Morte e Solidão - Donzela do Gelo
Morte e Solidão
A ocasião era o funeral de um homem Palestino, e os protestos corriam no coração da cidade de forma absolutamente violenta.
Tav fora morto e torturado de uma forma nunca vista pelas autoridades Palestinas. Pequenas perfurações em torno do pescoço, pulsos e virilha, na calçada não havia qualquer mancha de sangue, o que sugeria que ele havia sido vítima de um carrasco terrível.
Seu órgão genital encontrava-se completamente dilacerado, abdômen e tórax estavam rasgados e os conteúdos completamente secos. Em seu corpo por mais que se procurasse nem uma gota de sangue havia. Tav fora sugado até a morte.
Nenhuma imagem do corpo fora exibida, seria mesmo terrível mostrar fotografias de uma atrocidade como aquela. A única coisa que se sabe é que a investida que antes tivera sido atribuída aos Israelenses caíra por terra quando junto ao corpo fora encontrada uma inscrição Árabe onde dizia: "Sou Senhor absoluto da noite".
Vou tentar contar a história...
Sobre a inscrição, quero dizer que fui eu mesmo quem deixou lá, porque me bastou chegar a Israel em meio a Intifada, morto de fome, e presenciar meus companheiros famintos se provendo daqueles pobres que se esquivavam pelos becos, eles os sugavam como que, fazendo um ato de misericórdia, afinal já estavam mesmo as beiras da morte. Degradante.
Desculpem-me se no momento mostro uma teoria clássica e prática, mas me compele ser moderno, afinal estou eternizado e lhes digo que atravessar os séculos vendo a evolução do mundo me deixa um pouco nostálgico. E o que presenciara naquele momento era algo tão rude que confesso, me assustei. Prefiro continuar em minha solidão a me unir a criaturas tão desprezíveis.
Resolvi então que precisava de algo novo, não, não era o sangue de um jovem bonito, tão pouco de um belo rapaz na tenra idade. Eu queria me alimentar de algo ¿diferente¿.
Talvez ideais unidos ao vigor do sangue. Não pensem que sou promíscuo, eu queria algo que seria minha redenção. Lembrei-me de Tav o proeminente jornalista, um homem conhecido e mais, um homem respeitado apesar de seus 28 anos de idade.
Ele morava em Ramallah, era um jornalista ousado e nada escapava aos seus olhos, por isso era sempre designado para fazer as reportagens sobre o grande impasse que era a briga entre nós Palestinos e eles...Os Israelitas.
Sua imparcialidade era espantosa, por isso causava a cada coluna um alvoroço por toda a cidade. Era como se todos esperassem por sua opinião. Honestamente eu admirava aquele rapaz e mais, o desejava, seu sangue, seus ideais e por fim sua companhia. Então decidi que naquela noite eu iria procurá-lo. E fui.
Cheguei no café Issam, (era o café mais procurado pelos jornalistas e estudantes), lá se reunia toda a sorte de pessoas. Se você quisesse saber de algo ou encontrar alguém, com certeza ali era o lugar certo. Lá estava Tav dinâmico, falando e gesticulando para quem o quisesse ouvir.
Ele dizia:
- Viram?! A Marcha de protesto no coração da cidade em nada adiantou! Como Você mesmo pode ver meu caro Hamad, todos os seus esforços foram inúteis contra o que você chama de "vítimas de uma grande farsa"
Ao ponto que Hamad o respondeu ironicamente:
- Claro meu jovem idealista! Homem que domina as palavras como uma faca afiada pronta a cortar seu oponente. Você não deu ênfase a Marcha em sua coluna no jornal. Quase me ridicularizou, fiquei numa situação constrangedora, creio que me culpa de fazer apologia. Em sua visão torpe no que tange a liberdade, você anda dizendo que eu sou um mero aprendiz!
- Não é bem assim meu caro, você chega a ser amoral!
Antes que Hamad de certa forma reagisse às investidas de Tav, foi detido por um amigo.
- Não se inflame meu caríssimo! Venha comigo vamos tomar mais vinho, apesar de tudo hoje é um dia de grande reflexão. Tav é um sonhador não se detenha em seus desvarios.
Todos riram, e foi neste momento, que eu me pronunciei.
- Meus caros amigos! Tudo isso por causa de aliviar a culpa e a responsabilidade do real culpado. Boa noite. Sou Ariel. Acalmem-se não sou o Sharon. Ali ganhei uma certa liberdade e alguns sorrisos.
Quando percebi que Tav me olhava, meus caninos de súbito surgiram me contive bebendo um pouco de vinho, meio desconcertado, olhei para o lado e me acalmei. Foi então que:
- Ora vejam só! Disse Tav. Enfim um homem sem papas na língua seja bem vindo Ariel beba conosco. Acenava gentilmente com o braço.
Ele pediu licença aos demais, e me convidou para conversar em uma mesa mais isolada.
