Aquele Maldito Quarto
 
          Os garotos estavam extasiados, acomodados no tapete surrado da sala e os olhos vidrados na televisão, enquanto jogavam FIFA 2002 no Playstation. Os (arquiinimigos) primos Reinaldo e Alves faziam contorcionismo com as mãos e movimentos de corpo para dar ênfase aos dribles de seus jogadores, e outros dois garotos se mantinham quietos atrás deles, observando aquele duelo de vida ou morte.
          — Manda outro mais forte, esse daqui é muito fraquinho — sacaneou Reinaldo, que levava vantagem de dois gols na partida. — Olha lá, ele nem consegue pegar na bola — emendou, após tomar a bola do adversário.
          — Você fica tirando barato porque esse controle está ruim e o botão de chute forte não está pegando direito — reclamou Alves. — Garanto que se não fosse isso, você não teria feito nenhum gol.
          — Desculpa de aleijado é muleta. Você está perdendo porque é ruim mesmo! — pirraçou Arnaldo.
          E assim a amistosa discussão entre os primos começou. Um dizia que o outro não tinha habilidade suficiente para ganhar e ficava colocando a culpa no joystick e o segundo argumentava que se o tal joystick não estivesse mesmo com defeito ele já estaria ganhando de sacolada. Enquanto isso, Roberto (irmão de Reinaldo) e Pedro (irmão de Alves), continuavam quietos a seus lugares, se divertindo com aquela rotineira rincha — afinal, aqueles dois briguentos eram bons em games de futebol e quando se encontravam era sempre a mesma coisa: um intimidando e outro com zombarias e dribles até que um deles desistisse para enfim o vencedor ser proclamado o rei do FIFA 2002.
          — Gooool! — uivou Alves subitamente, ao fazer uma jogada espetacular e fulminar o gol adversário.
          — Não valeu. Fiquei apertando a droga do botão como um louco e esse goleiro imprestável nem saiu do lugar!
          — Está na rede é gol. Não interessa…
Alves parou no meio da frase, pois todas as luzes da casa se apagaram, ficando tudo às escuras.
          — Caramba, a luz tinha que acabar logo agora! — reclamou Pedro, se levantando para ir à cozinha procurar uma vela.
          — Está vendo: até mesmo a Eletropaulo achou que foi gol roubado e decidiu cortar a luz — zombou Reinaldo.
          — Cala a boca… deixa isso para lá e vamos ajudar o Pedro lá na cozinha. Vai ser uma briga encontrar uma vela nessa escuridão.
Os garotos concordaram e foram às cegas numa excursão em busca da Vela Prometida.

1
—… Eduardo, na sexta-feira nossas mulheres combinaram ir ao chá de bebê de uma amiga, e fica para esses lados daí, e pelo jeito vamos sobrar nessa — dizia Rômulo ao telefone, de São Paulo.
— Que nada. Você acha que é só elas que vão se divertir? Nem pensar! — retrucou Eduardo, jovial. — Pode trazer todo mundo para cá porque justamente na sexta tem um bingo aqui na escola dos meninos, e além de nos divertir com algumas cervejas, também vamos rever aqueles “velhos amigos”. Lembra da turma do futebol, o “P.S.F.C.”, Péla Saco Futebol Clube? Então, toda aquela cambada vai estar lá! — assegurou, entusiasmado.
Rômulo lançou um olhar receoso à sua pança saltando por cima dos shorts, — relembrando das extraordinárias arrancadas de quando era zagueiro, quinze anos antes, do gingado matreiro do seu corpo leve, dos seus dribles sensacionais — sentindo-se agora um tanto intimidado por ter se transformado num pai meio gorducho, que não agüentava correr dois minutos sem colocar a língua para fora e anunciar não agüento mais!
— Gostei da idéia, embora não esteja muito satisfeito em se tornar o bode-expiatório daquela turma de doidos. Eu estou um horror de gordo.
— Pare de queimar os poucos neurônios que te restam, afinal faz um bocado de tempo e garanto que aquela turma não está muito diferente de nós — retrucou Eduardo, rindo.
Conversaram por cerca de uns dez minutos daquela noite de terça-feira e ao fim desligaram com a promessa de que Rômulo levaria a esposa Ângela e os filhos Roberto e Reinaldo para o sítio do irmão, em Araraquara, na sexta à tarde, onde por volta das oito deixariam suas esposas no tal chá de bebê e depois iriam se divertir no bingo.

