Excelentíssima Insolência
O olhar ciclópico de um laranja-avermelhado,
engolfado num azul celeste límpido e abrasador,
mergulhava no horizonte com relutância,
fazendo as sombras das árvores à beira da estrada
se prolongarem como fantasmas cinzentos e retorcidos.
engolfado num azul celeste límpido e abrasador,
mergulhava no horizonte com relutância,
fazendo as sombras das árvores à beira da estrada
se prolongarem como fantasmas cinzentos e retorcidos.
Já passava das dezenove horas e, por mais extraordinário que pudesse parecer, a luz do dia relutava em ceder lugar à noite. Nada demais, afinal as tardes no nordeste do Piauí eram sempre assim.
Eles haviam saído de Curimatá para a cidade de Redenção do Gurguéia e mesmo àquela hora o asfalto parecia se distorcer em ondas de vapor, ao compasso que a Amarok marrom-safari avançava pela estrada, desbravando buracos e realizando curvas sinuosas com a mesma sutileza de um felino sobre rodas.
— Branca de Neve, coloca alguma coisa para tocar — ordenou o homenzinho no banco de passageiros, uma das mãos acariciando as belas coxas da morena ao seu lado, enquanto focava o empregado pelo retrovisor central. Sentava-se igual a um rei no trono, as pernas afastadas e a camisa de seda Saint Laurent branca com as mangas dobradas. — E nada das breguices que você escuta, porque a dona aqui tem bom gosto — emendou, exibindo um sorrisinho debochado.
— Excelentíssimo Prefeito, todas aqui são de ótima qualidade, pois foram selecionadas a dedo pelo senhor — retorquiu pomposamente o motorista, manuseando a tela touchscreen de 6,3 no centro do painel, fazendo Have You Ever Seen The Rain, de Creedence Clearwater, emanar dos escombros dos anos 70 e invadir o interior do veículo.
— Não é das minhas preferidas, mas é o que tem para hoje, belezura — resmungou numa ofensa afetada, e a morena concordou sob um riso artificial. Ele mirou-lhe os fartos seios e a boca carnuda besuntada de batom vermelho-vivo, um elaborado artifício que pulsava naquele rosto claro de cabelos pretos. — Que diabos, aqui está um calor dos infernos — falou, esfregando a mão no pescoço como se o ambiente estivesse fervendo e o suor empapando-lhe a camisa. Puro pedantismo. — Oh, Branca de Neve, liga o ar-condicionado que o papai aqui está derretendo.
O motorista atendeu, pressionando o botão do painel várias vezes, emitindo sonoros bips. Sabia que a regulavam já estava na menor temperatura possível, mesmo assim precisava mostrar que cumprira o ordenado.
— Branca de Neve — recomeçou o homenzinho — no que pensaria se estivesse com um mulherão desses?
— Não me atrevo a pensar coisa alguma, porque sei que uma dama como essa não é para mim, não é do meu cacife — respondeu, e foi algo tão espontâneo [mecânico, para ser mais exato] que as palavras pareciam estar na ponta da língua.
— É isso ai. Você sabe das coisas. E quanto ao carrinho novo do seu chefe, o que está achando?
Mariano Dos Lírios Oliveira, alcunhado pelo homenzinho de Branca de Neve (uma depreciativa alusão à pálida princesa de Walt Disney, convém dizer, pois ele era um negro alto e benevolente), mastigou a pergunta antes de responder.
Havia dois meses que ocupava o cargo de motorista (mordomo, garçom, leão-de-chácara) e nesse meio tempo aprendera que o esnobismo do chefe se tornava menos intragável quando seguia a regra “ouvir-e-fazer”, nada mais. Sem críticas, sem argumentações, sem delongas. Bastava deixá-lo no centro do picadeiro e tudo acabaria bem — uma regra simples que até mesmo a bonita acompanhante se dera conta, mantendo sempre um sorriso no rosto e a boca calada, pronta para responder o que mais o conviesse.
Porém
— o carrinho novo do SEU CHEFE —
a frase pareceu cantarolar zombeteiramente no cérebro de Mariano, soando muito mais cáustica que de costume.
O chefe, aquele gorducho que obrigava todos os seus empregados a engrandecê-lo com o título de Excelentíssimo Prefeito.
O chefe que fraudava licitações para construção de hospitais, recuperação de estradas e manutenção do sistema de abastecimento de água.
O chefe que afanava os honorários dos servidores públicos e funcionários sob uma infinidade de desculpas.
Excelentíssimo Prefeito de Curimatá, que já havia sido cassado duas vezes por compra de votos, improbidade administrativa e que respondia a quatro processos de peculato, mas que com manobras políticas sempre conseguia retornar e se manter no cargo.
Estigmas de uma cidade sem leis chamada “Brasil”. Era isso.
Mariano deu uma olhadela no retrovisor, capturando o gorducho encher uma taça de champanhe e oferecer à moça.
Enquanto isso, a população da cidade tem que se deslocar quilômetros para conseguir um mísero balde d’água, ruminou.
Soltou um suspiro ruidoso, xingando-o mentalmente de um razoável palavrão, que envolvia mãe e bordel, se remexendo no banco e segurando firme o volante. Seu próprio salário estava atrasado e o infeliz gastando uma fortuna para bancar o Don Juan com uma ninfeta.
Só aquela Saint Laurent pagaria meu salário por dois meses, avaliou, xingando-o mais uma vez.
— O Excelentíssimo Prefeito tem bom gosto, disso não tenho dúvidas — e a resposta mais uma vez saiu mecanizada.
Cansara-se daquilo. Cravou o pé no acelerador, irritado, avaliando que quanto mais cedo chegasse à Redenção, mais rápido o despacharia num hotel escondido e previamente reservado — e ele poderia ir a algum inferninho no centro e se divertir com o novo carrinho do chefe. Se divertir como, sem um fulo no bolso?
— FILHO DA PUTA! — vociferou, as palavras saindo irrefreáveis como se tivessem vida própria.
— O que disse? — inquiriu o prefeito, tomando um susto.
— Nada, foi apenas um gambá que passou na estrada e me exaltei — resmungou por entre os dentes, sem se voltar.
Mesmo sendo novo no cargo, já tinha feito aquela rota várias vezes. Sabia que a primeira-dama e suas duas filhas adolescentes ficavam em casa, (aliás, uma construção enorme que ocupava um quarteirão inteiro e que mais se assemelhava a um palacete) sentadas à beira da piscina ou discutindo futilidades, enquanto o prefeito se dirigia a um “almoço de negócios” em alguma cidade vizinha.
