo, somente ela desejou abraçar à morte quando enfim a destituíram de sua cria. Nem tivera tempo de lhe dar nome, pois Madre Magnólia Vieira não permitia que nascituros ali permanecessem. Belo Horizonte? São Paulo? Rio de Janeiro? Curitiba? Ninguém sabia para onde os recém-nascidos eram levados — ou talvez nem fossem levados para algum lugar, afinal o Cemitério Municipal ficava ao lado da Instituição.
     Ano e meio. Quase enlouquecera neste período, chorando compulsivamente dia e noite, berrando que queria sua bonequinha de volta. Mas era impossível e a brutalidade da terapia de choque, os maus-tratos, as constantes violações e a inanição confirmaram isso.
     Agora tinha quatorze e de suas lembranças restara apenas os escombros de uma vida em ruínas.
    Clarisse levantou-se um pouco, acocorando-se. Fez força, defecando uma nesga mínima de excremento, que juntou com as mãos e esfregou no vestido e cabelos. Involuntariamente contrações lhe reviraram o estômago e se esforçou para refreá-las: uma, duas, três vezes; entretanto, a ânsia tornou-se mais forte e um jorro biliar irrompeu-lhe da boca num nojento esguicho amarelo-esverdeado — e ainda assim ela o direcionou para o próprio corpo, banhando-se por completo de vômito.
     Seu estado era deplorável, mas aprendeu que apenas assim se veria livre dos abusos.

 
***
     Silvanno sequer tinha dezenove anos, mas sua fama de galanteador e arruaceiro há tempos irritava a polícia e os nobres da capital — e meter-se com a filha de um juiz foi o estopim. Arbitrariamente preso durante a noite, ganhou uma viagem involuntária no Vagão de Loucos, sendo internado no Pavilhão Milton Campos pela manhã. Na madrugada seguinte, estava na enfermaria, gritando de dor, todo ensanguentado. Um paciente esquizofrênico fascinara-se com seus grandes olhos azuis e resolvera cortar seu pescoço com um caco de vidro antes de arrancá-los.
     Por eventualidade, Madre Magnólia Vieira se medicava na enfermaria quando o trouxeram e, apesar da comoção, constatou-se serem apenas ferimentos superficiais.
     E tão logo Silvanno se recuperou se viu às voltas com o que fazia de melhor: engabelar. Era bem apessoado, sem dúvidas, mas sua lábia articulada, capaz de extorquir dinheiro até mesmo das ariscas prostitutas de Belo Horizonte, inegavelmente era seu maior trunfo. Assim que acordou, pediu aos prantos para falar com a Madre, que, ao atendê-lo, se viu enredada numa ardilosa teia de elogios. Astucioso, ele falava fitando-a nos olhos, calculando as palavras e floreando os acontecimentos da noite anterior. Sua digníssima presença encheu de graça este antro de amargura, protegendo-me…
     Lisonjeada com tanta atenção, Madre Magnólia estendeu a conversa para um almoço e enfim acomodou Silvanno num quarto tranquilo da enfermaria. Tinha quarenta e nove anos, encouraçados pelo celibato. Corpulenta e Ilibada. Entretanto, os dias passaram a ser menos pesarosos, ao compasso que contato e elogios se intensificavam. Carícias disfarçadas de cuidados. Mimos. O frescor da juventude é ávido em despertar sentimentos conflitantes — e a volúpia é atroz quando quer algo.
     Aconteceu numa noite calorenta e nada fora previamente combinado. Ela deixara entreaberta a janela do quarto, por onde Silvanno pulou como um gatuno. Livrou-se das roupas e, ao se aproximar da cama, seus imensos olhos azuis faiscaram como os de um lobo sedento diante da presa.
     E assim, com quase meio século de existência, Madre Magnólia descobriu-se invadida e subjugada pelos pecaminosos prazeres carnais.
     Isso fora há quase quinze anos.