2
— Nossa, que belo divertimento: sem luz e sozinhos em casa procurando uma vela invisível — reclamou Roberto, na indignação pueril de seus oito anos. — Eu deveria ter ido com o papai quando ele me chamou…
— Você deve estar maluco. Ir com ele e… no começo… ficar servindo de alvo para os comentários: Nossa, como ele está grande, quando eu vi ele ainda era desse tamanhinho. Caramba, ele é a sua cara Rômulo… E depois, quando se enjoarem e começar a recontar Os Velhos Tempos, você ficar isolado sem fazer nada, só ao lado do papai e escutando aquele monte de lorotas que os adultos contam. Nem a pau eu iria para o bingo com ele! — afirmou Reinaldo, com a esperteza de seus dez anos de praia, como gostava de dizer, enquanto remexia nas gavetas à procura de uma bendita vela. — Pedro, já revirei esse armário de cabo a rabo e não encontrei uma mísera vela para iluminar a história.
— É, aqui também não encontrei nada — respondeu Pedro, agachado frente ao gabinete da pia.
— A-ha, achei! — berrou Alves, tirando algo de dentro do balcão, do lado oposto ao armário. Ao ouvir a notícia, os garotos correram apressados naquela direção, se trombando entre si no escuro, esbarrando nos móveis.
— O que, a vela ou os fósforos? — perguntou Reinaldo, gemendo, esfregando a canela onde se formava um imenso galo, por conseqüência de uma topada numa das portas abertas.
— Nem um dos dois. Encontrei a chave…
— Filho da mãe, fraturei minha canela pra vir correndo até aqui e você me diz que achou uma droga de chave? O que vai fazer com ela? Dar uma de Thomas Edson? — indignou-se o primo.
— Relaxa, você não entende. Essa chave aqui é daquele quartinho velho que fica lá nos fundos. Um dia tentei abrir a porta com ela para bisbilhotar lá dentro e ver se encontrava alguma coisa para fuçar, mas minha mãe viu e me deu uma baita bronca. Depois, escondeu a chave e me avisou para nunca mexer lá…
— Esse garoto é idiota, não percam tempo com ele — disse Pedro, dando as costas e voltando a procurar nas gavetas. — Meu pai falou que tem um fantasma lá dentro e ele acreditou.
— Acreditei nada: eu apenas queria comprovar. Afinal, quem foi que saiu correndo do banheiro no dia da festa da Camila e veio falar para mim que viu a cadeira do quartinho se mexer? — rebateu Alves com ar heróico.
Os dois irmãos iniciaram um bate-boca, mas logo Reinaldo interveio dizendo que era melhor parar com aquilo e continuar procurando, afinal, ao que tudo indicava, havia ocorrido algum problema na rede elétrica e só seria resolvido muito mais tarde, quando seus pais voltassem.
Após vinte minutos de procura, encontraram apenas uma lanterna, mas nada de velas. Então decidiram ir para o quarto e matar o tempo contando piadas, narrando besteiras ou qualquer outra coisa que excitasse o sono.

3
— Pedro, que horas são? — perguntou Roberto.
— Dez e meia — respondeu, enfadonho.
A graça das piadas de papagaio, de português, de Juquinha e de judeu havia acabado, assim como todo o estoque de assuntos bobos que um grupo de crianças entre oito e treze anos dispunham. Já tinham falado de tudo, desde o Você lembra daquele… até a nova vizinha que vivia se esquecendo de fechar a cortina da janela quando ia se trocar. Havia decorrido uma hora e meia. Não tinham mais o que falar, porém a energia elétrica não dava sinal de vida, os pais não retornavam e o pior de tudo: estavam entusiasmados demais para sentir sono. Tem coisa pior que tentar dormir à força?
Foi então que Reinaldo sugeriu:
— Por que a gente não conta estória de terror?
Os outros garotos concordaram na hora — afinal, apesar da idade, todos sabiam que mesmo se algum deles contasse uma história de terror assombrosa, não passaria de uma estória — ainda mais se essa estória fizesse os demais se borrarem de medo. Assim, ao longo de quase uma hora, os garotos se distraíram com versões exageradas de lobisomem, mula-sem-cabeça, bruxas de porão, defuntos que caminhavam no cemitério durante a noite, chupa-cabras, alienígenas…
Todos contaram suas mirabolantes estórias, menos Pedro, que permaneceu quieto somente ouvindo.
— E você, Pedro, o gato comeu sua língua? Não vai contar nada? — inquiriu Roberto.
— Não tenho estória para contar. A única de terror que conheço é a “Sessão Tortura”, que acontece comigo todos os dias, depois que chego da escola… que é quando a minha mãe me obriga a tomar banho…
— Pessoal, lhes apresento o porquinho da família — anunciou Alves sorrindo. — Esse foge de água que nem o gato foge do espeto.