Estes “almoços” têm que ser afastados para não despertar suspeitas, dizia, e às vezes podem se estender a um jantar, caso o rendimento seja satisfatório.
E eram almoços saborosos, geralmente acompanhados de belas nádegas e guarnecidos com fartura de seios vindos de São Paulo, Santa Catarina ou Rio de Janeiro. Quanto mais longe, melhor e mais seguro. Acompanhantes de luxo eram uma maravilha.
A primeira-dama nunca soube das escapadelas do marido (ou fingia, não saber) e ele era cuidadoso no sentido de programar uma rota e seguir na direção oposta, assim como avisar que os celulares deveriam ser desligados para evitar possíveis gravações e obtenção de provas, caso algo desse errado. Às vezes até o rastreador GPS do veículo era desativado.
Mariano era um sujeito esperto, que só havia cursado até o ensino médio, mas que sabia se virar ante as adversidades — bom de lábia, conseguia formular frases bonitas e às vezes complexas sem maiores embaraços.
Frases treinadas. Frases decoradas.
Frases que o repugnante homenzinho adorava.
Frases que inflamavam o ego do Excelentíssimo Prefeito que estava lhe devendo dois meses de salário.
Frases que engrandeciam aquele filho da puta, enquanto ele fodia os outros.
Puta que pariu! Quando um cara desses vai se estrepar na vida?!, pensava, a crescente raiva instigando-o enterrar o pé no acelerador, fazendo-o perder totalmente a noção da brutal velocidade que o carro se encontrava, quando entrou numa curva fechada à esquerda.
Eles haviam saído de Curimatá para a cidade de Redenção do Gurguéia e mesmo àquela hora o asfalto parecia se distorcer em ondas de vapor, ao compasso que a Amarok marrom-safari avançava pela estrada, desbravando buracos e realizando curvas sinuosas com a mesma sutileza de um felino sobre rodas.
— Branca de Neve, coloca alguma coisa para tocar — ordenou o homenzinho no banco de passageiros, uma das mãos acariciando as belas coxas da morena ao seu lado, enquanto focava o empregado pelo retrovisor central. Sentava-se igual a um rei no trono, as pernas afastadas e a camisa de seda Saint Laurent branca com as mangas dobradas. — E nada das breguices que você escuta, porque a dona aqui tem bom gosto — emendou, exibindo um sorrisinho debochado.
— Excelentíssimo Prefeito, todas aqui são de ótima qualidade, pois foram selecionadas a dedo pelo senhor — retorquiu pomposamente o motorista, manuseando a tela touchscreen de 6,3 no centro do painel, fazendo Have You Ever Seen The Rain, de Creedence Clearwater, emanar dos escombros dos anos 70 e invadir o interior do veículo.
— Não é das minhas preferidas, mas é o que tem para hoje, belezura — resmungou numa ofensa afetada, e a morena concordou sob um riso artificial. Ele mirou-lhe os fartos seios e a boca carnuda besuntada de batom vermelho-vivo, um elaborado artifício que pulsava naquele rosto claro de cabelos pretos. — Que diabos, aqui está um calor dos infernos — falou, esfregando a mão no pescoço como se o ambiente estivesse fervendo e o suor empapando-lhe a camisa. Puro pedantismo. — Oh, Branca de Neve, liga o ar-condicionado que o papai aqui está derretendo.
O motorista atendeu, pressionando o botão do painel várias vezes, emitindo sonoros bips. Sabia que a regulavam já estava na menor temperatura possível, mesmo assim precisava mostrar que cumprira o ordenado.
— Branca de Neve — recomeçou o homenzinho — no que pensaria se estivesse com um mulherão desses?
— Não me atrevo a pensar coisa alguma, porque sei que uma dama como essa não é para mim, não é do meu cacife — respondeu, e foi algo tão espontâneo [mecânico, para ser mais exato] que as palavras pareciam estar na ponta da língua.
— É isso ai. Você sabe das coisas. E quanto ao carrinho novo do seu chefe, o que está achando?
Mariano Dos Lírios Oliveira, alcunhado pelo homenzinho de Branca de Neve (uma depreciativa alusão à pálida princesa de Walt Disney, convém dizer, pois ele era um negro alto e benevolente), mastigou a pergunta antes de responder.
Havia dois meses que ocupava o cargo de motorista (mordomo, garçom, leão-de-chácara) e nesse meio tempo aprendera que o esnobismo do chefe se tornava menos intragável quando seguia a regra “ouvir-e-fazer”, nada mais. Sem críticas, sem argumentações, sem delongas. Bastava deixá-lo no centro do picadeiro e tudo acabaria bem — uma regra simples que até mesmo a bonita acompanhante se dera conta, mantendo sempre um sorriso no rosto e a boca calada, pronta para responder o que mais o conviesse.
Porém
— o carrinho novo do SEU CHEFE —
a frase pareceu cantarolar zombeteiramente no cérebro de Mariano, soando muito mais cáustica que de costume.
O chefe, aquele gorducho que obrigava todos os seus empregados a engrandecê-lo com o título de Excelentíssimo Prefeito.
O chefe que fraudava licitações para construção de hospitais, recuperação de estradas e manutenção do sistema de abastecimento de água.
O chefe que afanava os honorários dos servidores públicos e funcionários sob uma infinidade de desculpas.
Excelentíssimo Prefeito de Curimatá, que já havia sido cassado duas vezes por compra de votos, improbidade administrativa e que respondia a quatro processos de peculato, mas que com manobras políticas sempre conseguia retornar e se manter no cargo.
Estigmas de uma cidade sem leis chamada “Brasil”. Era isso.
Mariano deu uma olhadela no retrovisor, capturando o gorducho encher uma taça de champanhe e oferecer à moça.
Enquanto isso, a população da cidade tem que se deslocar quilômetros para conseguir um mísero balde d’água, ruminou.
Soltou um suspiro ruidoso, xingando-o mentalmente de um razoável palavrão, que envolvia mãe e bordel, se remexendo no banco e segurando firme o volante. Seu próprio salário estava atrasado e o infeliz gastando uma fortuna para bancar o Don Juan com uma ninfeta.
Só aquela Saint Laurent pagaria meu salário por dois meses, avaliou, xingando-o mais uma vez.
— O Excelentíssimo Prefeito tem bom gosto, disso não tenho dúvidas — e a resposta mais uma vez saiu mecanizada.
