O Alquimista

Estava sendo consumido, anestesiado por uma dor dente infernal. Assim que cheguei ao consultório, sem delongas nos apresamos à apresentação:

- O que faz da vida, senhor?

- Além de sentir dor de dente, sou mecânico de bicicleta. Por quê?

- A gente tem que saber, para ter uma noção do que fazem com os dentes.

- Que diagnóstico mais louco! Qual a relação entre os dentes e a profissão do sujeito, doutor?

- Nenhum especialista em seu diagnóstico leva em consideração as profissões e os resultados advindos dela na vida do sujeito, mas ao longo dos anos acaba tendo uma relação, sim. Pegue por exemplo a prostituta...o ginecologista deveria procurar saber os pormenores da paciente, antes de meter a mão.

- A minha, qual é? Diga por favor.

- É que pelo que estou vendo, o seu bruxismo é devido a mastigação de porcas, parafusos, arruelas, freios, guidão, garfos, etc.

- A coisa aí dentro, tá feia, é?

- É cada panela sem gordura, que parece que você come os apetrechos de bicicleta crus. Vou tapar os buracos, soltar umas porcas e apertar uns parafusos aqui para ver se melhora. Sua boca tá mais para pneu careca, do que qualquer outra coisa! Daqui ninguém sai pior do que entrou.

- Deus seja louvado e que abençoe as vossas mãos.

- Amém nos todos.

Estirei o corpo sobre a maca. À minha frente, um janelão cobria quase toda a parede. Lá fora um vento minuano de sopro leve e morno rondava a rua. Quem o denunciava era as folhagens dos arbustos. No teto do consultório, três lâmpadas contribuíam para a minuciosa verificação dos meus cacarecos de dentes. Enquanto que sobre as nossas cabeças, uma luminária carcomida pelo tempo esquentava os neurônios de ambos. Sem nunca ter visitado um dentista, esperava que o tratamento não acabasse em caos e sofrimento.

O senhor de vestes brancas, bigode ralo, com uma peruca de cabelos naturais puxados de lado na cabeça e quantidade de fios apenas o suficiente para cobri-la, batia os metais contra metais, enrolava os chumacinhos de algodões, anestesiava o local e entre resmungos e bafos de suas ventas, girava a cadeira procurando uma melhor posição para o trabalho. Mantinha-se tão compenetrado e próximo de mim, que podia ouvir os roncos de sua barriga, o bater do coração; e quanto mais esforçava-me para abrir a boca, mais ele pedia e quando não era suficiente, mais ele a escancarava.

Os metais continuavam tilintando em operação. Variando as espessuras das brocas, canais iam sendo abertos. O cheiro de xilocaína invadia o consultório. No fechar e abrir de olhos, algo correu no teto. Miragem apenas? Confusão mental, devido o zunido estarrecedor do motor corroendo osso? Sei lá...para quem desconhecia essa ciência, sentir calafrios não era bom presságio.

- Pode cuspir.

Pensando não ser verdade, deixei uma cusparada de sangue no sugador. Mesclado entre o terror e medo, franzi a testa de susto. O doutor notou o meu desespero: “está sentindo alguma coisa? Se doer, me fala que anestesio novamente”.

- Não senhor, estou bem! Otimamente bem!

Anestesiar novamente? Longe de mim aquela agulha devoradora. Retomou pondo alguma coisa em minha boca e automaticamente, fez-me fechar os olhos e entrar num transe incomum. Meu corpo vibrava e sentia umas garras apertando minha jugular, porém, pensava que o tratamento devia ser daquela forma mesmo; ainda mais que sempre uso a morsa para prender as peças. Estrangulá-las. Tinha que acreditar que a pessoa é o resultado de sua profissão.

- Aaaaaaai! Quem é o vampiro que suga, rouba tanto o meu sangue.