— É mentira, mas é que minha mãe quer que eu tome banho todos os dias, e às vezes eu nem estou sujo —respondeu emburrado. Ficou quieto por alguns minutos, cabisbaixo, e depois ralhou: — E agora, vocês estão ferrados, porque vou contar a história do quartinho, do jeito que meu pai me contou e também o que eu vi.
— Então toma — consentiu Reinaldo, lhe entregando a lanterna. — Sinta-se à vontade.
Pedro a agarrou e foi se sentar no criado-mudo que havia sido posto atrás da porta, projetando o facho de luz amarelo, de baixo para cima, parcialmente sobre seu rosto.
— Pobres almas, se preparem, porque a partir de agora vocês vão ouvir a história mais horripilante da face da Terra — disse ele, ensaiando uma voz comicamente grossa. — Que toquem a sineta da Cidade Dos Pés Juntos e que os fantasmas de plantão se ponham em alerta, porque eu vou começar. Ha-ha-ha-ha!
Roberto, Reinaldo e Alves protestaram pela enrolação, porém Pedro logo se aprontou e iniciou sua história:
4
Tudo começou quando perguntei ao meu pai por que ele não tirava aquela velha cadeira de balanço da frente do quartinho, e ele me respondeu com ironia que era por causa da “Velha Ranzinza” que costumava sentar-se ali, há muitos anos atrás. Na hora que me disse isso, achei que estava me tapeando, tirando onda com minha cara, e no fim acabei dando risada também… Mas, para falar a verdade, todas as vezes que eu ia ao banheiro e olhava para aquela cadeira ficava imaginando por que ele havia dito aquilo.
Aquela resposta me encucou e sempre que tinha oportunidade recorria ao meu pai para atazaná-lo com mais e mais perguntas. Até que num belo dia, ele se irritou e falou que quando tivesse tempo contaria toda a história, só assim eu pararia de lhe torrar sua paciência. O tal tempo demorou a chegar, mas enfim, numa manhã em que eu estava de cama por causa de um forte resfriado, ele resolveu sentar ao meu lado e, para me animar, contar o que me tinha prometido.
E ele começou a falar:
“Quem construiu aquele quarto foi a sua avó, uma pessoa muito amável, mas que com o avanço da idade — e a morte de nosso pai — se tornou extremamente ranzinza e resmungona. Tudo que fazíamos a desagradava, tudo que falávamos a irritava, ao seu ver nada estava certo, nada estava do seu jeito, ninguém fazia as coisas direito… Foi então, por conta própria e aos setenta e dois anos, que ela se levantou numa certa manhã e nos pediu para comprar a quantidade de materiais de construção suficiente para construir um quartinho com espaço adequado para acomodar todos os seus pertences. A princípio, relutamos, porém sua insistência era tão irritante que acabamos nos resignando a atender o pedido.
O material foi comprado — e qual não foi nossa surpresa ao nos levantar no dia seguinte e deparar com sua avó, empunhando a enxada e cavando os alicerces que segundo ela ergueriam as paredes do Quartinho.
“Naquela manhã, nosso quintal se transformou num verdadeiro campo de guerra: tentávamos de todas as maneiras persuadi-la a desistir, dizendo que nós mesmos poderíamos construir, que não era preciso ela se preocupar nem fazer esforço. Mas não teve jeito: ela se armou com a enxada e gritou para a gente sequer pensar em impedi-la, senão seria capaz de degolar um de nós se ao menos nos aproximássemos de seu quartinho. Diante daquela obstinada perseverança, infelizmente não podemos fazer mais nada, além de ficar nos arredores assistindo aquele ato suicida para uma senhora daquela idade, prontos para ajudá-la ao menor sinal de sua fraqueza.
“Acredito que ela tenha passado por volta de um mês inteiro em sua empreitada, cumprindo uma jornada de dez horas de trabalho, se levantando pontualmente às seis e dormindo às oito. Ao terminar, levou sozinha seus cacarecos para o quartinho e comprou uma cadeira de balanço novinha em folha, permanecendo o restante dos seus dias naquele cubículo, sentando frente à porta para tomar sol pela manhã, gangorreando, mascando seu fumo de corda e cuspindo numa caneca de ferro. As pessoas mais velhas tinham esse hábito, argh!
“Ah, e só para lembrar: sua avó detestava quando íamos visitá-la ou menos lhe pedir a benção. Ela dizia que íamos lá apenas para bisbilhotar, ficar dando palpite no seu modo de vida e mais um monte de coisas que as pessoas velhas costumam argumentar quando se sentem perturbadas — claro, íamos lá bisbilhotar mesmo, mas fazíamos isso para confirmar se não estava lhe faltando nada ou se sua saúde não estava piorando, já que ela freqüentemente dormia com a luz apagada, mas várias vezes à noite a víamos acender.