Cansara-se daquilo. Cravou o pé no acelerador, irritado, avaliando que quanto mais cedo chegasse à Redenção, mais rápido o despacharia num hotel escondido e previamente reservado — e ele poderia ir a algum inferninho no centro e se divertir com o novo carrinho do chefe. Se divertir como, sem um fulo no bolso?
— FILHO DA PUTA! — vociferou, as palavras saindo irrefreáveis como se tivessem vida própria.
— O que disse? — inquiriu o prefeito, tomando um susto.
— Nada, foi apenas um gambá que passou na estrada e me exaltei — resmungou por entre os dentes, sem se voltar.
Mesmo sendo novo no cargo, já tinha feito aquela rota várias vezes. Sabia que a primeira-dama e suas duas filhas adolescentes ficavam em casa, (aliás, uma construção enorme que ocupava um quarteirão inteiro e que mais se assemelhava a um palacete) sentadas à beira da piscina ou discutindo futilidades, enquanto o prefeito se dirigia a um “almoço de negócios” em alguma cidade vizinha.
Estes “almoços” têm que ser afastados para não despertar suspeitas, dizia, e às vezes podem se estender a um jantar, caso o rendimento seja satisfatório.
E eram almoços saborosos, geralmente acompanhados de belas nádegas e guarnecidos com fartura de seios vindos de São Paulo, Santa Catarina ou Rio de Janeiro. Quanto mais longe, melhor e mais seguro. Acompanhantes de luxo eram uma maravilha.
A primeira-dama nunca soube das escapadelas do marido (ou fingia, não saber) e ele era cuidadoso no sentido de programar uma rota e seguir na direção oposta, assim como avisar que os celulares deveriam ser desligados para evitar possíveis gravações e obtenção de provas, caso algo desse errado. Às vezes até o rastreador GPS do veículo era desativado.
Mariano era um sujeito esperto, que só havia cursado até o ensino médio, mas que sabia se virar ante as adversidades — bom de lábia, conseguia formular frases bonitas e às vezes complexas sem maiores embaraços.
Frases treinadas. Frases decoradas.
Frases que o repugnante homenzinho adorava.
Frases que inflamavam o ego do Excelentíssimo Prefeito que estava lhe devendo dois meses de salário.
Frases que engrandeciam aquele filho da puta, enquanto ele fodia os outros.
Puta que pariu! Quando um cara desses vai se estrepar na vida?!, pensava, a crescente raiva instigando-o enterrar o pé no acelerador, fazendo-o perder totalmente a noção da brutal velocidade que o carro se encontrava, quando entrou numa curva fechada à esquerda.
2
Mesmo diante de toda a tecnologia e artifícios de segurança da Amarok, o acidente foi inevitável.
O pé do motorista chumbado no freio pouco teve efeito, pois a velocidade fez com que a picape atravessasse a pista em linha reta e voasse entre a diferença de elevação do asfalto e a área cascalhada.
Os freios ABS off-road não tiveram tempo de agir, permitindo que o veículo adentrasse pelo meio das árvores, alcançando o declive que margeava a estrada, prosseguindo por um bom espaço e enfim se chocasse a um imenso tronco de árvore recentemente cortado, alavancando a Amarok para uma vertiginosa capotagem de dois lentos e pesados giros. E tudo aconteceu em segundos, finalizando com a picape erguendo-se a alguns metros e caindo de cabeça para baixo sobre a vegetação que cercava o lugar, suas rodas girando a esmo como uma tartaruga emborcada.
A sensação dos ocupantes foi a de estar dentro de um liquidificador gigante; os corpos do gorducho e sua acompanhante de luxo debatendo-se para todos os lados num frenesi de estilhaços de vidro, garrafas, taças, gritos desesperados e sangue — muito sangue. O motorista foi o que menos sofreu, pois o cinto de segurança o manteve firme em seu assento, os airbags o protegendo da violência do impacto.
Então veio o súbito e aterrador choque com o piso, a carroceria afundando e se espremendo como que pressionada por uma marretada invisível — e finalmente o sepulcral silêncio.
3
Passava das nove da manhã do dia seguinte e o sol castigava as imediações com a ternura de uma fornalha infernal.
O veículo havia descido o declive, batido no tronco e capotado a uns cinquenta metros de distância da curva na estrada, caindo num local e posição que, até mesmo se o estivessem procurando, seria difícil encontrar. Num abraço verde e emaranhado, a espessa vegetação o encobrira por completo.
E era um milagre ele estar vivo — um milagre que lhe custaria absurdamente caro.
O suor minava-lhe na testa, formando filetes ao deslizar para dentro dos olhos fechados. Um calor úmido revestia seu corpo e imaginou estar sob o guarda-sol de alguma praia ou à beira da piscina. Sua esposa deveria estar ao seu lado, tagarelando…
Tagarelando.
Não, só havia silêncio.
Abriu os olhos com força, sentindo desorientação ao ver a copa verde das árvores à sua volta. Um sonho. Piscou várias vezes, forçosamente. Não, não era sonho. Ergueu a cabeça, notando o reflexo marrom-safari de sua Amarok novinha e…
Uma sensação gélida escalou-lhe a garganta com a audácia desagradável de uma aranha peluda subindo por um cano de esgoto, trazendo-lhe à mente a lembrança do acidente.
Aquele negro miserável bateu meu carro!
Seu cérebro processou a rancorosa frase; no entanto, ao tentar pronunciá-la, nada conseguiu além de resmungos e sons guturais.
Que estranho.
Tentou dizer algo, mover a boca, colocar a língua para fora, cuspir… e nada. Num esforço para se acalmar, ergueu a mão esquerda e fez menção de coçar o queixo, tocando levemente em algo úmido.
Mais estranheza.
Tateou um pouco mais, percebendo que os dedos avançavam para o interior da região onde deveria estar o seu maxilar. Um lampejo de desespero o abateu, pungente. Trêmulo, passou a dedilhar a face, constatando com horror que toda a parte inferior do seu rosto não mais existia — a descoberta sendo tão chocante que seus sentidos se viram sabotados, fazendo-o desmaiar.
O pé do motorista chumbado no freio pouco teve efeito, pois a velocidade fez com que a picape atravessasse a pista em linha reta e voasse entre a diferença de elevação do asfalto e a área cascalhada.
