Defuntos geniais
Expulsos do céu, desceram a rampa e foram alojar-se no inferno. Sentiram-me amados, venerados, em casa. Estavam tão ambientados ao lugar, que mantinham-se respeitosos com o dono das profundezas e caldeirões ferventes. Trocando em miúdos, não se sabe exatamente se eram respeitosos ou medrosos; pois, segundo o regulamento do Zinfa, é mais sensato, menos traumático e mantém os dentes ser medroso, do que respeitoso perante o ambiente.
Enfileirados e quietos. Paz reinante nos zinfa. Nem um ínfimo sibilo incomodava o silêncio imperioso de todos os dias. E para quem nunca esteve em contado com tamanho sossego harmonioso, chegava ser assustador o paradeiro do lugar. Como aprenderam na Terra e não dado ouvido, o silêncio é uma prece; mas silêncio demais traz mal agouros, assombrosos pensamentos.
Flores espalhadas pelos corredores. Em frente aos pequenos cubículos que serviam de endereço definitivo, velas iluminavam o breu noturno. Estranhamente, como acontece nas cidades, era cair a boca da noite e o escuro tomar conta do espaço, que as velas acendiam. Mistério. Flores caíam do céu. Ao lado dos muros altos, a mata cobria a paisagem ao redor. Arvoredo a perder de vista. Um vento leve e sorrateiro soprava os pés das árvores e mansamente, remontava a folhagem seca. Início de primavera.
Inesperadamente, uma coruja assentou sobre um galho seco. Provavelmente o único galho seco naquela imensidão verde de alto dossel. Chegara de mansinho. Ao lado, pousara uma cotovia. Pia a coruja, agoura a cotovia. Para surpresa de ambas, inesperadamente, o galho quebrou. Caiu despedaçando os demais que encontrava pela frente. Vuh, Vuuh, vuuh. Os pássaros bateram asas e sumiram na imensidão da noite. Os morcegos sibilantes feito cobras, deram lugar aos apavorantes dentes caninos. Afiados em busca de almas afinadas. Araci de Almeida contava piadas cabeludas e arreganhava as entranhas já passada do tempo.
O silêncio voltou ao ambiente. Não por muito tempo. Uma voz esganiçada despertou raivosa: "por que não me deixam dormir? Não tem respeito pelo sono de ninguém. Será que sabem que horas são"? Do outro lado do acampamento, outro vozeirão cortou os ares, dizendo que era 31 de outubro e o dia pertenciam a eles. Eles quem, quis saber voz que iniciou a conversa? Repentinamente, uma labareda de fogo subiu os ares. Montado nela, apareceu o Raul Seixas com o violão no ombro, cantando:
"O diabo Zé capote". Diabo!
O diabo usa capote. É Rock! É Toque! É Forte!
Diabo! Foi ele mesmo. Que me deu o toque.'
O Demo soltou gargalhadas apavorantes: Ha, ha, ha, hahaha, haha! Depois rangeu os dentes e cuspiu o sangue que escorria-lhe dos dentes amarelados pelo tártaro. Bicho escroto e gosmento.
Em segundos apareceram Tim Maia, Cazuza, Luis Gonzaga, Dominguinhos, Renato Russo e a cia do rock. Desfraldado o baile dos defuntos geniais. No lado oposto, os foliões eram do rap, funk, samba. Para intermediar os estilos, altas doses de vodkas, uísques, cachaças e obviamente, um baseado para fazer a cabeça das caveiras. Bezerra da Silva puxava o cordão: "vou enrolar, mas não vou acender agora. Se segura malandro, para fazer a cabeça tem hora".
Chorão levantou enxugando as lágrimas. Ao notar o papelão de idiota que fazia sem ser reconhecido, desmontou-se fragmentado. Tec, tec, tec, tec... virou um montinho de ossos molhados.
Nesse ínterim, uma leve discussão transitou entre os participantes. Era o político, Luís Eduardo Magalhães, que convocava em caráter de urgência os demais políticos, defuntos ordinários, para uma assembleia urgente, cuja pauta era criar a lei do psiu. O intuito era pôr fim na bagunça ilimitada. Aí sim, a baderna foi generalizada. Raul tocava alto o Rock do diabo de um lado. Tim berrava o "eu quero sossego" do outro.
