Jogos da Vida
Houve uma época em que se você me pedisse para que repetisse todos os versos dos trinta e três cantos do Purgatório da Divina Comédia dantesca, nada teria passado de uma brincadeira de criança para mim. Mas isso fora há muito tempo, há mais de sessenta anos, quando os céus eram limpos e era ainda a aurora dos dias para as descobertas revolucionárias. Memória é como uma engrenagem, se não for usada constantemente ou bem cuidada, com o tempo enferruja – ainda há de prestar, mas já tentou você girar uma manivela corroída pela ferrugem? – Então, por isso, perdoe-me se algum detalhe passar despercebido pelo juízo deste pobre ancião.
É uma história velha, que meu pai velho me contava à luz da velha lareira, na nossa velha casa perto do velho lago. Naquele tempo, as cidades ainda eram amotinados crescentes, não os centros de atualmente, e preferíamos viver afastados da civilização. E imagine então na geração do pai de meu pai, que lhe contara o mesmo conto.
Tudo começava em uma vila no interior – como a maioria, em que pessoas de centros londrinos ou outros quaisquer parecem não ter quase o direito de participar – durante um inverno muito pesado. A história contava que nevava dia e noite, e em alguns momentos, a neve chegava a dez metros de altura. Aqueles que tinham sorte, morriam por facas às vezes postas por si mesmos nas gargantas ou tiros silenciosos na testa; mas os que tinham azar ou morriam enterrados na tentação pálida de gelo ou o pior: viviam para assistirem a si mesmos e a seus amados definharem em fome, frio e luto. Em pouco tempo, os azarados ou morriam ou enlouqueciam, aquele tipo de loucura que somente se alcança quando se é posto no limite, quando se cruza os Nove Círculos do Inferno e se para no meio do caminho.
Durante essa época de tanta morte, porém, uma mulher teve a audácia de desafiar o clima de escuridão para dar à luz ao mundo uma criança. E o relato contava que isso era revoltante, porque quando o mundo encontra-se condenado pela desgraça, a vida é como uma piada jocosa na face da morte.
Era esperado que a menina morresse, mas ela sobreviveu. Durante todo o inverno, a pobre criatura negava-se a perecer e recusava-se a aceitar a mão de uma companheira invisível aos olhos dos outros que toda a noite, quando o relógio carrilhonava as doze badaladas, estendia-lhe a mão ossuda e a chamava entre sussurros para acompanha-la pelo túnel com a famosa luz no fim. Mas do mesmo jeito que Jonas não pereceu no estômago da baleia, a criança não pereceu nas chamadas da escuridão.
E ela aguentou, aguentou tanto que conseguiu vencer a provação, porque o tempo passou, como nunca deixa de acontecer. O verão veio, trazendo a vida como jamais se vira. As pessoas que haviam sobrevivido a um dos piores invernos que já tinha tido notícia gabavam-se de sua capacidade de sobrevivência. O gelo derreteu; branco virou verde, vermelho, amarelo e cinza-azulado; e o calor reacendia a chama de vida do mundo. Do mesmo jeito que o ser humano corre por instinto para o fogo quando está entre gelo, a chama da vida faz igual, tentando desesperadamente agarrar-se a cada filete quente que restar na consciência dos que a detiverem enquanto não apareça algo ou alguém para transformá-la em fogueira de novo.
E a criança era muito bem reconhecida. Um bebê ter sobrevivido a neve, quando muitos tenentes e reis haviam falecido? Aquela criança só poderia ter sido abençoada ao nascer, porque sobreviver havia sido uma dádiva a poucos concedida.
E a mulher cresceu, cercada pela estima e os status ao seu arredor. E ela não notava, porque levara aquilo de quando ainda bebê era, mas todo dia ainda sua companheira invisível vinha, e ela negava-se a aceitar sua mão ou agarrar o cabo de sua foice; mas disso ela não sabia. Ela fazia sem fazer, vivia sem saber que poderia morrer toda noite, e só bastava um passo e uma mão erguida.
Cresceu sempre com suas necessidades atendidas, com pessoas ao seu lado para rirem com ela e estima de ser a mais forte sobrevivente do inverno. Outros vieram, claro, mas nenhum comparado àquele. Graças aos céus, o gelo de dez metros não mais viera para atormentar o povo, e o inverno voltara a ser o que era: pouca neve, visibilidade boa, poucas perdas de vidas.