Acordei sobressaltado; olhei do lado e o avental branco do doutor estava salpicado por respingos de sangue. Redemoinhos, torvelinhos de pensamentos e imagens estranhas rodopiaram em minha mente. Notei um fantasma todo desconcertado soprando sua flauta doce e vez por outra, cuspia uma gosma verde sobre a plateia. O motorzinho continuava perfurando minha paciência, fazendo estrago em meus ossos.

- Pode cuspir.

Ao limpar a boca com o guardanapo, o fio da gosma lançada à plateia pelo fantasma, relutava em sair da minha boca. “como veio para aqui”? Pensei e quanto mais insistia, mais o líquido viscoso e nojento se espalhava, de modo que já atingia o babador. Escorria pelo meu peito. Estava exausto e trêmulo. Meio sonolento, ouvi alguém dizer: “você é o paciente mais estranho e sensível que atendi nesse consultório. Tenha paciência mocinha, que está quase finalizando”.

O facho de luz da luminária desceu sobre minha cabeça. Fiquei bêbado. Sentia a cadeira girar, o consultório rodar e o meu corpo ser lançado muitos metros dali. Preso os braços e as pernas à cadeira, esforçava-me para me livrar daquela tortura.

- Aaaaaaaai, solte-me!

- Cruz-credo, que diabo baixou em você, bicicleteiro?

Ouvindo isto, senti uma agulhada no peito. Meu inconsciente dizia: “que raios tem a ver o peito com os dentes”? Para um mecânico de bicicletas nada, mas para o dentista, podia representar muita coisa. Isto me consolava, a ponto d´eu esperar ansioso pelo término do tratamento; embora que já não via aquele senhor de cabelos escassos como um doutor: para mim ele era um ciclista.

Montava sobre uma bicicleta de rodas grandes, pneus largos com volumosos cravos. Ferraduras perfeitas que tilintavam, guiadas pelas mãos daquele senhor. Contorcia-me ao sentir meu corpo sendo esmagado por aquelas peças de uma máquina que eu manipulei, dominei a vida toda e agora estava sendo vitima dela. Vinha como rolo compressor, estilhaçava-me, espalhando nacos de carne por todos os lados. Carnificina.

- Pare, você está me matando, seu estúpido!

- O que foi agora?

A máquina avassaladora ganhara a rua. Levava-me como refém. Pedia socorro insanamente. Estupefata, a multidão olhava aquele brutamontes de latas, e eu pequenino nas garras dele. Berrava: “é o doutor. É o doutor, chame a polícia. É o doutor...o dentista!” Ninguém entendia nada, por sinal, corriam desesperados. Enfiam-se em qualquer buraco. Qualquer toca. Pareciam ratos entrando nas locas. Os covardes nem para me ajudar. Ouvi uma explosão: era o teto do consultório que havia caído com o peso da máquina mortífera sobre ele. Passara por cima. Alguém resmungou:

- Seus dentes estão uns cacarecos. Comer peças de bicicleta dá nisto; quem te ensinou esta profissão? Acabo de limpar as panelas, agora vou fazer os curativos, para posteriormente, soldá-los. Ou melhor, fazer a amalgama final.

- Nããããããããããão! Socorro! Não. Mil vezes, nãããããããõ! Prefiro a morte do que esse terror de motor. Tormento de tratamento.

- Estou ao seu lado. Pensei que iria dificultar, mas está facinho, facinho! Se não der trabalho, ganha um pirulito.

O doutor se assustou com a gritaria.

- Pode cuspir.

Cuspi no sugador. Reparei bem, e não vi nada de anormal. Ao posicionar a cabeça no encosto, fui picado por um vampiro. Dor infernal. Devia ter passado uma hora, mas para mim, uma eternidade; quando o doutor disse:

- Pode cuspir e está terminado. Olhe-se no espelho.

Após cuspir e limpar a baba ensanguentada no guardanapo, respondi: “agradeço, vou direto para casa, lá olho”.