 
***
     Madre Magnólia Vieira despertou, a visão desfocada vislumbrando aquele grande olho azul à sua frente.
    Não estou sonhando! É verdade, é verdade! Ela quase sorriu, mas uma dor aguda fisgou-a no alto da cabeça, subitamente remontando a realidade.
    O dono daqueles olhos fugira do sanatório naquela mesma noite, furtando tudo o que pudera do quarto. Jóias, dinheiro, prataria, remédios. Tudo. Na manhã seguinte acordara estimulada por álcool, após terem arrombado a porta. Havia sido drogada e estuprada, dissera. Todos acreditaram e a polícia não foi envolvida para evitar complicações. O instituto já possuía cota considerável de mazelas.
    Mas Madre Magnólia jamais imaginaria aquilo: o infame cravara sua perniciosa semente. Quarenta e nove anos, contra todas as possibilidades. Uma prometida de Deus grávida? Seria um escândalo de proporções inimagináveis. Fez o possível para acobertar o acontecido, mantendo-se no quarto. Quando a criança nasceu, uma irmã levou-a para longe.
     E agora o demônio estava de volta, com um só olho a mirá-la.

 
***
   Clarisse observou contrações sacudirem o corpo da Madre e depois jatos escaparem pelo nariz. Ela sufocaria, a morte seria breve. Não, definitivamente não queria isso, mesmo assim a deixou sofrer um pouco mais, então retirou o trapo que lhe tampava a boca, liberando sucessivos jatos de vômito.
     — Meu cheiro a incomoda? — a garota zombou, sentando-se na cama entre nacos de comida regurgitada. — Você é uma hipócrita maldita e não sabe o que é se enrolar na merda para escapar de estupradores. Faço isso o tempo todo, inclusive para fugir de seus médicos e funcionários.
     A Madre não a ouvia, engasgava com o próprio vômito. Clarisse deu-lhe dois sonoros tapas, desentalando-a à força. Quando tentou gritar, meteu-lhe o trapo na boca novamente, tão profundo dessa vez que os olhos da velha se esbugalharam. Retirou.
     — Tente de novo e enfiarei isso tão lá dentro que minha mão vai rasgar sua garganta. — A ameaça era tétrica e seria cumprida. Fora ingênua e dócil no passado, mas os anos de perturbação física e emocional no sanatório a transformaram numa pessoa instável e rancorosa.
     — Como… chegou aqui… e por que… está aqui? — as palavras saíram com dificuldade, os dentes batendo, a face rubra de pavor.
     — Quer respostas? — Avançou, esbofeteando-a com raiva, arrebentando-lhe nariz e lábios. — Então me diga: se é temente a Deus, por que transformou este lugar num inferno? — Bateu um pouco mais, aos socos agora. — Acha que não merece isso? E aquelas pessoas lá fora, merecem a forma como são tratadas? Faz ideia do mal causado a todas elas?
     Aterrorizada, a Madre manteve-se em silêncio, imóvel; por outro lado, Clarisse tremia compulsivamente. Respirou fundo, dizendo:
     — Largados como lixo nos corredores, ouvimos muitas histórias… histórias terríveis demais para não serem boatos… por isso quero saber a verdade. — Aplicou-lhe mais quatro estridentes bofetadas, sádicas e gratuitas, e enfim a agarrou pelas orelhas, encarando-a de perto. Ao falar, quase a beijava, seu olho ferido minando pus e o outro, de um lindo azul, enchendo-se de lágrimas. — Todos os dias acordo querendo morrer e a única coisa que me faz continuar é a necessidade de saber o que aconteceu com ela…
     Cega de ódio, Clarisse ergueu-se e começou a esmurrá-la no peito.
     — Diga! Diga! Diga! Por tudo o que mais sagrado dessa minha miserável vida… eu te suplico… onde está minha filha, mamãe?
     Mas era tarde, os golpes haviam sido letais, e Madre Magnólia padeceu de olhos abertos, um risinho atravessado nos lábios como se zombasse de Clarisse por ter levado consigo aquele enlouquecedor segredo.
     — Malditaaaaaaa!!!!!
 
Sabor de Sangue
Enviado por Sabor de Sangue em 11/02/2020
Reeditado em 02/03/2020
Código do texto: T6863212
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