Apenas uma Dose
Ouvia rock honesto e puro, quando ela chegou desfazendo-se sobre o telhado. Ploc; ploc. Um à um iam sendo desfeitos. Aos poucos, o acúmulo escorria pelo chão. Ele via aquilo que não lhe parecia água. Interessava por outro líquido. Imaginou um morcego sugando-lhe a jugular. Rilhando os dentes, gargalhou estrodonsamente. Uma coruja que pousada no galho da árvore seca, espreitando sua postura revolucionária, tombou depenada em seus pés. Em segundos, emergindo da sola de seus pés, larvas e vermes cobriamo bicho desfalecido. Mastigou alguma coisa e cuspiu as penas.
Rock nas caixas; gotas de chuva nos telhados. Gatos e cães sarnentos molhados nas esquinas. As drogas de boca em boca. Defuntos esticados, rijos, de poucos sorrisos em maletas de madeira envernizadas. Na plataforma o trem aguardava o anúncio de partida. Uma vela servia-lhe de passaporte para a viagem sem volta. Para a viagem ao destino desconhecido.
Para quem embarcara, não havia mais luz, não haviam mais palavras, não havia mais redenção. Levantar e andar de cabeça erguida, jamais. Como as flores desfalecidas, dissera o adeus para nunca mais.
O rock seguia sua marcha fúnebre. Granfunk Railroad; Ozzi Osborne; Joe Cocker; Alice Cooper; Black Sabbat; Raul Seixas com seu rock do diabo, na lista de preferidos. Rock era o estilo de música que mais gostava; aliás quase único. Quando a paranóia lhe invadia, recolhia-se no jardim e colhendo flores, berrava, uivava para o mundo que a cultura e a arte construía, enquanto a amor destrói.
Poetizando, confabulava com Deus, interrogando-o por que criara a palavra amor, se amor nunca pairou em frente aos seus olhos. "Pura ilusão dos crentes, dos religiosos, Deus. O mundo foi construído, pintado com o vermelho do sangue. Revolução já. Que falácia é dizer que as mulheres, as mães são obras da mais pura criação? Por que plantastes essa ideia na mente dos terráqueos, se condenastes Eva, chamando-a de serpente? Víbora traidora. Peçonhenta. Eu não tenho mãe. Fui incubado. Não venho de um ventre, mas de uma chocadeira. São elas que trazem a pobreza, a miséria, a discórdia, a gana e ganância. A Bíblia é um livro que prefacia sua imagem e semelhança; ou como a ciência, é mais uma maneira de contar estórias para ninar ruminantes? Historiadores estudam história, guerras, revoluções, sangue, vida e morte; mas são incapazes de entrar para a história. Covardes. A guerra depura, limpa, expurga. Foi ela e não outra maneira, que trouxe para o homem o conhecimento da tecnologia, a qual usa deliberadamte; a química pesada, da química sintética e daqui à pouco nos falamos pessoalmente. Aguarde-me". E fez um risco nos punhos com a adaga. "Sangue; definitivamente, sangue".
A chuva cessou. O rock seguia, porém quem lhe ouvia, não mais existia. Vítima de uma over dose de césio 147, o Czar subiria aos céus. Amante da verdade, marcara reunião com Deus. Com os olhos cobertos de flores, a vida não mais o iludiria. "Sonhar, para quê sonhar, se as águas correm para o mar."
E entregando seu corpo ao desfazimento químico, nada mais lhe restou, a não ser um grito gutural. Definitivamente, não seria mais ludibriado pela vida. Fora tomado pelos vermes e moscas. Ainda tendo forças para limpar o ventre, expelindo um toco de merda, entregara-o para a revolução decompositora. Subiria ao céu limpo de corpo, espírito e alma.
"Não valho o excremento que defeco todos os dias. Perdoe-me Natureza por tê-la sujado por tanto tempo a fio. Fostes compreensiva comigo. Essa é a única maneira de compensa-lá." E não causou revolução nenhuma, a não ser a dele mesmo.