Corra!

Com dificuldade, ele ergueu sua cabeça, olhou em volta confuso, e lá estava ela. Não sabia como a conhecia só sabia que tinha que correr dali o mais rápido possível. Partiu em disparada, sem pensar em mais nada. A sua vida estava em jogo e dependia inexoravelmente de sua capacidade de reação. Não ousava olhar para trás. A entidade que o perseguia parecia implacável. A breve pausa de um único suspiro poderia ser fatal.

O mundo ao seu redor se tornou um borrão cinza, e a atmosfera, densa, parecia pesar uma tonelada. Seu coração pulsava violentamente esmurrando seu peito enfraquecido por dentro, clamando em desespero por um segundo de descanso. O homem atravessava as vielas estreitas e penetrava corredores sufocantes e mal iluminados. Vez ou outra um vulto branco e distorcido surgia diante dele, observando-o com curiosidade e ao mesmo tempo com receio, a julgar pela distância. Isso o incomodou, mas não tinha tempo a perder. Ao Virar a esquina, enquanto corria com todas as suas forças, uma sensação muito estranha percorreu sua espinha. Iluminada por uma lâmpada de brilho intermitente, de cujas sombras bruxuleavam figuras assustadoras, havia uma parede em sua frente manchada de sangue. Não era uma mancha qualquer - a julgar pela quantidade de vermelho que tingia o local, algo muito brutal tinha acontecido ali. Era bizarro. Apesar do sangue já estar seco, um cheiro fresco e intenso atravessou seus sentidos e, por alguma razão, aquilo lhe agradou.

Após uns minutos sem ouvir os passos do seu algoz, resolveu parar. Não tinha mais condições de continuar. Se a criatura que o perseguia estivesse por perto, decerto esse teria sido o seu fim. Como se certificasse que estava só, ele olhou com mais calma para o lugar no qual se encontrava. Estava agora bem longe da área residencial, o que não tinha lógica. A distância percorrida por ele não parecia ter sido tão longa assim. À sua frente, havia uma Igreja antiga. Ela era pequena, branco-amarelada e possuía um sino cor de bronze em seu topo. Aproximou-se com cuidado. O lugar, excetuando-se a própria capela, era deserto e ficava numa encruzilhada. Tudo o mais era mato alto, cascalhos e restos de animais - um lugar esquecido por Deus. Postou-se diante da porta dupla de madeira e bateu. Nada. Insistiu mais uma vez, dessa vez com mais intensidade, no entanto, para sua surpresa, uma voz muito familiar respondeu atrás dele “O que está procurando? Você não se cansa disso?”. Seu coração congelou, a respiração parou de súbito. Não teve tempo de pensar em mais nada. Com um forte pontapé arrombou a entrada da capela e disparou a toda a velocidade. Inacreditavelmente, o monstro o havia encontrado! Correu desesperadamente, totalmente alucinado. O homem avançou até próximo do altar, adentrou a pequena porta à esquerda, levantou um alçapão oculto nos fundos da Igreja, passou por uma rede de corredores subterrâneos e seguiu obstinado até encontrar a saída.

A única lembrança que ele teve quando deu por si, foi daquela voz aguda, a qual ecoava dentro de sua cabeça. Ele não sabia quanto tempo havia se passado, mas a noite não parecia dar indícios de que iria acabar. Aparentemente, havia despistado aquele terrível demônio, no entanto, estava exausto. Aquele pesadelo tinha que acabar. Há algumas centenas de metros de distância, um forte brilho despontou no horizonte. Não podia enxergar mais nada além daquele ponto, pois a lua havia se escondido - quem sabe para não testemunhar o espetáculo que estava prestes a acontecer. Ela era o seu único ponto de referência, portanto qualquer chance de sobrevivência que pudesse ter dependia de ele a alcançar. Preparou-se para colocar toda a sua energia restante na corrida, até que um mal-estar se abateu sobre ele. “Não, tudo menos isso!” “Volte pro lugar de onde veio!” “Pare agora! Deixe que o demônio devore suas entranhas e se satisfaça, mas não prossiga até lá!”. Que escolha ele tinha? Esperar pela morte não parecia ser uma boa opção. Enquanto deliberava consigo mesmo, percebeu que havia pisado em algo. Parou por um momento e se abaixou para ver o que era aquilo. Apesar de não enxergar, pôde sentir através do tato as formas do objeto e quando percebeu o que era, gritou. “Não! Como isso é possível! Eu tenho certeza que me livrei disso antes, isso não pode estar acontecendo!”. O terror o consumiu, seguia agora em frenesi, atordoado, em direção à misteriosa luz que o guiava ao seu derradeiro fim.

A poucos passos do seu objetivo, sentiu que não estava só. Virou-se aterrorizado para trás, e aquela visão o trouxe à tona a realidade. O urso de pelúcia que estava em suas mãos, o objeto encontrado na estrada, caíra sob seus pés em resposta ao choque. À sua frente, estava o maior de seus pesadelos, a figura que não tinha coragem de encarar diretamente. Era ELA. “Meu Deus! Era apenas uma criança!”. A figura diminuta, o observava atentamente, em silêncio. Após um período de tempo impossível de determinar, finalmente falou: “O que você está procurando? Padre? Você não se cansa disso?”. A sua visão ficou turva, mal conseguia manter-se de pé. Ele finalmente se lembrou do que aconteceu. Tudo estava claro agora. Voltou-se em direção a luz, e, através dela, enxergou nitidamente o mundo do qual havia decidido fugir. A criança, que entendia perfeitamente o que estava acontecendo, voltou a se dirigir a ele: “Você pode dar um fim a isso se quiser.” O homem não se moveu. Recordou-se de todos aqueles vultos brancos, do sangue na viela, que derramou quando fez sua primeira vítima, e da capela onde cometera a grande maioria dos seus crimes. Agora que a verdade, enfim, o alcançou, ele sabia que havia apenas uma coisa a ser feita. “Não faça isso! É inútil. Deus não vai te perdoar” - gritou a menina. Ele deu um passo à frente, resoluto, e como se ela insinuasse correr em sua direção, encarou-a, enquanto desvanecia dentro do portal luminoso: “Eu sinto muito, filha, tenho que pagar pelos meus pecados” - e desapareceu.

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As ruas do bairro estavam calmas em demasia. As pessoas caminhavam sem direção, acompanhando o ritmo soturno de uma vida vazia. Tudo parecia estar dentro do seu padrão habitual, exceto por um único indivíduo parado no meio fio da avenida. O sujeito parecia desnorteado, como se tivesse saído de outra dimensão. Com dificuldade, ele ergueu sua cabeça, olhou em volta confuso, e lá estava ela. Não sabia como a conhecia só sabia que tinha que correr dali o mais rápido possível. Partiu em disparada, sem pensar em mais nada. A sua vida estava em jogo e dependia inexoravelmente de sua capacidade de reação. Não ousava olhar para trás. A entidade que o perseguia parecia implacável. A breve pausa de um único suspiro poderia ser fatal.

Arthurx
Enviado por Arthurx em 24/04/2018
Reeditado em 05/02/2023
Código do texto: T6318064
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