O Condenado, Ou os últimos momentos de Edgar W. Richards

Um silêncio sepulcral dominava o lugar. Edgar estava apreensivo. À sua volta uma multidão se aglutinava ansiosa pela sua sentença. Olhou ao redor, para cada um daqueles rostos aristocráticos, na vã esperança de que algo ou alguém o salvasse de seu destino impérvido. Sentia medo como nunca sentira antes. Muitas das figuras presentes lhe eram familiares; outras nem tanto. Mas, todos estavam ligados a ele de algum modo. O homem condenado voltou-se, então, para o sujeito de manto preto à sua frente. As pupilas negras do carrasco não revelavam o menor sinal de piedade. Ele parecia impassível. Ao notar o incômodo que estava gerando ao encarar o seu executor, começou a ter uma crise de tosse. Tossia sem parar. Nenhum dos convidados pareceu ligar muito para aquilo, exceto uma senhora de meia idade muito bem vestida que se aproximou e ofereceu um pouco d’água. Quanto aos demais, estavam tão absorvidos com o espetáculo à sua frente, que nem se preocuparam. Alguns espectadores até riam, demonstrando um sadismo indescritível.

A cabeça de Edgar girava. O suor escorria por sua face manchada de sol, enquanto seu pé esquerdo mexia sem parar. Tentou se acalmar. Por isso, passou a rebuscar pensamentos e memórias esquecidas no salão empoeirado de sua mente. Estava disposto a se agarrar a qualquer coisa que pudesse transportá-lo dali, ao menos temporariamente. Foi então que um rápido flashback emergiu à consciência. Como num álbum de fotografias, o rapaz lembrou-se de recortes de seu passado arredio, por meio de imagens sequenciais aleatórias, todas fora de ordem. A maioria vinha dos tempos de infância e adolescência, quando ainda podia contar com a proteção incondicional de sua família. Recordou-se dos seus amigos, vizinhos e companheiros de estudo, com os quais tivera bons momentos. Sentia-se imortal, invencível, podia fazer qualquer coisa, pois nada de ruim lhe aconteceria. Confortantes memórias, doces ilusões.

Quando voltou a si, todas essas imagens se desvaneceram sob o véu opaco da realidade. Sua visão ficou turva e teve que levar as mãos ao rosto para massagear as têmporas, suprimindo uma dor de cabeça latente que se apoderara dele. “Por que isso está acontecendo comigo?” - perguntara-se internamente. Estava tentando encontrar o momento exato no qual havia se perdido. Mas, não sabia ao certo. Cometera muitos erros em sua breve estadia no mundo, e agora se arrependia amargamente. Ao erguer sua fronte cabisbaixa, quase sem forças, reparou mais uma vez no sujeito de vestes largas e escuras à sua frente. Ele parecia irritado, e esfregava as mãos com certa impaciência. Então, pensou em olhar imediatamente para o seu lado esquerdo, mas, não teve coragem. A pessoa que o conduziu até aquele ponto sem retorno estava exatamente ali. Não ousava encará-la. Em razão disso, girou na direção oposta, encontrando uma visão ainda mais perturbadora. A sua família havia acabado de chegar e disputava espaço com os demais presentes. Sua mãe, Elizabeth, estava em prantos, parecia inteiramente fora de si, sendo acorrida pelo seu velho e sua belíssima irmã mais nova, Sophia. Ele os amava profundamente, por isso, vê-los naquele estado levou-o às lágrimas.

No entanto, este instante de fraqueza não duraria muito. Ao avistar os olhos grandes e severos de seu orgulhoso pai, Jonathan W. Richards, ele conseguiu recompor-se. Para honrar o nome da família, teria que manter sua fronte erguida até o último instante. Não tinha outra escolha a não ser deixá-los para trás e cumprir o seu destino com dignidade, como o seu papa lhe ensinou. Então, endireitou imediatamente o seu corpo esguio e olhou para fora. Uma massa de nuvens escuras encobria toda a região, e uma chuva fina caía sobre eles - tornando a ocasião ainda mais lúgubre. Deu uma última olhada na massa crescente de pessoas, as quais passavam a alimentar um burburinho. O homem encapuzado teve de fazer o seu tom de voz retumbante ecoar pelo espaço para silenciá-los e dar início ao julgamento.

O Executor iniciou a leitura de sua cópia do Livro Sagrado. Edgar entrou em frenesi. As palavras que eram proferidas entravam e saíam de seus ouvidos como flecha que atravessa os corpos de pouca tenacidade. Permanecia firme, completamente indiferente às acusações, comentários e reações fortuitas do povo que acompanhava. Em dado ponto, reparou no lugar em que estavam. O ambiente era todo iluminado à luz de velas, distribuídas uniformemente ao seu redor, o que incutia um ar ritualístico e sombrio. As sombras do público bruxuleavam para todos os lados, conferindo um aspecto bastante opressor e ameaçador. Não estava sendo de grande ajuda observar estes detalhes. Por isso, resolveu prestar atenção nas palavras do homem de preto.

