Amigas Íntimas
Estranhamente, estava tudo calmo. Sereno, como mar após a ressaca. Os badalos deram 12 pancadas secas contra as campanulas dos sinos. Nas mangueiras, o rebuliço dos galináceos: galinhas cacarejavam, pintos piavam e os galos abriram o bico a cantar. Um canto que mais parecia um lamento. Acordei com aquilo.
Superstição ou não, meu pais sempre disseram que quando o galo canta fora de hora e tristonhamente, sinal de boas coisas não é. Diziam que isso prenuncia a morte de alguém. Fiz o sinal da cruz, beijei o dedo indicador três vezes e virei para o lado. O quarto parecia tomado por assombração. Notei um vulto sobrevoando o ambiente. Uma mão roçou minha bunda. Quê diabo poderia ser aquilo, se sou viúva morando sozinha? Às vezes o fato de não arrumar ninguém depois da morte da pessoa amada deix´agente suscetível à essas elucubrações. Cobri o rosto. Preferi pensar que não era nada, porém quem realmente poderia ser? Meu marido havia morrido faz 10 anos, meus filhos todos eles casados, morando na cidade e eu, ali naquela casa; atormentada por fantasmas tarados?
Ouvi um barulho na sala. Fui ver e encontrei a santa espatifada no chão. Comecei a ficar encafifada: “Meus Deus, daqui a pouco tenho que sair para trabalhar, não dormi nada até agora e encontro a santa caída. O que está acontecendo aqui, senhor”. Por ser evangélica, lembrei-me do que o Pastor disse no culto daquela noite: “não se deve cultuar santos; pior ainda é tê-los em casa”. Imaginei que aquilo fosse o alerta do Pastor, peguei os cacos e ameacei mandá-los longe; no entanto, se não estavam fazendo mal algum, por que dispensá-los. Fui à cozinha pegar o super bonder. Ao espalhá-lo, colou os meus dedos. Nisto, não é que os cacos dispararam palavrórios e toda sorte de impropérios, que tenho vergonha de dizer, por fim resumiu: “...vai pagar caro pelo que fizestes”! Senti calafrios. Portas e janelas bateram devido a forte lufada de vento. Notando certo silêncio, voltei para cama.
Preguei os olhos. Novamente uma mão parecia alisar-me a bunda. Penteava-a, como chapinha escorrendo pelo cabelo. Ia e voltava. Subia e descia. A velocidade era tamanha, que chegava aquecer a pele. Pegava fogo. Contorcia toda pelo incêndio corpóreo. Pensava como poderia ser aquele mistério tão próximo de como fazia meu marido, quando queria alguma coisa na madrugada. Credo em cruz fazer tal comparação. A mão corria solta. Deslizava feito baba de quiabo. Dedos bulinavam minhas coisas. Onde tinha buraco, se metia. Sentia algo nervoso roçando-me o corpo. Aquilo foi me dando uma gastura, foi subindo uma coisa pelas veias, o sangue fervendo por dentro, foi sopitando tão maldita fúria em mim, mas uma coisa tão dos diabos, que não consegui segurar o grito: “paaaara sua coisa maldita, num tá vendo que num quero nada! Quem trabaiô o dia todo fui eu. Tô cansada; para com isso; deix´eu dormir! Vai bulinar o rabo de sua mãe”!
Por um momento, a mão parou. Outro barulho: dessa vez foi na cozinha. Fui ver e encontrei o feijão esparramado pelo chão. A panela deu uma rabanada no ar, acertando o cabo em cheio na minha canela. Os galos cantaram e outro galo azulou minha canela na hora. Gritei de dor. O gato Piolim ronronou no meu pé e o cão Pivete, latiu estrondosamente no terreiro. Peguei o telefone para ligar pra um de meus filhos, mas o miserável estava sem linha. Ao colocá-lo no gancho, resmungou: “vai pagar caro, é só o começo”. O que poderia eu pagar? O que fiz de errado? Será por que não cedi à atendada da mão? Se fosse isso, poderia liberar para voltar a ter paz.
Por outro lado, e se a mão se tornasse viciosa? Querer todos os dias fazer aquela bobagem em mim? Teria que ir à delegacia registrar queixa. Mas registrar queixa de uma mão? Falar o quê? Que delegado iria acreditar nessa versão? Bom, se chegasse a esse absurdo, convidaria ele para vir dormir na minha cama. Seria o jeito. Voltei para os meus aposentos. Nem bem cheguei e fui cumprimentada por uma mão decepada, sujando minha mão de sangue. Será que estava naqueles dias difíceis, porém, não apresentava nenhum sintoma anormal. Pelo que vi, não era a mão que roçava a minha bunda, pois a outra era leve, suave, sedosa, algodoada, enquanto que essa era cascuda e grosseira. Lixa parecida papel higiênico de saco de pão grosso. Pensei: “na pior das hipóteses, melhor a outra do que essa”. Lógico que fiquei calada: ser estrangulada àquela hora da madrugada era tudo que não queria para mim. Ouvi no Datena que mão estrangula gente, mesmo!