Dominguinhos dançava o forró pé de serra: "olha isso aqui tá muito bom; isso aqui tá bom demais. Quem está fora quer entrar; e quem está dentro não quer sair". Chorão se refez e foi chorar na cama, que é lugar quente. Mas sempre tem um descontente e reclamão chiando: "bom, bom o quê...? Festa no inferno é coisa boa? Tem caveira que tem merda na cabeça, em vez de crânio. Parece que aqui só tem mente seca".
No meio, o depressivo Renato Russo cantava: "Eduardo tá de recuperação... nessas férias não vão viajar... e repetia: "Eduardo está de recuperação". Imitando o Luciano Hulk, Chacrinha comandava a massa: "loucura, loucura." E completava: "Terezinha, vocês querem bacalhau... fon, fon".
Na ala dos menos intelectualizados, a tropa da dança na boquinha da garrafa. Na parte alta, tiroteio entre a polícia e traficantes. No meio do fogo cruzado, crianças corriam, mulheres choravam. E o que era silêncio absoluto, transformou-se em inferno. Labaredas e línguas de fogo cruzavam entre si. Ossos esparramados pelos chão. Uma cabeça chorosa e desamparada deslizou a ladeira.
Não se sabe como, podões em formato de foice e semelhante ao efeito bumerangue circulavam aos quatro cantos. "Espere que te pego". Pagando os seus pecados na Terra, decapitaram o pescoço do Raul. Tim depois que partira para o endereço definitivo, fizera regime intenso, porém pouco eficaz e com todo o seu corpanzil que Deus lhe deu, caiu estatelado no chão. Virou um pastel.
Bezerra da Silva apagou o baseado, pois a luzinha denunciava onde sua caveira estava e correu em debandada. Desesperado, Cauby Peixoto, procurou a porta de saída. Um foice desgovernada torou-lhe o chumaço de cabelo, deixando careca como viera à Terra. Devaneando por causa dos medicamentos pesados, Marcelo Rezende pede "corta pra mim". E de tanto pedir, foi presenteado. No chão, sua cabeça jazia a recordação dos últimos minutos de vida de seu dono aqui em baixo. Os menos experientes a esse tipo de festa, armaram-se com pedaços de madeira, blocos de concreto, facões, machados e ela, óbvio a foice.
Subitamente, o silêncio voltou a imperar no ambiente. Como fora em tempos idos, reapareceu. Não se ouvia um pio. Uma coruja trouxera o galho no bico e colara-a na árvore seca. Restabeleceu o prejuízo para a mata. Imediatamente, a cotovia pousou ao seu lado. Se abraçaram e em uníssono disseram: "vamos dormir, pelo que parece hoje não teremos lua cheia. Quando muito, lobos uivando".
E de bate-pronto, ouviu-se a matilha de lobos uivando em lugares distantes; porém, nada que atrapalhasse o sono das caveiras defuntos geniais. Exaustos. Cansados, dormiram sono profundo. Também puderas, já passava de 23 horas, 59 min e 59 s do dia 31 de outubro de 2017. Sem motivo aparente, pelejaram uma peleja sem pé e sem cabeça, por quase 24h ininterruptas.
Como estava próximo, mantiveram a festança intitulada "Quebra-ossos" até o dia 02. Contado piadas, por lá passaram Chico Anísio. Dando uma de penetra, Luciano do Valle chegou batendo um bolão. Carlos Alberto, o capita, atuando ao lado dos políticos que partiram antes do roubo combinado, reviveu o gol antológico da copa de 1970 contra a Itália. Torcendo como ninguém e trazendo uma vela de sete dias e uma galinha preta mal sapecada no fogo, Hebe Camargo bateu palmas para a patota ossuda. E em sinal de medo, fez como o bicho queixada ao ser atacado e respondeu com o sinal/ruído característico: tec, tec, tec, tec!