Não Atenda a Porta

Já se perguntou o porquê de contos macabros acontecerem depois que o sol gira e a lua resplandece? Alguns podem dizer que quando não há luz, a escuridão é mais forte, mas se fosse por isso, todos os textos e filmes com pessoas segurando lanternas seriam uma mentira. Podem comentar que é porque a lua é o antônimo do sol, que se um traz vida, luz e calor, a outra traz morte, sombras e frio; mas isso é tudo balela de quem tenta nos assustar. E, apesar de tudo, contos de terror continuam sendo à noite.

No meu caso cliché, também tudo ocorreu pela virada da lua, e mais ainda: tudo ocorreu nos instantes que seguiram o momento em que o relógio carrilhonou meia noite.

E eu não imaginava que existisse uma noite em que pudéssemos reviver erros.

Eu tenho insônia desde que me conheço por gente, e naquele dia não fora diferente. Tentara dormir desde as dez, mas passaram-se meia, uma hora e nada de sono. Estava tão desperto quanto Pandora curiosa em sua tentação, andando à esmo pelo casarão que comprara com o dinheiro que há muito deixara de me trazer calor.

A menina apareceu minutos depois das doze badaladas do carrilhão pesado de bronze, quando eu sentei-me na cadeira confortável de carvalho na varanda da minha espaçosa e luxuosa suíte, no andar mais alto do casarão. Olhava para a piscina abaixo, em um torpor tão grande quanto o fardo de Atlas, em um transe tão intenso quanto minha vontade de ficar acordado; perdido em devaneios. Pisquei e ela estava lá, sentada na cadeira em frente a minha. Estávamos separados por uma mesa de centro, de pé baixo e que criava uma espécie de barreira para duas pessoas que pareciam tão presas a seus assentos que não poderiam se mexer nem com toda a energia contida no raio mestre.

Ela estava vestindo roupas rasgadas nas mangas e sujas de algo escarlate. Seu rosto era bonito, sua face angelical, e seus lábios carnudos – um deles, porém, sangrando –. Havia perdido um dos braços, e no outro segurava uma garrafa com algum líquido transparente.

– Quer um drinque? – foi a primeira coisa que me perguntou, oferecendo-me a boca.

– Quero uma vida – respondi, usando todas as forças que me restavam para sair do transe que cobria meus lábios e pronunciar três pesadas e longas palavras. – Pode me dar?

– Se você fizer o mesmo por mim. E acho que preciso mais.

A garota pousou a bebida na mesa de centro e serviu-se de uma taça, uma de vidro que estivera sempre ali? Ou será que aparecera quando eu piscara?

– Doeu? – perguntei, apontando discretamente para o braço arrancado da menina (que, aliás, estava ainda exposta a carne dilacerada e o osso destruído). Ela bebeu um pouco do que havia trago e sorriu, dizendo:

– Doeu quando você fez o que fez também?

– Isso é um jogo?

– Você me diz, eu lhe digo. Regras bem simples para mim.

– Doeu – respondi, sem meditar antes sobre o que dissera, remexendo-me na cadeira.

– Eu nem senti – ela disse, pousando o copo seco.

– Conte-me.

E ela contou, não sei por que, mas o fez. Eles sempre contam.

Tudo tinha começado com seu pai, com a morte dele, na verdade. O pobre homem era policial e havia ido pegá-la em sua aula de dança as oito da noite. Voltavam para a casa deles, que só ficava a alguns quarteirões do centro de dança, quando do nada, um carro vira na esquina e começa a atirar neles. O policial fora acertado na testa e na garganta, e a garota então entrara em pânico. Desesperada e engolfada pela agonia, com as lágrimas lhe queimando a face, puxou a arma do cinturão do pai e atirou para o carro que agora só era um pontinho preto no fim da avenida. Não acertou ninguém – como poderia? O pânico era um péssimo preparo para a mira –, mas os homens revoltaram-se. Ela tentou correr, mas não adiantou: o carro era mais rápido.

E eu sentia o que ela falava. Sentia comichões no meu ombro, peso nos meus dedos, meu rosto havia ficado úmido. E eu engolia, e sentia a tensão, o medo, a dor, a tristeza enquanto as palavras saíam sem vida da boca dela, mas me atingiam com o mais forte baque. E eu estava no lugar dela, na hora dela, na vida dela. E eu morria. E não! Pai, não morresse! Jesus, levasse-me junto! Morressem, infelizes! Queimassem no inferno! Estou morrendo... é muito sangue. É muito vermelho. Deus! Piedade, piedade, piedade; leve-me junto com o homem que me criara desde que minha mãe me deixara. Por favor... pai...

– Esse “por favor” chegou alguma hora a ele? – minha voz então era pesarosa, e titubeante. Eu havia morrido mais uma vez.

Eu perguntei, mas já não havia ninguém para responder na próxima piscada.