A sobrevivente, quando completou seus vinte e dois anos, decidiu trabalhar. Já era uma mulher crescida, poderia escolher alguma carreira a seguir. E foi o que escolheu fazer, selecionando a medicina como seu almejar futuro. Depois de anos de estudos, a mulher então tinha os papeis, e tinha apoio de hospitais que a davam elixires e tônicos salvadores.
E sua fama não media tamanhos. Curava praticamente tudo, e todos diziam que tinha um dedo mágico para acabar com enfermidades. Curara cólera, doença-do-rato, tristeza, cabeça-vermelha, doenças do corpo e da mente. E sabia o que fazia, porque diziam que o dom havia nascido com ela; que aquela tempestade havia criado uma sobrevivente, uma dotada de conhecimentos únicos.
E era meia verdade e meia mentira. A mulher não era diferente dos outros médicos, ela tinha os mesmos conhecimentos e os mesmos métodos. O que tinha de diferente era o apoio. Ela não sabia, mas sua companheira invisível estava sempre lá, quando ela cuidava dos doentes e moribundos, mas ela estava lá para estender a mão ossuda para os outros como tentara fazer com a mulher, só que ela cortava tudo. Ela sempre parava.
Sempre havia uma mão estendida e sempre uma mulher para cortar a conexão que dá sentido a vida.
Com o tempo, a companheira invisível deixara de ser paciente.
A mulher dormia em seu casarão que comprara tanto pela estima que tinha na sociedade quanto pelo dinheiro que lhe era gerado salvando pessoas de adentrarem nos Círculos. Estava tudo escuro naquela noite, o céu sem estrelas, a lua sumida. E tudo era tão silencioso quanto sem luz, tudo sem vida, e os sons dos grilos eram uma sinfonia altíssima comparada com qualquer outro barulho que se visse.
A mulher dormia, calmamente, confortavelmente, até que seus olhos do nada acordam. Ela se levanta. Deus, o que a levantara? A consciência havia lhe voltado e não entendia o porquê de ter despertado. Somente quando olhou do lado que entendeu o que se passava.
Sua companheira invisível estava lá, dessa vez totalmente visível. Ela era bastante alta, tanto quando uma anã. E ela tinha uma pele branca, tanto quanto o céu daquela noite. Era tão gorda quanto um palito e tão nova quanto o próprio tempo. A companheira não caminhava nas sombras, caminhava atrás da luz, onde há muito não existia vida. Aos seus pés, jazia um espelho ovalado.
Naquela noite, ela exigiu.
Fora explicado para a médica prodígio que a mulher deveria agora e para sempre levar o espelho consigo durante suas consultas; e que não questionasse, porque quando se questiona o que está do outro lado da linha de normalidade, geralmente se perde. Ela deveria colocar o espelho perto do moribundo e não o olhá-lo. Então deveria receitar algo, recolher o espelho ainda sem olhá-lo e ir embora, somente observando o que reluzia em sua tela depois que saísse da casa marcada pela foice. E qual era o significado de tudo aquilo? E para que seria tudo aquilo? Queria bradar em plenos pulmões, indagar todas as dúvidas e incertezas que tinha, mas ficou calada.
A mulher era um poço de tensão, com os olhos arregalados e o corpo paralisado. Queria gritar, mas não tinha boca. Queria correr, mas não tinha pernas. Queria pensar, mas não tinha mente. O medo apoderava-se de si.
– Tem medo? – essa foi a última coisa que saiu dos lábios da companheira. Sua voz era tão vacilante.
– Não – respondeu a mulher, retirando do mais fundo do seu ser aquilo que podemos chamar da coragem selvagem do medo.
– Esse é o problema. – Uma luz. Uma sombra. E então não existia mais nada, somente um espelho ovalado no chão.
A mulher, desesperada, tomou-o e o guardou-o com muito cuidado. Não sabia o que aquilo era ou o que o espelho significava, mas tinha que deixa-lo perto. Ela estaria ficando louca, paranoica, insana, isso era inquestionável. Não havia nada de lógico ali – vultos eram somente as sombras da nossa cabeça. Mas se fosse assim, por que sua cabeça tão perturbada estava?
Pensou desse jeito, mas no outro dia veio o choque: se fosse coisa de sua cabeça, não haveria espelho. E ele estava lá, intacto, no chão de seu vestíbulo. Ela engoliu em seco. Era real. Ela estava agora tomando um caminho não nas sombras, mas sim atrás da luz, onde a vida há muito se fora.
