A Tempestade Parte II
Capítulo II
Sentado. Cabisbaixo. O menino com buracos negros nas órbitas oculares, reflete sobre o vazio do seu olhar. Sente que alguém se aproxima e sua respiração se torna mais ofegante. O coração acelera e o aroma de chuva toma conta antes mesmo das primeiras gotas lhe tocarem a fronte. Uma mesa decorada como tabuleiro de xadrez, onde dois aposentados movimentam as peças, sem se preocuparem com a rapidez do movimento.
— Lá vão aqueles pombos novamente.
— Pombos dos infernos.
— Na verdade são símbolo da paz, do Espírito Santo.
— Pros diabos!!
Uma nuvem branca cobre o céu, fazendo com que tudo seja feito de algodão. Mas na lavoura o calor continua a castigar os corpos cansados, que enxugam o suor da testa que nem a camisa amarrada no topo da cabeça consegue conter. O facão sobe e desce. O cheiro do melaço. Caminham até o caminhão repleto de gente na carroceria. É caçamba transportando o que é considerado lixo.
— Você viu aquele menino cego?
— O Édipo.
— Esse é o nome dele?
— Sim.
— Édipo!?!
— Quem está aí?
— Ninguém.
— Ainda bem. Pensei que fosse a minha cabeça falando comigo.
— Você gosta de maçã?
— Só das bem vermelhas.
A patrulha faz a ronda nos arredores da rua das prostitutas. Na verdade aquela rua não tem dono.
— Atenção todas as unidades!
— Dizem que é isso que os rádios falam.
— Não vou mais me enfiar naquele buraco por causa de malditos usuários de crack.
— Dizem que são crianças.
— Pequenos marginais que cedo ou tarde vamos ter que enfrentar.
— Vamos ignorar a chamada.
A cidade silenciosa ignora todos. Cada prédio tenta arranhar o céu, esmagando quem passa a seus pés. Três jovens bêbados se escoram na parede de uma loja de roupas.
— Eu poderia quebrar aquele vidraça.
— Só termina de mijar na porta da loja e vamos logo embora.
Um carro desgovernado, atropela um idoso que saiu cedo para comprar pão. O motorista estava embriagado. Pagou a multa e já está dirigindo bêbado novamente. O banco ainda fede a vômito. Mas garantiram no posto que vão deixá-lo cheiroso. Abrindo a porta do apartamento é possível perceber alguém se esgueirando pela calçada. O corpo cai de joelhos. Não é mais uma pessoa. Abrindo a banca de madrugada e mais um corpo para atrapalhar o expediente. Embora a circulação de pessoas curiosas sempre facilitasse as vendas. Muitos não compravam tragédias já que tinham uma de graça, ao vivo, diante dos olhos embaçados. Essa havia perdido a língua. Não que alguém pudesse estar caminhando e de repente se visse sem língua. Haviam arrancado. Mas onde haviam guardado aquilo os policiais apenas deduziam.
— Pra mim parece uma clara referência a quem fala demais.
— X-9?
— Uhum!
Um quarteirão de distância dali, um cachorro mastiga uma língua. O animal faminto está feliz por ter encontrado o que comer depois de noite a míngua.
— Aceita uma taça de vinho?
— Prefiro cerveja gelada.
— Seu gosto não é dos mais refinados.
— Quem liga pra essa merda?
Um brinde entre tulipa e taça. A academia Brasileira de Letras ganhou um novo imortal. Nosferatu sorri com seus dentes podres de morte.
— Quase um Foucault.
— Quase... Sabe qual o problema do quase?
— Uhm?!
— Nunca vai passar disso.
— Mas esse não seria o problema de todo o resto?
— Quase!
— Esse é o inverno mais quente. Tenho que ligar o ar condicionado para poder me cobrir.
A menina chora pela discriminação que sofre. Seus cabelos encaracolados e as outras estudantes, com os cabelos esticados, a ridicularizam. Ela sofre e pensa em tentar mudar o cabelo. Mas desiste.
— Não fique chateada Medusa. Elas sentem inveja de você. Seus cabelos são a perfeição.
— Odeio cada uma delas.
— Seu olhar petrifica as outras meninas. Você é forte e no fundas elas sabem disso. Por isso a temem.
— Espelho, espelho meu! Existe alguém...?
— Posso ler o trecho de um poema?
“Ah, minha pobre musa, o que tens esta vez?
Teus olhos ocos são todos visões noturnas
E alternativamente refletes na tez
Loucura e horror., as sombras taciturnas.”
— Isso é Baudrillard.
— Ainda não se acostumou a beber vinho?
— É questão de gosto e não de costume.
— Gosto é costume meu velho.
— Deve ser por isso que se acostumou ao gosto da merda.
— Sei que tem um valete de paus pronto para se descartado.
— Coringa.