- Quando podemos marcar a próxima sessão, tenho horário disponível amanhã de manhã, depois de amanhã. Escolha.

- É ruim do senhor me vê aqui novamente. Tchau, para nunca mais.

- Quê sujeito mais estressado. Nervoso, que só. Uma pena.

Os sinos badalaram seis horas da tarde. Hora de paz interior. Cheguei em casa e a primeira coisa que fiz foi ir à bicicletaria que ficava na garagem. Após conferência geral, faltavam duas rodas, alicates, muitos parafusos; porcas, arruelas, guidão, freios, garfos, aros, raios, etc. Pensei: “aquele miserável é comedor de peças de bicicleta e dizia que sou eu. Vou lá agora, de imediato, para pedir minhas peças de volta”.

E sai correndo, veloz feito corisco. De longe, parecia tudo mudado. Demorei, se muito, cinco minutos para atravessar a praça e chegar ao consultório, que já estava com a porta abaixada. Bati e ninguém respondeu. Bati novamente e vendo que ninguém respondia, virei o trinco e a porta rangeu. Na parede acima da mesa da secretaria um anúncio com a inscrição: “Agradecemos aos clientes e amigos pela fidelidade. Esperamos por vocês à Chin Chan Chun, número 89. Telaviv”.

- Que porra é es...

Nem terminei de expressar o meu pensamento, quando uma lataria dantesca, um brutamonte desajuizado precipitou sobre mim.

- É essa, espere pra ver.

Virei-me como pude e disparei rua afora. Suas mãos possuíam algo que as tornava elásticas e numa das pulsadas, elas agarraram-me. “Solta-me, sua mão ligeira. Solta-me, seu desconjuntado”. Tentando safar-me, debatia contra elas, feito estilhaços de gelo em liquidificador. Se conseguisse escapar, fatalmente não seria pego, pois o estúpido não tinha explosão para correr.

Foi quando ele deitou-me no chão e sedento de vontade, lançou um dos pés para me esmagar. Rolei lateralmente e ele jogou o outro. Quando tentava uma escapulida, ele lançava as mãos e agarrava-me. Ficamos assim por um tempo.

Minhas forças estavam no fim. Minha respiração ofegante. Meu corpo trêmulo. Ele deu uma vacilada e abriu as pernas, nesse ínterim, me joguei debaixo delas e por sorte dos deuses dos desprotegidos, vislumbrei uma greta e sai por ela; quando juntou as pernas num: “tááá, tááá”, era tarde. O eco ribombou longe. Por uns cinquenta metros, o sufoco do lançar as mãos e rasgar a minha camisa foi constante. Camisa já não existia mais. Sentia suas garras em forma de aguilhões riscando minhas costas. Vergões subiam. Ardiam.

Chegamos à praça. Ali teria condições de escapulir de vez; porém, minhas pernas fraquejavam. Por uns segundos, descansava detrás das árvores; o que deixava-o mais furioso. A essas alturas, negaciava-o como toureiro fugindo do touro. Por fim, peguei o caminho de casa, mas para que ele não soubesse onde moro, desci a avenida principal, contornei a esquina de um quarteirão de quatro ruas e aleatoriamente, segui uma delas.

Passando duas ruas, retornei por trás, voltando à praça novamente. À medida que não mais ouvia o bater de latas contra o chão, tomava fôlego e diminuía os passos. Quando dei por mim, estava tafuiado num lençol debaixo da cama, tal qual casulo em metamorfose.

Confesso: ufa, quê sufoco. Estou suando frio. Ao escrever este conto, a caneta tremia sobre a folha. Agora, depois de toda essa aventura e terror, seja meu amigo e não diga que sou o Mutável Gambiarreiro, escritor do Recanto das Letras. Estou sendo procurado, não pelo brutamonte de lata, mas sun por ser amigo do Luis Ignácio o Lula da Silva. Muito agradeço!

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 12/03/2016
Reeditado em 12/03/2016
Código do texto: T5571607
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