Desci as escadas para um andar mais abaixo no casarão. Lá era tão frio, tão solitário, tão escuro. Empregados eram as minhas únicas companhias pela manhã, e a noite tinha que me satisfazer com meus amigos que todo dia mudavam. Eram eles ou os amigos eternos que se encontra quando se alcança a loucura.

Quando cruzei um corredor, não o cruzei mais. Olhei para o lado e só via duas paredes a me imprensar. Nas pontas dos edifícios, parecia que havia uma queda para o nada. O fim era um borrão negro. Era um beco, disso eu tinha certeza.

Comecei a caminhar pelo chão sujo, indo para qualquer lugar. Antes que eu chegasse ao fim, na mancha que era, certamente iria encontrar algo. E assim o fiz. Foi um gato, um preto, com uma orelha perdida e um olhar desconfiado. A velha sentava-se em uma cadeira quase caindo aos pedaços, balançando-se e segurando o felino, afagando sua única orelha. Estava do lado de uma lixeira com um cheiro totalmente pútrido, mas controlei o máximo que pude o instinto de levantar o braço para cobrir o nariz.

Peguei um tamborete perto e sentei-me em frente a anciã. Quando olhei de novo para a face marcada pelo tempo e pelo sol, que ostentava um colar escuro no pescoço, ela tinha em suas mãos uma garrafa com algum líquido transparente.

– Quer um drinque? – perguntou-me, a voz cansada, oferecendo-me a boca.

– Quero uma vida, mas você não pode me dar, pode?

– Se você me der um sentido para tudo isso, meu filho, posso pensar no seu caso. – A anciã serviu-se de uma taça que em um momento não existia na sua mão, mas que no outro, lá estava ela. Vidro, antiga e empoeirada. Bebeu calmamente até que tudo esvaziou, e só então voltou a falar com o paciente Jó a sua frente. – Sou uma estranha para você?

– O tempo acaba com estranhezas.

– E não teme? – perguntou ela, repousando a garrafa e olhando para mim com aqueles olhos leitosos.

– Conviver é uma coisa que aprendi, senhora. O medo exacerbaria meu juízo se ousasse tê-lo, e insanidade é como água: escapa fácil de nós quando tentamos agarrá-la. Mas admito que medo teria se houvesse lógica. – Virei todo o foco de pensamentos que tinha para aquela pobre a minha frente. – Conte-me.

O gato havia começado tudo. O marido e ela amavam aquele animal até que a criatura se pôs no caminho do velho esposo da senhora. Ele havia tropeçado e caído a escada, e para um homem velho, aquilo havia sido gravíssimo. Então veio o ódio do homem para com o felino. Ele batia agora no animal, o jogava longe quando se aproximava e olhava com fúria nos olhos para o peludo. E a mulher de tudo assistia, sem coragem para nada fazer. Até naquele dia. Ela estava alimentando o bichano na cozinha quando o monstro bateu a porta dos fundos e começou a discutir sobre a conta excessivamente alta da mulher no mercadinho da frente. “Ração para esse demônio?”, bradava. De uma pequena discussão, virou a tormenta.

E eu de tudo participava. Estava lá, olhando os dois, mas em um segundo estava na pele da pobre coitada. E eu sentia tristeza toda a vez que ele dizia que eu era uma péssima esposa, que era amaldiçoada e por isso não tinha tido filhos. O tapeei naquele instante, colocando ressentimento e fúria no golpe. O homem empurrou-me e veio para cima de mim, mas puxei uma panela próxima e a rachei contra a cabeça do imundo. Ele ficou em coma por dois dias, mas acabei com a vida dele no hospital, quando aquele travesseiro havia sido minha saída para acabar com a presença dele. E eu era feliz, mas triste, e sentia dor e animação. Mas Deus estava me fazendo sofrer com a culpa, e o pânico e eu o escutava. Ele sussurrava. Ele me chamava. Ele me xingava na calada da noite. Ele me batia. E ele estava lá... não, não, não! Havia morrido. Eu e meu bichano estávamos em paz, não, não, não!

– Doeu quando a corda apertou? – indaguei, mas não existia mais ninguém para responder, nem garrafa e nem becos. Só o meu corredor, frio, silencioso e morto.

Ainda vi uma menina toda coberta de fuligens, que me fizera notar que o fogo é como facas enfiadas pouco a pouco em você. Um adolescente sem ar, que me fizera perceber que a fumaça é mais perigosa que o pânico. Um zelador, que me fizera entender como água e intrigas podem causar dores. E todos me faziam morrer. E todos me faziam entrar em desespero, agonia, alegria, luto, tristeza, animação, aceitação, loucura, sanidade, insanidade, tudo ao mesmo tempo... e eu não era mais ninguém. Eu era um ser perambulando por entre o purgatório para ouvir palavras mortas, e eu, pouco a pouco, aprendendo a fala-las. E todos tinham dores e vidas destruídas. E todos tinham garrafas. E todos diziam:

– Quer um drinque?