Silêncio. Sem que Edgar houvesse percebido, toda e qualquer agitação havia cessado. Cada um dos indivíduos ali presentes olhava interrogativamente para ele. Sem entender nada, ele virou outra vez para o carrasco e o mesmo o perscrutava com intensidade. Instintivamente, ele ergueu um de seus braços e colocou-o sobre peito, bem onde ficava o seu coração, que pulsava descontroladamente. Seu corpo passou a tremer quando compreendeu que a sua hora havia finalmente chegado e que aquele momento era a sua última chance de se defender. Uma angústia profunda começava a tomar conta de seu ser, quando um súbito sentimento de esperança brotou.

Não sabia o que lhe aguardaria quando aquele show bizarro terminasse, mas as histórias que ouvira de sua avó, Eleonora, eram bastante reconfortantes. Ela lhe disse uma vez que o seu avô foi um homem de muita coragem, e que nunca fugia dos problemas, por mais difíceis que fossem as circunstâncias. Era um homem exemplar. Uma prova disso foi ele ser forte o bastante para deixá-la e lutar pelo seu país, pouco depois de constituírem matrimônio.

Enquanto mergulhava nessa lembrança, ele sentiu que alguém agarrara o seu braço, segurando-o com força. Ao contrário de seu avô, ele não tinha escolha a não ser encarar o seu fim. “Contudo”, pensou, “não adianta nada ficar se lamentando. Até que eu levei uma boa vida até este ponto”. Lembrou-se dos amigos, das aventuras que viveram e de todas as donzelas que conheceu até ali. “Quem diria justamente uma delas te levaria a isto...” Então, começou a rir. Em resignação total, respirou fundo, concentrou-se e se preparou para dizer as suas últimas palavras. Não pensou muito. Deu somente a resposta que todos esperavam ouvir.

- Bem, que seja feita a vontade do Nosso Senhor Jesus Cristo, e também das testemunhas que se deram ao trabalho de vir até aqui. Eu estou plenamente preparado. Vou dar a vocês exatamente o que desejam, seus bastardos! Vamos lá - falou olhando nos orbes negros de seu executor - Pode continuar. Não tenho mais nada a dizer.

A expectativa do povo agora era imensa. Não se podia ouvir nem sequer o menor sussurro. Todos prendiam a respiração à espera do veredicto. A pressão da atmosfera se tornara insuportável. O sangue em suas veias fervia, a emoção e o ardor lhe consumiam. Se a sentença não fosse proferida o quanto antes, Edgar imaginou que iria enlouquecer. Então, em um segundo que pareceu uma eternidade, o carrasco fechou o livro sagrado, posicionando-o sobre o altar. Tendo já realizado todos os procedimentos que a cerimônia exigia, olhou satisfeito para o rol de testemunhas. Nunca antes vira aquele lugar tão cheio. Passou a língua entre os lábios, revelando um prazer profano na ação que estava prestes a executar. Então, com um leve meneio de cabeça, indicou ao condenado o seu destino final. Edgar cerrou os punhos, com todas as forças, e obedeceu ao comando, após um breve instante de hesitação. Ele subiu as escadas, resoluto, se posicionou, e esperou o golpe final. De olhos fechados, ele não ousava olhar para a pessoa responsável por tudo aquilo. Edgar sabia que era culpado. Não podia questionar esse fato. Mas, ele não era o único responsável. Se ele chegou àquele ponto, é somente por que ela o...

- Está na hora. - Declarou o carrasco.

“Não! Isso não pode estar acontecendo! Eu ainda sou tão jovem... Tem tanta coisa que eu queria fazer na vida antes de... Ah, droga!”. O homem de manto negro tirou o capuz, solenemente. Seu rosto exibia uma cicatriz profunda, que atravessava o olho direito. Era um sujeito que sobreviveu a inúmeras primaveras, porém possuía uma força e destreza extraordinárias. “Ainda dá tempo. Ainda dá tempo! Pensa em alguma coisa, cara. Vamos lá. Você consegue!”. Edgar tentava matutar algum plano, alguma forma de escapar, mas, infelizmente, o seu pensamento estava tão nublado quanto um céu de tempestade. Ainda de olhos fechados, ouviu som de passos, os quais ele associou imediatamente às botas pesadas daquele homem que lhe lembrava um druida. O coração estava quase saindo pela boca; o desespero, em seus últimos momentos, o dominou completamente. “Por favor, Deus, me ajude! Eu nunca mais vou fazer aquilo outra vez... Quer dizer, eu prometo ser mais responsável e talvez eu...”. Agora um som de passos, só que dessa vez mais delicados, foram de encontro ao homem em suplício. Nesse momento, já não conseguia pensar em mais nada. Tudo o que lhe restava era a escuridão. Pela última vez, a voz protuberante e potente do senhor de preto romperia o silêncio angustiante que assolava aquela pobr’alma. Após um leve pigarro para limpar a garganta, ele diria o que todos queriam ouvir há muito tempo - desde que souberam das façanhas do jovem rapaz.