- Cheguei mais perto, puxei uma cadeira e me acomodei. E foi ali que em meio a toda aquela confusão de cigarros, bebidas e algumas brigas, que tracei com minha presa a mais fiel conversa política que tive nos meus últimos anos...Anos?
- Você tem que admitir, o Estado de Israel dominou a Mídia.
- Vamos lá Ariel todos sabem que nós os palestinos encolhemos Israel com gritos de justiça e liberdade.
- Eu ri. Tav conte-me qual é teu maior sonho? Fale-me de seus ideais.
- A liberdade, meu caro já seria um bom começo. O entendimento entre os povos, mas isso me parece um tanto distante.
- Anda cansado não é mesmo?
- De tudo, ando cansado de calúnias que se seguem através da história.
Acho que para quebrar o gelo ele disse, com um breve sorriso:
- Eu queria praticar o ¿breve suicídio¿. Estou farto de ser o homem que revela o lado terrorista e ditatorial de uma briga que vem desde nunca! Eu acredito em tantas coisas, que ando me perdendo em minhas matérias. Mas só eu noto isso.
- Entendo você, é como acreditar em lendas. Como os Vampiros, não é mesmo?
- Seres surpreendentes, conheço algumas lendas sobre tais criaturas. Pura literatura, porém se realmente existem, devem estar no poder, não queria ser mordido por um, meu amigo. Aqueles caninos não me parecem muito amigáveis. Foi então que percebi que o vinho já o havia levado para muito longe daqui. Eu lhe disse que estaria cansado e que precisava dormir, mas como tinha chegado na cidade naquele dia não havia mais hospedagem.
Então...
- Ora deixe disso, você vem comigo esta noite, dorme em minha casa e pela manhã você busca um lugar para ficar. E assim foi.
Quando entramos num dos becos que davam acesso a casa de Tav, a besta incontida que havia em mim veio à tona. E minha fome não era só pelo sangue, mas fome por seus ideais. Naquele momento me tornei o mais temido algoz que eu poderia ser. Enquanto ele ainda falava de seus trabalhos no jornal, avancei para pegar minha presa num movimento rápido e calculado. Tav não teve chances. Encostei-o brutalmente na parede, e pude sentir todo seu corpo, em seus olhos um certo pavor.
- O que acontece com você Ariel!?
- As lendas meu caro, algumas delas são reais.
Foi quando o lancei ao chão. Detido por minha fúria e minha fome eu o imobilizei. Atordoado com o impacto começou a balbuciar palavras de liberdade em pura rendição. Naquele momento lhe mostrei meus caninos. Apertei seu corpo e o coloquei de uma forma em que só olhasse para mim. Neste sentido último ou não, Eu seria seu foco.
- Ariel, um vampiro. Realmente a humilhação é uma estratégia premiada.
- Para os de sua espécie.
Foi quando não pude mais me conter, cravei meus caninos no seu pescoço, bebi daquele sangue que para mim era uma oblação. Tombei minha cabeça para trás extasiado, envolvido num prazer mórbido, me sentia esplêndido. Que sabor maravilhoso tinha aquele sangue, era um misto de vida, ideal de pura entrega. Ele apertou meus braços e continuou.
- Você pode matar um homem, mas nunca seus ideais, mas hoje certamente me fará desejar a morte não é mesmo?
- Não Caríssimo, vou te dar uma escolha. Pode viver comigo, numa vida paralela, onde para nós a morte é vida, e a vida sustento. Ou eu posso lhe dar a morte total e absoluta.
- Vejo que você ataca pessoas por muito tempo Ariel. Um dia alguém poderá se voltar contra você. Se quiser me matar me mate! Mas não quero ser algo monstruoso como você se tornou! Repudio você!
- Tav, meu bom amigo. Você fez a sua escolha! Não declinarei seu pedido de liberdade, ou quem sabe de fuga?
Quis feri-lo com palavras, achando que com isso ele me deixaria imortaliza-lo. Mas não foi assim.
- Vamos lá Ariel, cumpra-se em mim teu destino. Livre-me de tua face!
- Vou te livrar deste monstro.
Foi então que por conta de sua negação em ser meu companheiro o mordia mais e mais, onde houvesse a direção do seu sangue ainda correndo, ali o mordia! Tav estava quase vencido, sem emitir um só murmúrio ficou ali em minhas mãos, e suguei até suas entranhas! E meu ódio por aquela criatura se tornou tamanho, que o dilacerara em suas partes mais íntimas, como se quisesse não só ultrajar seu corpo como também seu espírito. Enfim só havia seu corpo, minhas marcas e minha solidão. Escrevi com seu próprio sangue o meu recado, um aviso para todos!
Como queria aquele ser! O desejei como meu companheiro, como meu interlocutor para várias conversas, queria trazê-lo para minha "Esquadra de Morte e Solidão", que naquele momento, continuaria tendo a mim seu maior colaborador, solitário entre vários mundos.
Foi assim que sai dali, manchado do sangue da minha própria admiração. Culpando a vítima, foi um recurso do culpado repudiando o horror do seu próprio crime.