Sentimentos agudos de uma criança esquecida
Sentado, na beira da calçada de uma rua escura, estava uma criança pensando na vida e sorrindo. Inalava uma garrafa de cola e sorria de desespero. O escuro lhe dava agonia e o frio machucava seu corpo com dores agudas, como uma pele sendo rasgada por um caco de vidro. A criança escutou uma voz, logo em seguida ouviu outra, mas não tinha ninguém ao seu redor. Ouviu passos, e ninguém por perto.
Colocou as mãos nos ouvidos e fechou os olhos, apertando-os e fazendo força para todo aquele inferno acabar. Sua cabeça estava agitada, seu corpo doía, sua alma sussurrava algo que passava um sentimento de tristeza e medo. Seus dedos estavam agitados, juntamente com suas pernas e sua respiração. A criança estava sem fome, a cola inibiu, mas em sua barriga doía um vazio que podia ser fome, ou falta de amor, ou falta de cuidado, ou falta de afeto, ou falta de respeito, ou falta de empatia. A criança começou a chorar e sentir que não fazia sentido ser colocada num mundo para sofrer tantas dores e fracassar tantas vezes. A criança não sabia o que era paz, o que era felicidade, o que era amor. Só que ela conhecia o que era tristeza, o que era ódio, o que era raiva, o que era medo, o que era. preconceito. Ela só não entendia, mas sabia como era.
Enquanto um complexo e confuso processo passava em sua mente, um toque no ombro lhe assutou lhe fez levantar da calçada. Sua respiração ficou forte e o coração disparou. Quando olhou para frente viu uma outra criança, que na verdade era o seu reflexo, só que em carne e osso, se aproximando e ficou estalada de medo. Ela viu aquele ser vindo em sua direção e o medo paralisou até sua capacidade de raciocinar o que poderia ser aquilo. O reflexo estava bem vestido, limpo e disse que era a versão bem sucedida, que tinha amor, que tinha saúde, que tinha cuidado, que tinha uma família, que tinha sorrisos e muita fartura. Disse que era superior porque a criança estava esquecida, estava nas ruas, invisível, sem um pingo de respeito. Enquanto se gabava de sua vida perfeita, a criança chorava copiosamente engolindo todas aquelas palavras, todas aquelas dores, todas aquelas verdades deturpadas e se machucava ainda mais por não ter absolutamente ninguém por perto, vivendo apenas de favores de pessoas desconhecidas que também estavam no esquecimento.
Foi então que sem aguentar mais todos aqueles disaforos e verdades distorcidas, a criança, com a cabeça cheia e já sem paciência, deu um grito daqueles que deixa sem oxigênio, sem força, sem noção da realidade, com a garganta machucada e o rosto vermelho por tanta força, e saiu correndo sem olhar para trás. A rua estava deserta e extremamente escura. A lua estava cheia e um vento gelado acompanhava uma densa neblina.
Numa encruzilhada, a criança parou de correr e tentou se acalmar para respirar melhor. Se ajoelhou na calçada e vomitou um fel de cortar qualquer alma decadente e sentou na beira da calçada.
Começou a sentir fome e cansaço. Abriu sua sacola rasgada e tirou uma lata de solvente que havia guardado para um momento de necessidade. Uma inalada, duas inalada, três inaladas e mal podia sentir suas pernas. Estava totalmente entorpecido e se sentia corajoso e determinado a mudar de vida. Então a criança ouvia uma voz, mas não tinha ninguém. Quatro inaladas. Ela pensa que vai ficar tudo bem e sorri de desespero…