Os freios ABS off-road não tiveram tempo de agir, permitindo que o veículo adentrasse pelo meio das árvores, alcançando o declive que margeava a estrada, prosseguindo por um bom espaço e enfim se chocasse a um imenso tronco de árvore recentemente cortado, alavancando a Amarok para uma vertiginosa capotagem de dois lentos e pesados giros. E tudo aconteceu em segundos, finalizando com a picape erguendo-se a alguns metros e caindo de cabeça para baixo sobre a vegetação que cercava o lugar, suas rodas girando a esmo como uma tartaruga emborcada.
A sensação dos ocupantes foi a de estar dentro de um liquidificador gigante; os corpos do gorducho e sua acompanhante de luxo debatendo-se para todos os lados num frenesi de estilhaços de vidro, garrafas, taças, gritos desesperados e sangue — muito sangue. O motorista foi o que menos sofreu, pois o cinto de segurança o manteve firme em seu assento, os airbags o protegendo da violência do impacto.
Então veio o súbito e aterrador choque com o piso, a carroceria afundando e se espremendo como que pressionada por uma marretada invisível — e finalmente o sepulcral silêncio.
3
Passava das nove da manhã do dia seguinte e o sol castigava as imediações com a ternura de uma fornalha infernal.
O veículo havia descido o declive, batido no tronco e capotado a uns cinquenta metros de distância da curva na estrada, caindo num local e posição que, até mesmo se o estivessem procurando, seria difícil encontrar. Num abraço verde e emaranhado, a espessa vegetação o encobrira por completo.
E era um milagre ele estar vivo — um milagre que lhe custaria absurdamente caro.
O suor minava-lhe na testa, formando filetes ao deslizar para dentro dos olhos fechados. Um calor úmido revestia seu corpo e imaginou estar sob o guarda-sol de alguma praia ou à beira da piscina. Sua esposa deveria estar ao seu lado, tagarelando…
Tagarelando.
Não, só havia silêncio.
Abriu os olhos com força, sentindo desorientação ao ver a copa verde das árvores à sua volta. Um sonho. Piscou várias vezes, forçosamente. Não, não era sonho. Ergueu a cabeça, notando o reflexo marrom-safari de sua Amarok novinha e…
Uma sensação gélida escalou-lhe a garganta com a audácia desagradável de uma aranha peluda subindo por um cano de esgoto, trazendo-lhe à mente a lembrança do acidente.
Aquele negro miserável bateu meu carro!
Seu cérebro processou a rancorosa frase; no entanto, ao tentar pronunciá-la, nada conseguiu além de resmungos e sons guturais.
Que estranho.
Tentou dizer algo, mover a boca, colocar a língua para fora, cuspir… e nada. Num esforço para se acalmar, ergueu a mão esquerda e fez menção de coçar o queixo, tocando levemente em algo úmido.
Mais estranheza.
Tateou um pouco mais, percebendo que os dedos avançavam para o interior da região onde deveria estar o seu maxilar. Um lampejo de desespero o abateu, pungente. Trêmulo, passou a dedilhar a face, constatando com horror que toda a parte inferior do seu rosto não mais existia — a descoberta sendo tão chocante que seus sentidos se viram sabotados, fazendo-o desmaiar.
4
Acordou meia hora mais tarde, a sede o incomodando como se tivesse areia na boca.
Uma boca que não mais existia.
A lembrança o fez chorar como uma criança que perde o doce, o doce que tanto adorava. Ele perdera a boca, a boca que tanto adorava — aos outros humilhar. Chorou mais forte, um choro feio e gorgojante, empapado de sangue e pedaços esmigalhados de ossos, pele e cartilagem.
Parou de chorar somente uns vinte minutos depois, dizendo a si mesmo que precisava ser forte, que precisa fazer alguma coisa — que precisava de uma boca para gritar. Sabia que não estava longe da estrada e que se pudesse gritar seria ouvido. Mas não podia.
Respirou fundo. A garganta doía, mas ao menos ainda a tinha.
Se acalmando, fez menção de levantar, porém suas pernas o golpearam com uma dor tão excruciante que as coxas se retesaram numa câimbra violenta, jogando-o ao chão. E teria trincado os dentes, se os tivesse por completo.
Que raios foi agora?, pensou, aguardando as dores cessar para poder erguer a cabeça. E ergueu, constatando que
PUTA QUE PARIU!
a picape jazia-lhe sobre as pernas, provavelmente estraçalhadas, e sua camisa Saint Laurent (que lhe custara a bagatela de R$2.200,00) estava em frangalhos, expondo a barriga protuberante retalhada por cruentos cortes.
Dessa vez não desmaiou, mas ficou longo tempo chorando, avaliando que decerto no decorrer dos solavancos da capotagem, seu corpo tenha sido parcialmente expelido pela janela traseira, sendo esmagado. Metade dentro, metade fora. O Excelentíssimo Prefeito não usava o cinto de segurança no momento da colisão.
Excelentíssimo Prefeito.
De súbito, evocou a frase de Branca de Neve, o negro que pronunciava o mais entusiástico Excelentíssimo Prefeito, e ao olhar para o local onde deveria estar o banco do motorista, encontrou uma massa disforme e sangrenta presa ou cinto — os airbags acionados empurrando-a para fora.
Provavelmente a prostituta encomendada de São Paulo não tivera diferente fim, refletiu.
Recostou a cabeça na vegetação, pensando no que faria para se livrar de mais aquela enrascada, afinal já se livrara de muitas outras. A um político influente como ele, sempre há meios de burlar o que quer que seja.
Lembrou do celular e sorriu ante a astúcia de ligar e pedir socorro — e de imediato uma voz escarnecedora lhe sussurrou dos confins mais remotos de sua mente:
Excelentíssimo Prefeito, o celular se espatifou com o acidente; além do mais, ele já estava desligado há algum tempo.
Sugeriu que logo alguém o procuraria na cidade para onde dissera que ia.
Excelentíssimo Prefeito, foi informado que o senhor se dirigiria a Júlio Borges, uma rota oposta à Redenção do Gurgel.
O GPS da Amarok vai indicar a locação. O sistema é quase como a caixa-preta de um avião.
Excelentíssimo Prefeito, ele foi desativado assim que saímos de Curimatá.
PUTA QUE PARIU!
5
Passava das quatro horas da tarde. O sol não penetrava sob a copa das árvores, mas ainda assim o calor era extenuante.
Exaurido, havia cochilado várias vezes no decorrer do dia, incapaz de pensar em algo ou sequer se esforçar para isso. A única coisa que fizera fora descobrir que sentia fome e uma sede devastadora — e que seu braço direito jazia retorcido sob seu corpo, inutilizado.