O tempo foi passando, e teve certo momento que ela não queria nem que chegássemos perto daquele quarto e praguejava que nada deveria ser retirado dele quando ela morresse — nada! Tudo deve ficar como está!, ela berrava.
“Agora você conhece a história do quartinho e o porquê de não tirarmos aquela cadeira de lá, não é? Então, vamos deixar tudo como está e esquecer esse assunto, certo?
“Certo”.
— E o que tem de terror nessa história boba? — irritou-se Roberto. — Nada de monstros, fantasmas de gente morta, extraterrestres, vampiros…
— Calma, a parte do terror vem agora e garanto que você vai ser o primeiro a mijar na cama de tanto medo — interferiu Alves pelo irmão.
— É, isso mesmo, você vai se borrar todinho com o que vou contar agora — emendou Pedro. — Quando meu pai me falou sobre o quartinho não dei a menor importância — mais uma vez encarei como uma peça que ele estava tentando me pregar para que eu ficasse longe daquele lugar, afinal (pensei com meus botões, quando ele me deixou sozinho na cama) aquela historinha poderia muito bem ter sido inventada para me animar e ao mesmo me fazer medo, já que eu estava doente e que naquele quarto poderia ter um monte de coisas que os adultos acham melhor a gente não mexer… Quem sabe lá não tivesse uma porção de ferramentas que eu pudesse pegar e desmontar o sofá da mamãe para fazer qualquer coisa para brincar? — será que meu pai não pensava assim? Afinal ele vive me dizendo para não mexer nas coisas dele, porque todas as vezes que faço isso eu arrumo confusão. Não sei, só sei que por um bom tempo não perguntei mais sobre o quartinho e por incrível que parecesse quase esqueci ele.
Vim lembrar dele somente no aniversário da Camila… vocês sabem, aquela minha irmã chatinha que vive nos atormentando… quando tive que ir ao banheiro e ele estava ocupado. Apertado do jeito que estava, não podia segurar muito tempo e resolvi ir lá fora, onde o único lugar que era meio escondido ficava do lado do quartinho. Fui me aproximando devagarzinho — acho que pensando na idéia de que a vovó não gostava de visitas — e aos poucos alcancei o esconderijo, onde comecei um relaxante xixizinho.
“… E eu estava quase terminando, quando de repente ouvi um barulho estranho vindo da frente do quarto — um barulho de móvel velho se movendo. Meio assustado, espichei o pescoço e olhei na direção de onde vinha o som. No início não percebi nada, mas depois notei que o ruído saía da parte de dentro do quarto. Fiquei de pernas bambas, e ao mesmo tempo com elas duras, sem poder me mover. E foi nessa hora que vi a cadeira de balanço gangorreando, para trás para frente, como se tivesse alguém sentado nela. Vocês podem achar que é mentira, mas quase pirei e a única coisa que lembro de ter feito foi agarrar minhas pernas e forçá-las a correr o mais que pudessem. Nem morto eu ficaria ali.”
— Até parece. Aposto que se isso acontecesse mesmo, você teria um piripaque e ficaria branco na hora — zombou Reinaldo, dando uma risada espalhafatosa.
— Não é mentira não! O Alves viu quando eu fui atrás dele e contei tudo — entrecortou Pedro, furioso.
— Bem, que o Pedro tremia igual bambu verde e que estava branco como casca de ovo eu confirmo, por que eu mesmo vi. Agora quanto a ser verdade o que ele contou já não garanto nada — se imunizou o irmão.
— Se não acreditou em mim, por que a mamãe tomou a chave de você por ter ido lá bisbilhotar?
— Ah, porque eu queria confirmar e aproveitar para fuçar lá dentro — respondeu Alves, dando de ombros.
Uma calorosa discussão teve início: um falava que era mentira, o outro tentava se safar da história, e um outro jurava de pés juntos que tinha sido tudo verdade.
— Já sei, para parar com essa briga, por que não a gente não vai lá? — sugeriu Alves.
— Agora? — resmungou Reinaldo, com certa indignação.
— Sim, agora. Não é você que está duvidando da palavra do Pedro? Então vamos tirar a prova. Sei onde está a chave e o melhor momento para ir até lá é agora.
— Bem, bem… está escuro e como tem tanta certeza de que a chave que você achou na gaveta é a chave do quartinho? Estava tudo escuro — gaguejou Reinaldo, não mais sustentando seu ar desafiador.
— Aqui em casa só tem uma chave como aquela e te garanto que até mesmo sem ver eu a reconheceria. Mas agora se você está inventando desculpas para não ir, é problema seu, maricas.
