NEGRAS FOLHAS - memórias de um morto - (terror e mistério)


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Árvore viva, linda e com boa sombra, negras folhas finamente pela Natureza desenhadas, sem botões de flores, frutos mortos ressecados, nos galhos ainda dependurados. Tudo à sua volta era cinzento, o olor era ácido e fedorento, das raízes purgava uma gosma esverdeada, como um visgo estranho se expulsando do solo.


Pode parecer estranho falando assim, mas, eu moro neste lugar. Minha vida não tem nada de fantástico ou anormal, ao contrário. É só uma pasmaceira sem alegrias estonteantes ou glórias pontuais, sequer amores que deixam saudades, enfim, um tédio absoluto. Você deve estar se perguntando o motivo de estar lendo esse nada explícito, o quê estaria eu escondendo nas entrelinhas, que está prendendo a sua atenção, não é?

Então, eu vou contar...

Depois de me embrenhar no ócio, na esbórnia, na total decadência por não ter conseguido nada de bom nesta vida, família não consegui formar, só amantes vadias e vazias, inúmeros empregos de merda, incrivelmente nada sentia ou me abalava, resolvi ir para os confins do centro-oeste. Achei um casebre abandonado em meio um areal, tinha uma cama com colchão de palha, um armário pequeno com um saco de farinha e sal,  mesa e cadeira, uns panos velhos e um fogão à lenha. Fiquei por lá uns três dias, ninguém apareceu, tinha um poço no fundo e a água era boa, tinhas um cobres ainda no bolso, andei uns três quilômetros e achei  uma mercearia, o dinheiro era pouco, mas, deu pra comprar  alguns mantimentos, uma panelinha, uma frigideira, um facão e um pacote de talheres descartáveis, não passaria fome por uns dias. Ainda dei uma sorte danada, do lado da mercearia tinha uma bicicleta encostada, 'peguei emprestada' não iria mais voltar à pé.

Bem junto do casebre tinha uma árvore, carregada de frutos estranhos, não eram pêssegos, tampouco maçãs, mas, o gosto era bom e a textura parecia uma mistura das duas frutas, a cor da casca fina era  amarronzada e a polpa alaranjada, de fome não iria morrer, a dúvida era saber se a casa tinha um dono e se existisse, quando apareceria. A semana passou, precisava arrumar alguma grana, peguei um saco grande, enchi de frutas, andei os quilômetros até uma estrada mais movimentada, passei horas vendendo as frutas, voltei à mercearia e me abasteci de novo, a árvore estava sempre vingando os frutos, me esforcei e durante um mês ia vendendo os frutos, me abasteci por um bom tempo, até  comprei uma caixa de térmica, pelo menos poderia guardar uma comida por uns dois dias.

Dez meses se passaram e ninguém apareceu para reassumir o casebre, fiquei de boa, só achei estranho as folhas novas da árvore estarem nascendo negras e com um formato lindo, como que tivessem sido esculpidas uma a uma com precisão delicada, por um bisturi, mas, continuava brotando os estranhos frutos, ainda mais doces...




Três anos se passaram e um grupo de estudantes, num tour acadêmico de pesquisas geológicas, se depara com o casebre, uma cena no mínimo inusitada e assustadora a princípio, mas, a curiosidade falou mais alto e depois de fotografar a estranha árvore, que apesar de fedorenta parecia viva, entraram no casebre.

Sobre uma cama apodrecida, lugar cheio de teias de aranha, um ar nauseabundo e acre, um corpo seco, parecia mumificado, pele amarronzada e nas partes meio que descoladas do tronco, um interior de tom alaranjado envelhecido. Mesmo achando tudo estranho, fotografaram tudo e sairam rápido dali, tinham álcool gel nas mochilas, usaram e partiram. A situação toda os deixou com uma sensação estranha, resolveram parar as pesquisas daquele dia.



Nos meios de comunicação, começaram a aparecer relatos de corpos ressecados de tonalidade amarronzada e em algumas partes internas a cor alaranjada. Surgiam corpos de todos os tipos, homens, mulheres, crianças, até mesmo alguns pássaros e pequenos animais. Foram tantos casos, que cientistas, pesquisadores, repórteres invadiram o centro-oeste. Mas, não foi só por lá que aconteceu isso, foram apontados outros casos em outras  regiões, investigadores de polícia e cientistas, tentavam estabelecer uma conexão. 

Luiz um estagiário opaco de um tablóide da cidade onde ficava o casebre, parou numa mercearia do lugar e entre um refresco e um salgado, descobriu que tinha um cara que vendia umas frutas à beira da estrada, ele, o comerciante, não era muito chegado à frutas, nunca comprou, nem sua pequena família de esposa e filha. Só relatou que uns três moradores do lugar morreram com uma aparência ressecada e murcha e foram enterrados no cemitério de lá, coisa bem esquisita. 

Sem querer, Luiz conseguiu o furo de reportagem mais marcante de sua vida, a notoriedade veio em avalanche. Através do que ele escreveu na matéria, foi feita uma linha de investigação entre a árvore negra fedorenta, o corpo do casebre, os frutos estranhos e os consumidores da estrada.


Já se passaram cinco anos, sem que os cientistas tenham conseguido descobrir alguma relação entre o fruto e as mortes, tampouco a origem das lindas folhas negras da árvore. Quanto à gosma esverdeada, se  tratava de fungo, nada de anormal.


Luiz cresceu muito na profissão, amealhou uns bons cobres, foi convidado para trabalhar num grande jornal nos Estados Unidos. Já estava por lá a alguns meses, quando conheceu Iolanda, uma fotógrada de uma revista de moda, bem renomada. Se apaixonaram logo na primeira semana. Com o passar dos dias, Luiz descobriu que Iolanda era apaixonada por bonsais, ela estava doida para mostrar o mais novo que garimpara no bairro chinês, para tanto e para namorar, marcou um jantar com ele em seu próprio apartamento, no sábado seguinte.


O que aconteceu depois, virou manchete no mundo, só que o personagem principal foi o jornalista Luiz.


Ao chegar ao apartamento, depois de beijinhos e abraços, Iolanda foi logo mostrar seu mimo ao namorado, num surto de loucura, Luiz pegou uma estatueta de bronze e destruiu o bonsai, abriu a janela, jogou os restos da planta por ela e num choro convulsivo, se agarrou às pernas de uma Iolanda que gritava apavorada.


Na calçada do centro nervoso econômico e financeiro da cidade, jazia dilacerado, um bonsai de lindas folhas negras, fina e delicadamente esculpidas pela Natureza...

 
Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 29/04/2019
Reeditado em 08/05/2019
Código do texto: T6635076
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