Suas pernas, seu rosto, seu braço e sabe lá mais o que estavam estropiados.
Não tinha coragem de passar o corpo em revista para saber a extensão dos ferimentos e os ia descobrindo aos poucos, se perguntado dúzias de vezes por que não tinha morrido e pronto.
Talvez não tivesse perdido a quantidade de sangue ou tido ferimentos suficientes.
Mas queria morrer.
Morrer de uma vez, como uma espécie de presente grego que o motorista e a prostituta tinham ganhado — instantaneamente. Mas, não, ele tinha que ficar fazendo hora extra no mundo, só para justificar a expressão popular “de que vaso ruim é difícil quebrar”.
Desejou morrer logo, mais uma vez.
Entretanto, ao invés disso, suspeitou que os ferimentos estivessem infeccionando. Por alguma razão, até o momento só sentia dor quando tentava se mover; porém, no decorrer das últimas horas, uma comichão esquisita, morna e debilitante, vinha devorando seu corpo lenta e implacavelmente.
E o sono causado pela exaustão era inevitável.
6
Um som próximo arrancou-o do sono: vozes e motosserra. Alguém devia ter notado algo errado na estrada e descido para verificar. Enfim estava salvo.
Por mais de meia hora, ouviu vozes ininteligíveis conversando, apenas palavras esparsas e longínquas, intercaladas com o ruído agressivo de uma motosserra trabalhando, barulho de árvores estralando, caindo e sendo arrastadas. E tudo num ritmo alucinado, de quem tem pressa. E deveriam mesmo ter muita pressa, porque já estava escurecendo.
Escurecendo.
Seus sentidos.
Queria permanecer ativo, acompanhando cada centímetro da aproximação das buscas. Contudo, suas forças e consciência não colaboravam, insistindo, se extinguindo… seus olhos…
Escurecendo.
7
Despertou no meio da noite, a vegetação ao redor imersa numa quietude aterradora — e recordou de imediato o som da motosserra.
Haviam cessado as buscas? Por que não me resgataram?, perguntava-se, cabeça e corpo pulsando numa dor compartilhada, vertiginosa, atroz, como se dezenas de formigas tocandira o picassem ao mesmo tempo.
A fome. A sede. Os ferimentos. As infecções.
Coisas rastejando.
Sons de galhos leves se quebrando.
Pássaros noturnos adejando asas.
A angústia enervante de estar perdido na bocarra da noite, sendo lambido pela língua negra e pegajosa do sereno, exposto a animais notívagos e sabe Deus o que mais.
Tudo parecia confabular contra ele, projetando possibilidades absurdas e inomináveis em sua mente, até enfim levá-lo à perda de sentidos.
8
Acordou nas primeiras horas da manhã.
Sentia-se consideravelmente pior, mais debilitado e aflito, e ainda assim estava decidido que não tornaria a passar mais uma noite ali. O sujeito pode ser o mais HOMEM possível, mas uma experiência igual àquela faria muita coisa mudar dentro dele — principalmente no que diz respeito à sanidade.
No dia anterior, ficara tão entusiasmado com a aproximação das vozes e o trabalho da motosserra que não aventou a possibilidade de fazer barulhos para chamar a atenção e orientar nas buscas.
Buscas, Excelentíssimo Prefeito? — e a essa altura a “voz” de Branca de Neve não era mais prazerosa e sim debochada.
Sim, buscas!
Já amanheceu. Por que será que não foram retomadas, sendo que nem deveriam ter cessado, Excelentíssimo Prefeito?
Não sabia; na verdade, não mais sabia de coisa alguma. Há situações que podem enlouquecer um homem e aquela era uma delas.
Ouvindo vozes.
Só poderia estar ficando louco, certamente; todavia, uma questão importante fora levantada: e se não fossem buscas e, se de fato fossem, por que não foram retomadas?
Meneou a cabeça, irritadiço. Precisava acreditar que estavam à sua procura, precisava crer em algo. Não queria passar mais uma noite ali. Não podia. Não aguentaria.
Com muita dificuldade devido à febre e as estigmatizante dores que pululavam-lhe pelo corpo, sondou as cercanias.
Era incapaz de compreender a dinâmica do acidente, mas notou que a picape trouxera boa diversidade de ramos, cipós e árvores estilhaçadas para baixo. Nada que pudesse ser aproveitado.
Concentrou-se do lado esquerdo. Havia um pedaço de galho seco ali. Talvez se o pegasse, poderia alcançar a lataria da Amarok, onde bateria para chamar a atenção quando as buscas recomeçassem.
Tencionou estender o braço, quando notou um gemido langoroso na copa das árvores.
Parou.
Ficou na escuta. Um novo gemido, mais forte agora. Seu coração começou a bater num descompasso, angustiado. Girou os olhos, procurando a fonte do ruído, quase se borrando de medo ao deparar com a carranca empalidecida, de dentes afilados expostos e agressivos a fitá-lo, lá do alto. E ela abriu e fechou a boca, produzindo aquele fragor sinistro e sombrio.
9
Uma fustigada de vento sacudiu novamente as árvores, forçando o prefeito apurar a visão, enfim compreendendo que a carranca nada mais era que um tronco forçado para baixo e estourado, os veios irregulares da madeira sobressaindo-se de modo que parecessem dentes — dentes que gemiam.
Traumas do acidente — e nada mais. Liberou o ar tensionado dos pulmões, fechando os olhos para restabelecer os nervos.
Respirou fundo, após breve descanso, restituindo à mente seu intento. Precisava facilitar as buscas.
Com a máxima cautela, esticou o braço esquerdo e com relativa tranqüilidade agarrou o galho seco. Um peso razoável. Precisava testá-lo.
Ergueu-o em direção à lataria marrom-safari, porém a mão debilitada simplesmente não suportou o esforço e o deixou cair — uma de suas pontas descendo de encontro a uma ferida acima de sua virilha.
Sua garganta vomitou um urro grotesco, as mandíbulas venenosas de uma dor aniquilante esmurrando-lhe o cérebro, mas infelizmente não foi isso que fez seus olhos se abrirem horrorizados, ficando quase do tamanho de bolas de ping-pong. Nada disso. O que ele viu era ainda mais nocivo de que qualquer coisa absurda que podia imaginar.
10
Na verdade, ele primeiro sentiu.