— Maricas? Só por isso vamos lá agora e ainda digo mais: EU vou na frente!.
O assunto foi resolvido: os garotos pegaram a chave e foram até o quartinho.

5

— Mas afinal, como vamos comprovar? Vamos esperar que o fantasma da velha rabugenta chegue para nós e faça BUUUU!, igual no Gasparzinho? — perguntou Reinaldo, parando a uns vinte passos adiante do quartinho, voltando-se para os garotos.
— Não seja idiota, idiota — retrucou Alves, hilário. — Podemos ir lá e verificar o barulho que o Pedro…
Subitamente Alves parou de falar, arregalando os olhos numa expressão confusa, e depois voltou o rosto para trás, para sua casa, como se quisesse confirmar algo. A casa continuava às escuras.
— Vocês viram aquilo? — perguntou ele a Pedro e a Roberto, e os dois garotos boquiabertos responderam que sim com a cabeça.
— O que vocês viram? Com a cara que estão, eu juraria que é algo do outro mundo — falou Reinaldo, zombeteiro.
— Você estava de costas e não viu… A luz do quartinho acendeu — sussurrou Roberto, pasmado.
— Que nada. Vocês estão de gozação comigo…só querem me assustar — replicou Reinaldo, virando-se para frente. Porém, quando viu que o que os garotos diziam a verdade, ficou mudo, a lanterna tremendo levemente em sua mão. — Ei, tem alguma coisa errada ali: não temos energia, como a luz pode estar acesa?
— Novidade, Sir Sherlock Holmes. O pior não é isso, mas sim quem a acendeu — escarneceu Alves.
Naquele instante, a idéia de desistir e voltar dali mesmo praticamente martelava a cabeça dos meninos, porém o receio da tiração de sarro — que viria algum tempo depois, quando relembrassem a situação durante uma conversa ocasional — era ainda maior, fazendo assim com que nenhum deles admitisse o medo que sentiam.
— Então, o que faremos agora, senhor Holmes? — inquiriu Alves, cutucando Reinaldo.
— Vamos… é… vamos… — enrolou Reinaldo. — Já sei, vamos voltar e procurar uma lanterna para cada um de nós… Não acho justo que apenas eu tenha iluminação…
— Não acha justo ou… não quer admitir que está com medo?— foi a vez de Pedro pirraçar. — Você sabe que essa é a única lanterna que temos.
— Tudo bem, já que vocês não se importam, vamos continuar — resignou-se Reinaldo.
E continuaram, só que agora com passos muito mais cautelosos e olhares ainda mais vigilantes. Caminhavam quase colados uns nos outros, pé ante pé, à espreita e prontos para puxar o carro ao menor sinal de qualquer coisa fora do comum.
— Estranho. Vocês estão sentindo esse cheiro? — indagou Roberto.
— Sim, eu estou, e acho que é fumo de corda. O senhor Gusmões… aquele tiozinho mecânico que de vez em quando vem aqui fazer a manutenção no carro do papai… costuma fumar cachimbo e o cheiro é igualzinho — afirmou Alves.
Estavam agora a poucos passos da porta do quartinho, onde podiam avistar pelas frestas a luminosidade que emanava lá de dentro, assim como também avistavam a decadente cadeira de balanço, imóvel em seu posto, tão sombria quanto um guardião às portas da casa dos mortos.
— Naldo, estou com medo — disse Roberto num fio de voz, se agarrando às costas do irmão. — O Pedro falou que a velha caduca gostava de mastigar fumo de corda…
— Roberto, não me agarre desse jeito senão não posso andar. E pare de pensar no que o Pedro disse… ele só queria nos assustar e vou provar isso para vocês — Reinaldo falou com veemência, embora compreendesse o raciocínio do irmão, e não deixou de sondar os arredores para se certificar que estavam mesmo sozinhos. Andou um pouco mais. — Chegamos. Agora quem vai abrir a porta?
—Tudo bem, eu abro. Afinal, de qualquer jeito algum dia eu faria isso mesmo — se prontificou Alves.
— Não, não é justo. O Reinaldo é que deveria abrir. Ele é que duvidou. A velha Ranzinza tem que pegar ele primeiro — interrompeu Pedro.
Reinaldo trincou os dentes, fitando Pedro com ar enfezado, — talvez pensando: Ah, molequinho filho da mãe, eu deveria torcer seu pescoço! — mas enfim se endireitou. Não queria dar o braço a torcer, e agarrou a maçaneta.
A fechadura não cedia, e por um momento Reinaldo se compenetrou tanto que não percebeu quando a luz do cômodo apagou e acendeu duas ou três vezes seguidas, ao mesmo tempo em que a cadeira de balaço ao seu lado começou a gangorrear lentamente.