No seu primeiro moribundo levando o espelho, fez exatamente, sem nada mudar, do que aquele ser a dissera. Pusera-o perto do leito do quase falecido, tinha tirado medidas e prescrito remédios. Só olhara o espelho quando saíra da mansão do homem rico que tratava. Para sua surpresa, refletido na superfície pequena e compacta, não havia ela, sua boca ou seus olhos tensos. Havia um remédio. O que prescrevera. E ainda havia uma moeda. Uma virada para a coroa.
E foi assim durante suas consultas, porém em nem todas ela conseguia. Aquilo, pelo visto, estava permitindo com que ela errasse. Deus, aquilo era como um jogo da sorte! Estaria ela jogando com a vida das pessoas, então? Estaria a mulher, tão famosa na comunidade média, mantendo-se pelos jogares de moedas, pelas caras e coroas e os resultados que delimitavam? Ela estava brincando com vida, e brincar com vida, é perturbar a morte.
Mas ela fazia. E aquilo era sujo e vil, ela sabia. Não se decide quem vive e quem morre. Pelo menos, mortais não decidem. Mas mesmo assim ela fazia. Entre eles ou ela, ela escolhia se salvar. Egoísta? Talvez. Mas nada diferente do que mais da metade do mundo faria.
Porém, o espírito é fraco. E a curiosidade é um pecado tão tentador quanto o desejo intenso...
A mulher já deixara morrer muitas pessoas desde que recebera os espelhos, muitas vezes em que caíra a cara, em vez da coroa no jogo da vida; mas mesmo assim, o prefeito da cidade onde morava – uma pequena no sul do condado – a chamara para cuidar do seu filho. Quando chegou no leito, porém, a mulher deu um pulo. Não poderia curar aquele caso.
Sua companheira estava lá, parada do lado do cadáver, sorrindo como se estivesse com depressão e portando uma foice com o gume tão cego quanto uma navalha recém-comprada. O que faria ali? Jesus, não poderia! Não! Não jogaria o jogo da vida ali. Ela estava lá para ver o resultado, para rir de seu fracasso ou balançar a cabeça, almejando a hora de sua derrota.
Mas ela sabia melhor porque sua companheira invisível estava lá. Ela estava para roubar. Não há jogo limpo quando se joga com a Morte. Ou você ganha ou você morre.
E a mulher trabalhou do mesmo jeito, deixando o espelho ao lado, engolindo em seco e tentando ignorar a presença. Olhava pelos ombros constantemente. Só poderiam brincar com ela. Como não sentiam tal presença? Não, não, não. Eles tinham que senti-la! Ela irradiava energia negra, tristeza e tormento, e parecia que sons guturais, como gritos contidos, escapavam sempre que movia-se inquieta.
No fim, já estava desesperada. Não sabia mais o que fazia, a mulher somente mexia as mãos pelo que tinha, rezando para que pudesse sair daquele lugar e que a companheira ficasse para trás. Que levasse o homem, ela precisava se salvar. Mas para isso, precisava sair. Para se viver, precisava salvar o homem. Mas estava incerta. Não sabia o que fazer, o que passar, se quer o que o homem tinha.
Afogada na agonia surda e no desespero bestial, só lhe restou uma última opção. O medo já lhe dominara por completo, e os instintos do medo já se manifestavam. Com a respiração pesada, as mãos inquietas e os olhares fugazes, deu um pulo em um instante em que a Morte piscara e pegara o espelho. O espelho! Ele diria o que salvaria o homem!
Deixou o oval cair. O que ela via não era nenhum remédio, erva ou elixir que conhecesse. Eram os homens e mulheres que havia cuidado, que havia salvado, que havia dado uma nova chance e estendido a eles uma mão para a vida, mão esta que agarraram em vez de aceitarem a ossuda da morte. Em frente a todos eles, havia um uma cara.
– Minha querida – sua companheira aproximou-se. – Se um fio é cortado, você pode tentar dar um nó. Mas ele continua cortado.
Ela desviou o olhar para a companheira e sua foice, para o espelho e sua moldura oval com arabescos e até para o moribundo recheado por riquezas. Suspirou. Caiu no chão. Convulsionou-se como se possuída estivesse.
Só então ela riu, histérica e dominada pela insanidade. Depois, só vieram os gritos.