Sentiu o fedor de carne apodrecida que agora o vento lhe soprava no nariz — e então aquela mosca enorme saiu do ferimento em sua virilha e escalou a protuberância de sua barriga, ficando a dar saltinhos curtos e circulares ao chegar ao alto de um corte aberto, purulento.
Insolente, a asquerosa praga de corpo cinza e listras pretas parou e o encarou, movendo sua cabeça de grandes olhos vermelhos para lá e para cá numa imposição interrogativa. Ela o examinava como se quisesse saber o porquê dele a ter perturbado.
Sarcophaga carnaria. Mosca-do-sertão — ou mosca da carne.
Conhecia-a muito bem por ser uma praga comum à região.
Uma mosca que se alimenta de carne em decomposição, Excelentíssimo Prefeito. Você está apodrecendo vivo.
Enojado, moveu a mão para afugentá-la, o movimento dolorido e lerdo sendo evitado com um vôo desleixado do inseto. Tentou mais quatro vezes, sem sucesso. Desistiu, não aguentando mais qualquer esforço.
Por sua vez, a soberba mosca, em toda graça de sua Excelentíssima Insolência, voltou ao seu ponto de conquista e ficou a encará-lo, as patas dianteiras sendo esfregadas umas contra às outras como se ela se preparasse para uma refeição.
Ele não permitiria.
Inconsequente, arremeteu com a mão, agredindo descontroladamente a própria barriga, um desespero alucinado inflamando-lhe os sentidos e bloqueando a dor.
E bateu, e bateu, e bateu. Bateu até enfim se esgotar e desabar em lágrimas, o choro saindo àquela maneira sinistra e gorgolejante.
Chorou até desmaiar.
Uma boca que não mais existia.
A lembrança o fez chorar como uma criança que perde o doce, o doce que tanto adorava. Ele perdera a boca, a boca que tanto adorava — aos outros humilhar. Chorou mais forte, um choro feio e gorgojante, empapado de sangue e pedaços esmigalhados de ossos, pele e cartilagem.
Parou de chorar somente uns vinte minutos depois, dizendo a si mesmo que precisava ser forte, que precisa fazer alguma coisa — que precisava de uma boca para gritar. Sabia que não estava longe da estrada e que se pudesse gritar seria ouvido. Mas não podia.
Respirou fundo. A garganta doía, mas ao menos ainda a tinha.
Se acalmando, fez menção de levantar, porém suas pernas o golpearam com uma dor tão excruciante que as coxas se retesaram numa câimbra violenta, jogando-o ao chão. E teria trincado os dentes, se os tivesse por completo.
Que raios foi agora?, pensou, aguardando as dores cessar para poder erguer a cabeça. E ergueu, constatando que
PUTA QUE PARIU!
a picape jazia-lhe sobre as pernas, provavelmente estraçalhadas, e sua camisa Saint Laurent (que lhe custara a bagatela de R$2.200,00) estava em frangalhos, expondo a barriga protuberante retalhada por cruentos cortes.
Dessa vez não desmaiou, mas ficou longo tempo chorando, avaliando que decerto no decorrer dos solavancos da capotagem, seu corpo tenha sido parcialmente expelido pela janela traseira, sendo esmagado. Metade dentro, metade fora. O Excelentíssimo Prefeito não usava o cinto de segurança no momento da colisão.
Excelentíssimo Prefeito.
De súbito, evocou a frase de Branca de Neve, o negro que pronunciava o mais entusiástico Excelentíssimo Prefeito, e ao olhar para o local onde deveria estar o banco do motorista, encontrou uma massa disforme e sangrenta presa ou cinto — os airbags acionados empurrando-a para fora.
Provavelmente a prostituta encomendada de São Paulo não tivera diferente fim, refletiu.
Recostou a cabeça na vegetação, pensando no que faria para se livrar de mais aquela enrascada, afinal já se livrara de muitas outras. A um político influente como ele, sempre há meios de burlar o que quer que seja.
Lembrou do celular e sorriu ante a astúcia de ligar e pedir socorro — e de imediato uma voz escarnecedora lhe sussurrou dos confins mais remotos de sua mente:
Excelentíssimo Prefeito, o celular se espatifou com o acidente; além do mais, ele já estava desligado há algum tempo.
Sugeriu que logo alguém o procuraria na cidade para onde dissera que ia.
Excelentíssimo Prefeito, foi informado que o senhor se dirigiria a Júlio Borges, uma rota oposta à Redenção do Gurgel.
O GPS da Amarok vai indicar a locação. O sistema é quase como a caixa-preta de um avião.
Excelentíssimo Prefeito, ele foi desativado assim que saímos de Curimatá.
PUTA QUE PARIU!
5
Passava das quatro horas da tarde. O sol não penetrava sob a copa das árvores, mas ainda assim o calor era extenuante.
Exaurido, havia cochilado várias vezes no decorrer do dia, incapaz de pensar em algo ou sequer se esforçar para isso. A única coisa que fizera fora descobrir que sentia fome e uma sede devastadora — e que seu braço direito jazia retorcido sob seu corpo, inutilizado.
Suas pernas, seu rosto, seu braço e sabe lá mais o que estavam estropiados.
Não tinha coragem de passar o corpo em revista para saber a extensão dos ferimentos e os ia descobrindo aos poucos, se perguntado dúzias de vezes por que não tinha morrido e pronto.
Talvez não tivesse perdido a quantidade de sangue ou tido ferimentos suficientes.
Mas queria morrer.
Morrer de uma vez, como uma espécie de presente grego que o motorista e a prostituta tinham ganhado — instantaneamente. Mas, não, ele tinha que ficar fazendo hora extra no mundo, só para justificar a expressão popular “de que vaso ruim é difícil quebrar”.
Desejou morrer logo, mais uma vez.
Entretanto, ao invés disso, suspeitou que os ferimentos estivessem infeccionando. Por alguma razão, até o momento só sentia dor quando tentava se mover; porém, no decorrer das últimas horas, uma comichão esquisita, morna e debilitante, vinha devorando seu corpo lenta e implacavelmente.
E o sono causado pela exaustão era inevitável.
6
Um som próximo arrancou-o do sono: vozes e motosserra. Alguém devia ter notado algo errado na estrada e descido para verificar. Enfim estava salvo.
Por mais de meia hora, ouviu vozes ininteligíveis conversando, apenas palavras esparsas e longínquas, intercaladas com o ruído agressivo de uma motosserra trabalhando, barulho de árvores estralando, caindo e sendo arrastadas. E tudo num ritmo alucinado, de quem tem pressa. E deveriam mesmo ter muita pressa, porque já estava escurecendo.