— Droga, essa porcaria está emperrada, me ajudem aqui — pediu ele fazendo grande esforço.
De início ninguém respondeu — à distância, eles podiam perfeitamente observar o que acontecia à cadeira e à luz, e isso os deixara num congelante estado de pânico — e só depois de alguns segundos Roberto conseguiu gaguejar, trêmulo:
— Re-Re-Reinaldo… a ca… a ca… — mas foi somente isso que o medo lhe permitiu, pois no minuto seguinte um angustiante som de algo caindo, foi ouvido, e o garoto emudeceu.
— Meu Deus, agora deu acesso de gagueira no nosso garoto — resmungou, forcejando como um louco para destravar a fechadura. Estava completamente longe dos acontecimentos que sucediam ao seu redor. — Garanto que se algum de vocês viesse me dar uma mãozinha aqui, isso seria bem mais fácil.
— Alves, acho que molhei a roupa — disse Pedro, choramingando, olhando para seu short ensopado de xixi.
Ao ouvir aquele comentário, Reinaldo olhou acima dos ombros, basicamente para tirar um sarro da situação; entretanto, vendo a completa paralisia em que os três garotos se encontravam, não disse nada e apenas seguiu o olhar deles, que ia de encontro ao gangorrear da cadeira. Foi então que seu coração disparou e no reflexo do susto suas pernas deram um pulo para o lado, inevitavelmente batendo na porta, abrindo-a à força e caindo do lado de dentro do quarto, batendo e cabeça no chão, ficando meio grogue.
A luz se apagou no instante que ele caiu e os garotos não puderam ver o que havia interior do quarto.
Enquanto essa cena se desenrolava, Alves, Roberto e Pedro continuaram petrificados onde estavam, sem coragem e ausentes de qualquer senso de ação — o terror os privara do menor movimento: suas pobres pernas pareciam estar crivadas no piso!
No entanto, o cenário de horror estava apenas começando.
De repente, a luz do cômodo se acendeu, deixando à mostra aquela terrível aparição do outro mundo — logo atrás de Reinaldo, que ainda se levantava meio zonzo.
— A velha rabugenta! — gritou os três, apavorados.
Meio aéreo, Reinaldo guinou o pescoço para trás, dando de cara com aquele corpo decrépito, ressecado, de uma mumificada coloração marrom escura. A “Velha Ranzinza” estava bem ali, parada em pé a uns três palmos de seu nariz, fitando-o com órbitas vazias que tiveram os olhos carcomidos pela hostilidade do tempo. Sua boca entreaberta mostrava dentes corroídos por manchas amarelas, proveniente do hábito de mascar fumo, e sua roupa era aquele mesmo vestido creme de detalhes vermelhos com o qual a vestiram no dia de seu enterro, agora empoeirado e corroído por traças… assim como o caixão no qual ela jazia.
Reinaldo permaneceu ali grudado no chão, atordoado, sem mover um único músculo, o traseiro adormecido e as pernas formigando por causa do tombo — e sinceramente talvez tivesse morrido de um fulminante ataque cardíaco, em plenos doze anos de idade, se Alves e Pedro não o tivessem agarrado pelas pernas e saído arrastando-o pelo gramado, correndo desenfreados em direção à casa, entrando no quarto ficando trancafiados lá até enfim seus pais chegarem.

6
Os pais dos garotos chegaram duas horas mais tarde, devido a problemas mecânicos no carro de Eduardo — sem contar as três horas de atraso que ele e Rômulo tiveram para ir buscar Ângela e Célia no chá de bebê — e ficaram extremamente surpresos ao encontrar apenas escuridão e silêncio velando a casa.
— O fusível deve ter queimado — concluiu Eduardo, saindo do banco passageiro do Fusca. Estava muito em-briagado. — É a terceira vez que isso acontece. Vou trocar…
Mas antes que fizesse qualquer movimento, Célia o segurou pelo braço.
— Do jeito que você está, é capaz de fazer seus próprios fusíveis queimar — espicaçou ela, irritada. — Pegue sua filhinha Camila, de quatro anos, no banco de trás do carro e segure firme na mão dela, ela vai te levar em segurança até a porta de casa. Enquanto isso, vou na frente para ver como estão as crianças.
E saiu apressada, pisando duro.
Os garotos ouviram o som do carro se aproximando e após algum tempo Célia batendo à porta, chamando por eles, porém se encontravam tão abalados que sequer responderam, quanto mais se desgrudaram uns dos outros para abrir a porta. Enfim, dez minutos depois, após berros quase histéricos e fortes batidas, os quatro saíram juntos e foram abri-la, deparando com Célia e Ângela aos prantos — sóbrias e muito mais sensíveis, elas já pensavam no pior. Ao vê-las, se jogaram nos braços das duas, chorando e soluçando de pavor.