O tempo não passa quando se fala palavras mortas. Mas eu continuava vivendo tudo aquilo em um minuto, e em uma hora. E parecia que mil vidas e mais uma se passavam, mas ao mesmo tempo, sentia que um segundo se transcorria tão rápido quanto uma tartaruga em um autódromo.

A menina fujona foi a última. Persegui-a pelos corredores, escutando na minha cabeça suas risadas infantis, seus sonzinhos. E escutava seus passos. E suas risadas. Ela seria linda se a vida tivesse se demorado mais nela. E escutava seus passos. E suas risadas. Ela seria uma deusa feito carne se fosse viva. E escutava seus passos. E suas risadas. Ela teria amado, como nunca ninguém haveria de amar se seu fio não houvesse sido trespassado por uma foice.

Se a vida tivesse se demorado, se fosse viva, se seu fio não houvesse sido trespassado. Tantos “ses”.

– Quer um drinque? – perguntou ela, segurando uma garrafa com um líquido transparente e oferecendo-me a boca, quando eu a encurralei em meu escritório. Lá eu escrevia e vivia para aqui. Só tinha aquilo para me manter no mundo das palavras vivas e não mortas.

– Não posso aceitar se não me der uma vida em troca.

– Não progrediremos, então – respondeu a criança, pegando a taça que sempre do nada aparecia e bebendo um trago.

– Não deveria beber.

– Crianças mudam quando falam palavras mortas.

– E pessoas que nunca chegaram a viver também – respondi, olhando solenemente para a garota. Para a bonita menina. Ela não vivera tudo isso, aquilo era só o que ela haveria de ser se houvesse. Mas era estranho. Nunca nenhum deles havia vindo me visitar.

Mas tenho que admitir que minha irmã seria linda se fosse viva. Se.

– Por quê?

– Não era necessário.

– Nunca é, não estou certo? – respondi. Eu nada sentia. Por que haveria de sentir algo? Nunca haviam mais me ver. O mundo todo já passara diante dos meus olhos, e eu de tudo via; mas nunca eles, nunca os tinha visto. E isso era bom, eu acho. Quando se escuta, mesmo que você entre na vida da pessoa, o pânico continua sendo dela. Não seu. Nunca seu.

Mas eu sentia aquilo agora. Minha irmã estava lá, bela e perfeita em sua magnitude, falando suas palavras mortas. E eu queria abraça-la, aceitar o drinque e sorrir, mas se o fizesse... Jesus! Por favor, parasse com aquilo. Que a mandasse embora. Não a queria mais ali. Agora a melancolia era minha. Meu rosto sentia buracos de água se cavarem fundo.

E eu não via. E eu não vivia. E eu não sentia. E eu não morria. E eu não envelhecia. E eu não respirava. E eu era uma alma falando palavras mortas, mais um corpo falando palavras vivas. O que eu era... o quê?

Corri para uma cômoda perto e de uma de suas gavetas tirei um crucifixo, que há muito não tocara. Deus há muito havia me esquecido ali, escondido entre os habitantes do purgatório. Mas eu sabia que não ia funcionar. Por que o pegara? Chorava. Pu-lo de volta na gaveta, impotente e desmanchando-me em pranto.

Foi quando a campainha tocou. Isso pareceu levantar a cabeça da minha irmã. Teria sido real ou do mundo dela? Eu tinha ouvido mesmo aquilo.

– Não atenda a porta – ela me alertou. – Não atenda a porta. Não atenda a porta. Não atenda a porta. Não atenda a porta...

E ela repetia isso. Por quê? Ela veio até mim, tentou me segurar, mas eu afastei-me antes que ela pudesse me tocar. Deixou cair a garrafa e esta sumiu. Ela começou a correr na minha direção, mas eu fugi. Desci o corredor e lá estava ela, bem no fim – vindo me pegar –. Deixasse-me! Não iria segui-la.

Consegui alcançar a porta, porém, e quando a escancaro, uma mulher vestida casualmente me encarava. Ela estava viva hoje de manhã. Não morrera, não era?

– Resolvi ver como estava. Parecia pior hoje.

– Você é real? – perguntei, com minhas forças drenadas e minha cabeça ainda pensando que a cada momento aquilo era só mais uma artimanha para me fazer agarrar a mão ou aceitar o gole.

– Da última vez que chequei – ela sorriu, e sorria tão belamente. – Achei que precisava de uma visita. Aqui é tão calado. E foi o que fiz, vim aqui. – Sentia vultos atrás de mim, vultos a cochichar e a espernear, emitindo energia e escuridão; como sempre, como sempre minha tormenta fazia.

Foi então que ela tirou uma garrafa da bolsa, uma com um líquido transparente.

– Quer um drinque?

Artur Lima
Enviado por Artur Lima em 19/07/2015
Reeditado em 19/07/2015
Código do texto: T5316601
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