Escurecendo.
Seus sentidos.
Queria permanecer ativo, acompanhando cada centímetro da aproximação das buscas. Contudo, suas forças e consciência não colaboravam, insistindo, se extinguindo… seus olhos…
Escurecendo.
7
Despertou no meio da noite, a vegetação ao redor imersa numa quietude aterradora — e recordou de imediato o som da motosserra.
Haviam cessado as buscas? Por que não me resgataram?, perguntava-se, cabeça e corpo pulsando numa dor compartilhada, vertiginosa, atroz, como se dezenas de formigas tocandira o picassem ao mesmo tempo.
A fome. A sede. Os ferimentos. As infecções.
Coisas rastejando.
Sons de galhos leves se quebrando.
Pássaros noturnos adejando asas.
A angústia enervante de estar perdido na bocarra da noite, sendo lambido pela língua negra e pegajosa do sereno, exposto a animais notívagos e sabe Deus o que mais.
Tudo parecia confabular contra ele, projetando possibilidades absurdas e inomináveis em sua mente, até enfim levá-lo à perda de sentidos.
8
Acordou nas primeiras horas da manhã.
Sentia-se consideravelmente pior, mais debilitado e aflito, e ainda assim estava decidido que não tornaria a passar mais uma noite ali. O sujeito pode ser o mais HOMEM possível, mas uma experiência igual àquela faria muita coisa mudar dentro dele — principalmente no que diz respeito à sanidade.
No dia anterior, ficara tão entusiasmado com a aproximação das vozes e o trabalho da motosserra que não aventou a possibilidade de fazer barulhos para chamar a atenção e orientar nas buscas.
Buscas, Excelentíssimo Prefeito? — e a essa altura a “voz” de Branca de Neve não era mais prazerosa e sim debochada.
Sim, buscas!
Já amanheceu. Por que será que não foram retomadas, sendo que nem deveriam ter cessado, Excelentíssimo Prefeito?
Não sabia; na verdade, não mais sabia de coisa alguma. Há situações que podem enlouquecer um homem e aquela era uma delas.
Ouvindo vozes.
Só poderia estar ficando louco, certamente; todavia, uma questão importante fora levantada: e se não fossem buscas e, se de fato fossem, por que não foram retomadas?
Meneou a cabeça, irritadiço. Precisava acreditar que estavam à sua procura, precisava crer em algo. Não queria passar mais uma noite ali. Não podia. Não aguentaria.
Com muita dificuldade devido à febre e as estigmatizante dores que pululavam-lhe pelo corpo, sondou as cercanias.
Era incapaz de compreender a dinâmica do acidente, mas notou que a picape trouxera boa diversidade de ramos, cipós e árvores estilhaçadas para baixo. Nada que pudesse ser aproveitado.
Concentrou-se do lado esquerdo. Havia um pedaço de galho seco ali. Talvez se o pegasse, poderia alcançar a lataria da Amarok, onde bateria para chamar a atenção quando as buscas recomeçassem.
Tencionou estender o braço, quando notou um gemido langoroso na copa das árvores.
Parou.
Ficou na escuta. Um novo gemido, mais forte agora. Seu coração começou a bater num descompasso, angustiado. Girou os olhos, procurando a fonte do ruído, quase se borrando de medo ao deparar com a carranca empalidecida, de dentes afilados expostos e agressivos a fitá-lo, lá do alto. E ela abriu e fechou a boca, produzindo aquele fragor sinistro e sombrio.
9
Uma fustigada de vento sacudiu novamente as árvores, forçando o prefeito apurar a visão, enfim compreendendo que a carranca nada mais era que um tronco forçado para baixo e estourado, os veios irregulares da madeira sobressaindo-se de modo que parecessem dentes — dentes que gemiam.
Traumas do acidente — e nada mais. Liberou o ar tensionado dos pulmões, fechando os olhos para restabelecer os nervos.
Respirou fundo, após breve descanso, restituindo à mente seu intento. Precisava facilitar as buscas.
Com a máxima cautela, esticou o braço esquerdo e com relativa tranqüilidade agarrou o galho seco. Um peso razoável. Precisava testá-lo.
Ergueu-o em direção à lataria marrom-safari, porém a mão debilitada simplesmente não suportou o esforço e o deixou cair — uma de suas pontas descendo de encontro a uma ferida acima de sua virilha.
Sua garganta vomitou um urro grotesco, as mandíbulas venenosas de uma dor aniquilante esmurrando-lhe o cérebro, mas infelizmente não foi isso que fez seus olhos se abrirem horrorizados, ficando quase do tamanho de bolas de ping-pong. Nada disso. O que ele viu era ainda mais nocivo de que qualquer coisa absurda que podia imaginar.
10
Na verdade, ele primeiro sentiu.
Sentiu o fedor de carne apodrecida que agora o vento lhe soprava no nariz — e então aquela mosca enorme saiu do ferimento em sua virilha e escalou a protuberância de sua barriga, ficando a dar saltinhos curtos e circulares ao chegar ao alto de um corte aberto, purulento.
Insolente, a asquerosa praga de corpo cinza e listras pretas parou e o encarou, movendo sua cabeça de grandes olhos vermelhos para lá e para cá numa imposição interrogativa. Ela o examinava como se quisesse saber o porquê dele a ter perturbado.
Sarcophaga carnaria. Mosca-do-sertão — ou mosca da carne.
Conhecia-a muito bem por ser uma praga comum à região.
Uma mosca que se alimenta de carne em decomposição, Excelentíssimo Prefeito. Você está apodrecendo vivo.
Enojado, moveu a mão para afugentá-la, o movimento dolorido e lerdo sendo evitado com um vôo desleixado do inseto. Tentou mais quatro vezes, sem sucesso. Desistiu, não aguentando mais qualquer esforço.
Por sua vez, a soberba mosca, em toda graça de sua Excelentíssima Insolência, voltou ao seu ponto de conquista e ficou a encará-lo, as patas dianteiras sendo esfregadas umas contra às outras como se ela se preparasse para uma refeição.
Ele não permitiria.
Inconsequente, arremeteu com a mão, agredindo descontroladamente a própria barriga, um desespero alucinado inflamando-lhe os sentidos e bloqueando a dor.
E bateu, e bateu, e bateu. Bateu até enfim se esgotar e desabar em lágrimas, o choro saindo àquela maneira sinistra e gorgolejante.