Embora a dupla de mães tenha sentido o medo latente no choramingo e no abraço excessivamente apertado dos filhos, elas se resignaram a somente consolá-los sem questionar se houvera alguma coisa além da falta de energia.

7
Apenas pela manhã os fatos vieram à tona, quando Eduardo e Rômulo foram conferir os fusíveis e de relance viram a porta do quartinho aberta. Apreensivos, correram até ele e em seguida para dentro da casa, em sentido à cozinha, onde os garotos tomavam café, mudos como múmias.
— Viemos lá do fundo da casa. Alguém pode me explicar o que houve aqui ontem? — inquiriu Eduardo.
De súbito, Reinaldo deixou o copo com leite escapar de suas mãos, caindo sobre a mesa, e sem qualquer razão aparente Roberto desatou a chorar. Intrigadas, as mães se aproximaram às pressas, questionando o que estava havendo, limpando as mãos em panos de prato.
— Não foi nada — disse ele entregando a chave do quartinho a Célia. — Mas quero que os quatro rapazinhos aqui me esperem na sala após o café. Teremos muito que conversar.
O tom era enérgico, e os meninos sabiam que haveria uma tremenda bronca pela frente.
Quinze minutos depois os garotos entravam cabisbaixos na sala de estar. Sentado no sofá, Eduardo lhes lançou um insensível olhar de carrasco, mas aguardou paciente até que todos se sentassem para finalmente começar:
— Não vou fazer pergunta alguma. Não vou querer saber de quem foi a idéia. Não vou querer ouvir ninguém. Não pretendo culpar nenhum de vocês. Apenas vou pedir que escutem sem me interromper, mais nada. Entendido?
Os garotos abanaram afirmativamente a cabeça e nos vinte minutos seguintes Eduardo desembuchou a história da “Velha Ranzinza” nos mínimos detalhes.
—… Já contei essa história a um de vocês. Porém, quando fiz isso, deixei de contar algumas coisas.
Às últimas palavras, os garotos ergueram rapidamente os olhos, franzindo a testa, encabulados.
— A avó de vocês, com o avanço da idade, se tornou extremamente materialista — e talvez doida.
“Vivia resmungando que quando morresse não queria que nada fosse retirado de seu quarto, nada deveria ser separado dela. Nada! Bem, na época, avaliamos isso como coisa de gente caduca, afinal, ela já estava na casa dos oitenta e na maioria das vezes alguém com essa idade já não sabe mais o que fala…
“Mas enfim, quando chegou a hora de mascar seu fumo de corda lá no Paraíso, tivemos logicamente que retirá-la do quarto e fazer as devidas preparações para o enterro — e por descuido trouxemos para dentro de casa aquele bendito copinho onde ela costumava cuspir… E o enterro foi realizado.
“Entretanto, três dias depois, uma noite acordamos com um barulho estranho vindo lá da cozinha… e era um barulho realmente estranho, parecido com um sonoro ploft! seguido de um retinir de metal batendo contra uma superfície de concreto… E o pior era que íamos lá verificar e não achávamos nada, então voltávamos para a cama… e o barulho recomeçava. Como vocês podem ver, a casa aqui é bem grande, com vários quartos, mas aquele estranho som parecia vagar cada canto, cada espaço, como se tivesse que ser notado por todos nós. E isso durou a noite inteira.
“Pela manhã, fizemos uma nova inspeção e não encontramos nada, além daquele copinho de cuspir que inexplicavelmente encontramos sobre a pia. Sem pensar duas vezes, o jogamos fora. Certo. E o dia passou sem qualquer anormalidade.
“Porém, durante a madrugada, aquele mesmo som foi ouvido — só que agora parecia ainda mais alto do que anteriormente. Inquietos, repetimos o procedimento da noite passada, e mais uma vez foi em vão. Ficamos desorientados e mesmo com aquele barulho em nossos ouvidos nos esforçamos para pegar no sono.
“No dia seguinte, qual não foi o nosso espanto ao novamente dar de cara com o bendito copinho sobre a pia. Aquilo não era possível! Mais uma vez o jogamos no lixo.