Os sinos dobraram 2 horas da manhã. Estava caindo de sono e preocupada com o trabalho dali a pouco. Esfregava os olhos, como cão que rola na terra devido a coceira da sarna. De repente fui assaltada por um facho de luz que ofuscou as minhas vistas. Não via mais nada, apenas sentia. Sentia um arrepio da ponta dos pés até o último fio de cabelo. Uma energia corria pelo meu corpo, como uma onda se desloca de um ponto ao outro. Que coisa mais louca; doida aquela sensação de estar acontecendo, o que não sabia. Fiquei arrepiada. Passados uns minutos, uma voz falou: “Vá dormir, você tem que trabalhar daqui a pouco; e por favor, vê-se libera alguma coisa para agasalhar-me, pois sou friorenta ”. Fiquei atribulada.
Olhei o relógio e estava prestes a despertar. Se não havia dormindo nada até àquela hora, não seria faltando uns minutos para iniciar a minha rotina de vida que já perdurava mais de 30 anos, que iria dormir. Corri a mão por debaixo da cama para pegar o sapato e dele saiu uma cobra. Dei um salto que fui parar na sala. Pondo-se no ombro, uma mão apareceu e acalmou-me: “fique tranquila, estou com você”. Ficar tranquila, naquele desespero humano, naquele terror, como ficar tranquila? Ela não deve ter visto o que vi e o sufoco por qual passava. Não conseguia respirar, minha voz ficou embargada.
A mesma cobra que me assustara, entrara dentro deles e empurrava-os em minha direção. Seria a alma de meu marido metamorfoseada de serpente? Se fosse, por que não se identificou? Ficaria mais aliviada. Subitamente, a bicha começou a voar rodopiando sobre minha cabeça. Passava zunindo meus ouvidos. Vez para outra, abaixava e levantava minha anágua; deixando-me quase pelada. Gritei: “jararaca tarada, vai roubar o que não é seu dos brasileiros”. Ela retrucou: “estou nele; esse é o meu território; o seu, que é o meu, Brasil”.
Pela voz, era meu marido, o que achei esquisito sua postura; pois era calmo. Zen, tão sossegado, que para reagir a alguma coisa, tinha que dar-lhe uns petelecos nas orelhas. A mão catou-a pela cabeça, fez dela um rodopio e lançou-a no terreiro. Espatifou no chão, feito abóbora podre. Quando as coisas acalmaram, assustadiça, ganhei as trilhas que há no meio do matão. Passando pela linha Vermelha, um fogo cruzado. Mais tarde no noticiário, fiquei sabendo que morreram cinco pessoas que tentaram pular o fogo.
O inferno de noite parecia que não ia parar mais. E realmente estendeu pelo dia todo no trabalho e estando em casa, até meia noite tive total sossego; depois foi aquela mesma agonia, a mesma desavença da noite anterior. Passa a mão aqui, bulina ali, esfrega de cá; vai de lá. A maldita mão transformou-se em gato, um gato gigante que precipitava pra cima de mim, que indefesa aceitava. Motivo de ter tomado a decisão que não iria mais sofrer, ficar com argolas azuladas ao redor do olho, um trapo velho no dia seguinte: ia deixar fazer e acontecer. Mas para isto, atendendo o seu pedido, comprei uma luva, uma enorme de luva de padeiro para que ela se agasalhasse; para meu espanto, a mão se recusou entrar dentro dela. Até nisto me deu prejuízo, pois joguei dinheiro fora; porém tinha fé em Deus que fosse restituída de alguma coisa.
Este conto foi escrito vários anos depois e nada daquelas noites mal dormidas acabar, até que tomei uma dose de coragem e relatei o caso para uma ex-colega de trabalho que encontrei na feira. Falei tintim por tintim do que estava acontecendo, coincidentemente, o mesmo ocorria com ela; desde muito tempo. Fiquei encabulada como as coisas são. Passado mais uma semana, voltamos a nos falar sobre o assunto e ela me disse que conseguira um especialista e que estava fazendo o tratamento psiquiátrico contra aquele mal. Perguntei sobre o tratamento e para que servia; ao que ela disse que era apenas problemas da tríplice aliança do SISPAME: Sonambulismo, Insônia e Síndrome da Perversão Adquirida pelo Miocárdio Esquerdo e para ajudar-me, iria marcar uma consulta para mim. Porém, sinceramente eu dispensei e por um motivo bem simples, a mão de meu marido me incomodava somente uma vez a cada ano; enquanto que aquela bondosa mão/gato, me acaricia todos os dias.
Acostumei a ser acordada com os finos tratos dela; sentir o ronronado todas as noites em minha cama, por sinal, vou parar por aqui, porque o sino está badalando meia noite e de agora o pau vai comer, eu e minha mão/gato, temos o que fazer até o dia raiar. Boa noite!
Ah, agora ele deu para unhar e pensar que é ginecologista. Quando brincamos de papa Nicolau, faz cada estripulia; que é nada quando se ama plenamente. Foi a melhor coisa que me aconteceu depois da morte do meu marido. Honestamente, a mão/gato é muito, mas muito melhor que ele. Faz tempo que estou aposentada. Graças a Deus, não tenho que mais levantar cedo e por isto, posso aproveitar a cama acompanhada até mais tarde. Dormir até mais tarde, é tudo de bom. Depois agente conta mais causo de terror, que por pura sorte e para minha satisfação, acabou em amor. Terror é mais gostoso, com amor. E vice-versa. Tchau!