- Pois, então, pelos poderes concedidos a mim... Eu vos declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva.

Ao ouvir tais palavras, a igreja gritou em coro. Era impossível conter tamanho entusiasmo. A senhora que deu um copo d’água para o jovem, a sua nova sogra, estava bastante emocionada e correu para abraçar a filha, Louisie. A mãe de Edgar, que teve de conter o choro a maior parte do tempo, não suportou guardar tanta alegria dentro de si, e acabou desmaiando. A irmã e o papa pegaram-na no ar na mesma hora. O padre da paróquia arregaçou as mangas de sua túnica, relaxou os ombros e suspirou bem fundo, agradecendo aos céus. Ele parecia não acreditar que conseguiu casar aquele jovem sem que o mesmo tivesse um ataque de pânico e precisasse ser retirado às pressas do altar. Já Edgar, transpirava mais que um porco. Sua esposa estava bastante sorridente ao seu lado. Ela abraçou carinhosamente o marido, conseguindo deixá-lo um pouco mais relaxado.

- Viu só? - Disse ela. Deu tudo certo! Meu bebezinho lindo!

O jovem estava nauseado. Ainda não tinha caído a ficha que ele estava oficialmente casado. Lembrou-se de seu avô, o Sr. Thomas. Sua avó lhe dissera que ele havia se alistado para a guerra nos limites da cidade, apenas uma semana depois de seu casamento. Ela sempre lhe dizia que o admirava muito por isso. Coitada. A história que o papa contou pra ele era um pouco diferente dessa, mas Edgar concordou com ele que seria melhor a deixar acreditar no que bem lhe conviesse.

Quando Louisie se afastou do marido para receber os cumprimentos dos familiares e amigos, os parceiros de aventuras de Edgar o cercaram, fazendo graça com o coitado que mal havia se recuperado do stress recém passado.

- Parabéns, Sr. Edgar W. Richards! - Falou um deles, alegremente. Provavelmente bêbado. - Mandou ver! Agora a tua vida de fanfarrão foi pro ralo! - E desatou a rir.

- Não, quê isso! - Disse outro. - O velho e bom Edgar que conhecíamos não existe mais. Agora é Sr. Edgar W. ROCKEFELLER Richards!

Ainda um pouco zonzo, e incomodado com o assédio dos colegas, Edgar conseguiu desvencilhar-se deles e atravessou uma multidão de abraços, apertos de mãos e felicitações. Mal era capaz de distinguir quem era quem naquela confusão. Só queria ir para casa. Quando Edgar estava próximo da saída, seu pai veio de encontro a ele. Então, lhe dirigiu a palavra.

- Parabéns, filhão! - A voz saía forçosamente firme, e mais alta que o necessário para se fazer ouvido. A impressão que dava era que ele estava fazendo questão de que todos ao redor ouvissem. - Você foi muito bem! Estou bastante orgulhoso de você!

Jonathan abraçou o filho com mais força do que este poderia esperar. Estava quase sufocando o garoto. Então, sem o menor aviso, começou a chorar. E não era o choro de quem estava alegre ou o de quem sentiria saudades por ter que ver a sua prole criar asas e partir em voo solo. O homem parecia realmente inconsolável. Parecia que tinha perdido uma pessoa querida para sempre; o choro era de verdadeiro luto. Diante desta cena, Edgar, enfim, se recompôs, e retribuiu o abraço do pai.

- Nossa, pai, está tudo bem. Não foi tão mau assim. Vai ficar tudo bem. Prometo. Algumas coisas vão mudar um pouco, eu sei, mas é só isso.

Jonathan olhou bem no fundo dos olhos de tom caramelo dele, arrasado. A imagem dos olhos do avô do garoto lhe vieram à tona. Ao virar para o lado, avistou a esposa, e teve que esconder o rosto para que ela não o visse. Com as mãos trêmulas, fez um cafuné no filho, movendo os lábios como quem quisesse alertá-lo de alguma coisa. Ele sabia exatamente o que se sucederia ao menino. Já a mente inexperiente de Edgar, tentava agora convencê-lo de que o pior já tinha passado, e que tudo terminaria bem. Mas, mal sabia o pobre coitado que o verdadeiro pesadelo estava apenas começando.

Arthurx
Enviado por Arthurx em 09/07/2019
Reeditado em 12/01/2020
Código do texto: T6691487
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.