“O dia passou… e à noite o barulho retornou — e mais intenso agora e ao que parecia vinha acompanhado por um outro som, semelhante ao rangido de uma porta velha abrindo e fechando insistentemente. Ficamos com medo e a solução mais lógica foi chamar um padre para benzer a casa. Chamamos o Padre Zequinha, que hoje vocês insistem em perturbar nas missas de domingo, mas que naquela época tinha uma voz de trovão que lhes meteria medo só em falar. Então a casa foi benzida. No entanto, ao final, quando o padre já estava pronto para ir embora, ele se voltou para nós e disse: Ela apenas quer o que é dela.
Tentamos perguntar mais sobre o significado daquelas palavras, mas ele simplesmente abanou a cabeça e saiu sem nos acrescentar qualquer resposta.
“…Só muitos dias mais tarde, quando literalmente nem dormíamos mais por conta do barulho, que nos ocorreu a idéia do que a avó de vocês vivia nos dizendo: Nada deve ser removido no meu quarto. Assim, logo que foi possível, devolvemos o copinho de cuspir para o quarto — o som de ploft! era igual às cusparadas que ela dava no copo de metal e o retinir vinha do ato de batê-lo na quina da pia (um gesto que a avó de vocês fazia nas raras vezes em que queria nos pedir algo). Fazendo isso, o som de ploft! e o retinir de metal cessaram. Entretanto, o que era semelhante ao rangido de uma porta velha não”.
Eduardo parou de falar e fitou o rosto impaciente dos garotos. Sentia que estavam nervosos, provavelmente com a língua formigando para perguntar o que aconteceu. Então foi breve em responder.
— O som que passamos a escutar era realmente o de uma porta velha: era a porta do quartinho, que se abria e fechava freneticamente, como se quisesse algo, como se estivesse à espera de algo.
“E ele realmente queria algo, esperava algo. Queria sua dona. Esperava sua dona. E, para dormirmos em paz, não nos restou outra solução senão desenterrar a avó de vocês e colocá-la naquele quartinho, com caixão e tudo, para que assim permanecesse junto à sua velha cadeira e seu copinho de cuspir. Depois que fizemos isso nunca mais fomos perturbados.
“Portanto, o que quer que tenham visto era apenas o cadáver da avó de vocês, mais nada”.
— Mas ela estava em pé atrás de mim — murmurou Reinaldo.
— Claro. Vimos a posição que está agora. Havíamos posto o caixão em cima de um cavalete de madeira, que com o tempo deve ter apodrecido na parte dos pés e desmoronado, ficando com a cabeceira erguida, como se estivesse de pé. Rômulo e eu faremos um novo cavalete e a recolocaremos no lugar, e espero que nunca mais bisbilhotem onde não devem. Estamos entendido?
Os garotos tinham milhares de perguntas a fazer — e a cadeira se mexendo?, e o cheiro de fumo de corda?, e a luz acendendo e apagando? — mas por fim se resignaram a um meneio de cabeça, concordando em nunca mais citar o quartinho em suas brincadeiras.
Teria sido aquilo tudo apenas alucinações de crianças travessas? Talvez, mas…
8
À noite, os garotos se preparavam para dormir, reunidos no quarto de Pedro e Alves, quando algo estranho foi ouvido: uma porta rangendo, abrindo e fechando.
Os garotos se assustaram, mas nenhum quis ser o maricas de gritar pelos pais, (que provavelmente estavam dormindo num quarto ao lado) e juntaram-se todos sobre a cama de Pedro, que ficava o mais longe possível da porta de entrada. Um novo rangido, muito mais próximo agora, vindo talvez da entrada dos fundos da casa.
Passos na escada, passos lentos, porém que pareciam ter um objetivo — e a luz do quarto começou a apagar e acender. Os garotos se entreolharam: agora, mesmo se quisessem, o medo vedara suas bocas, os impedindo de gritar.
Por algum estranho acaso, Reinaldo abaixou os olhos lentamente para seu short jeans, que era o mesmo que usava na noite passada, mas que sua mãe havia lavado e lhe dado para dormir. Os passos se aproximavam. Tateou seus bolsos, receando encontrar algo. Lembrou-se do que o tio Eduardo lhes contara pela manhã. O ploft!, o retinir de metal, o rangido da porta do quartinho — sua dona estava ausente e eles a queriam, chamavam por ela. E agora que ela estava lá…
Reinaldo, pálido como uma vela, enfiou a mão no bolso, constatando com terror o que havia sido esquecido ali. Os passos cessaram, bem à frente do quarto dos garotos e a maçaneta foi girando,lentamente.
— Pessoal, será que ela veio buscar isso? — perguntou, fazendo todos gritar ao ver o conteúdo de sua mão.
Jazia ali, calma e obediente, nada menos que a chave do quartinho.
Sabor de Sangue
Enviado por Sabor de Sangue em 24/04/2018
Reeditado em 05/09/2020
Código do texto: T6317901
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