Chorou até desmaiar.
11
De pé, o rapaz pousou a motosserra ao seu lado, ficando a avaliar quanto mais de trabalho teria para desgalhar e dividir a robusta árvore que acabara de derrubar. A madeira era nobre, protegida por lei na região, e o serviço deveria que ser executado rápido devido à fiscalização.
— Ficou sabendo? — indagou um outro jovem, se aproximando e começando a talhar galhos menores. — Parece que deram fim no prefeito de Curimatá. Faz quase três dias que sumiu, ouvi no rádio.
— Para mim, ele não fede nem cheira. Nunca fez nada na cidade, além de roubar. Agora agiliza, já está escurecendo.
Mal sabiam que o prefeito cheirava e fedia, ali bem próximo deles.
— Ficou sabendo? — indagou um outro jovem, se aproximando e começando a talhar galhos menores. — Parece que deram fim no prefeito de Curimatá. Faz quase três dias que sumiu, ouvi no rádio.
— Para mim, ele não fede nem cheira. Nunca fez nada na cidade, além de roubar. Agora agiliza, já está escurecendo.
Mal sabiam que o prefeito cheirava e fedia, ali bem próximo deles.
12
Sentia-se no limiar da loucura, o corpo vibrando numa comichão febril, ardente, e que se intensificava para algo fora de controle.
Não fazia ideia do quanto permanecera desacordado; entretanto, despertou com um som estranho nos ouvidos, um zunido baixo e irritante de algo sendo…
Ergueu-se num susto, olhando em direção à barriga, constatando que Excelentíssima Insolência ainda continuava ali, a afrontá-lo. E ela parecia mais à vontade agora, pisoteando a mistura de sangue e pus que minava dos ferimentos revolvidos, a podridão acentuada da carne parecendo-lhe muito apetitosa.
Um esgar de nojo e repulsa comprimiu-lhe o estômago, produzindo espasmos que sacudiram sua pança como uma onda de banha estropiada, e ele apenas não vomitou por que não havia coisa alguma para vomitar. Estava seco por dentro, faminto.
Faminto.
E aquele som, aquele som que o despertara.
Um som que parecia vir de algum lugar e de todos os lugares ao mesmo tempo.
Faminto.
E o som se intensificava. Ouvira o ruído da motosserra e o estrondo de árvore caindo? Era real? Não sabia, o stress corroia-lhe o juízo.
Desorientado e faminto.
E Excelentíssima Insolência parecia tripudiar de seu desespero, pois virou-se de costas e, sobre a podridão do fétido ferimento, passou a depositar sua prole — um enorme número de seres pequenos, macilentos e…
Famintos.
Não podia acreditar, não podia permitir. Sem forças para mover a mão, sacudiu a cabeça numa tentativa de se libertar daquela visão asquerosa; contudo, isso apenas piorou o caos repugnante da cena, afinal, devido à movimentação, gordas e desenvolvidas larvas emergiram de seu ferimento na virilha e de outros vários pontos, passando a escalar e se alimentar das bordas de suas feridas bem diante de seus olhos.
Fazia tempo que Excelentíssima Insolência estava ali, aproveitando-se de sua carne, ele apenas não sabia disso.
Ele simplesmente estava sendo comido vivo por uma legião de vermes famintos que pulsavam febris sob sua pele, mastigando e engordando às custas de seu infortúnio — assim como ele fizera com o povo, se alimentando de desgraças e enriquecendo às barbas da impunidade.
E o som… que parecia vir de algum lugar… e de todos os lugares.
Aquele som era um zumbido de mastigação muito próximo, tão próximo que julgou vir de seus ouvidos, de dentro deles…
E de fato eram… e os famintos carniceiros agora começavam a sair, caminhando por seu rosto e indo de encontro à sua boca, entrando em suas narinas, vasculhando e lambendo as lágrimas de seus olhos.
Nada mais que um presente grego da Excelentíssima Insolência.
Não fazia ideia do quanto permanecera desacordado; entretanto, despertou com um som estranho nos ouvidos, um zunido baixo e irritante de algo sendo…
Ergueu-se num susto, olhando em direção à barriga, constatando que Excelentíssima Insolência ainda continuava ali, a afrontá-lo. E ela parecia mais à vontade agora, pisoteando a mistura de sangue e pus que minava dos ferimentos revolvidos, a podridão acentuada da carne parecendo-lhe muito apetitosa.
Um esgar de nojo e repulsa comprimiu-lhe o estômago, produzindo espasmos que sacudiram sua pança como uma onda de banha estropiada, e ele apenas não vomitou por que não havia coisa alguma para vomitar. Estava seco por dentro, faminto.
Faminto.
E aquele som, aquele som que o despertara.
Um som que parecia vir de algum lugar e de todos os lugares ao mesmo tempo.
Faminto.
E o som se intensificava. Ouvira o ruído da motosserra e o estrondo de árvore caindo? Era real? Não sabia, o stress corroia-lhe o juízo.
Desorientado e faminto.
E Excelentíssima Insolência parecia tripudiar de seu desespero, pois virou-se de costas e, sobre a podridão do fétido ferimento, passou a depositar sua prole — um enorme número de seres pequenos, macilentos e…
Famintos.
Não podia acreditar, não podia permitir. Sem forças para mover a mão, sacudiu a cabeça numa tentativa de se libertar daquela visão asquerosa; contudo, isso apenas piorou o caos repugnante da cena, afinal, devido à movimentação, gordas e desenvolvidas larvas emergiram de seu ferimento na virilha e de outros vários pontos, passando a escalar e se alimentar das bordas de suas feridas bem diante de seus olhos.
Fazia tempo que Excelentíssima Insolência estava ali, aproveitando-se de sua carne, ele apenas não sabia disso.
Ele simplesmente estava sendo comido vivo por uma legião de vermes famintos que pulsavam febris sob sua pele, mastigando e engordando às custas de seu infortúnio — assim como ele fizera com o povo, se alimentando de desgraças e enriquecendo às barbas da impunidade.
E o som… que parecia vir de algum lugar… e de todos os lugares.
Aquele som era um zumbido de mastigação muito próximo, tão próximo que julgou vir de seus ouvidos, de dentro deles…
E de fato eram… e os famintos carniceiros agora começavam a sair, caminhando por seu rosto e indo de encontro à sua boca, entrando em suas narinas, vasculhando e lambendo as lágrimas de seus olhos.
Nada mais que um presente grego da Excelentíssima Insolência.