Um, Dois e Três

Se você é destes que tem aversão a tudo que não é politicamente correto ou tem crianças em casa, sugiro antes que não queira saber sobre minha história e que feche este conto o mais rápido que puder – se estiver impresso, jogue-o fora –. Minha vida é sombria, resumida em passear todos os dias pelos torturantes Campos de Asfódelos, os “nadas”; em tatear na escuridão se quer a entrada para o famoso túnel com a luz no fim que nunca consigo achar.

Eu sou um tipo de homem que as pessoas comuns preferem manter distância. Não as culpo. O tempo que passei sufocado por quatro paredes me mostrou que ninguém tem afeição por pessoas vindas do subúrbio e da miséria das celas escuras e poeirentas de penitenciárias.

E tudo tinha começado havia dez anos, quando assassinara minha mulher. Eu não era insano naquela época. Era feliz, ela estava grávida e vivíamos em uma bela casa em uma pequena cidade ao sul do condado. Era tudo bem. Era tudo normal. Eu vivia naquele tempo sem grilhões a prender-me e sem camisas de força invisíveis para limitar meus movimentos. Mas então chegou o momento em que o selvático instinto em mim despertou.

Acho que foi isso. Poderia não ser. Mas prefiro dizer que foi. Falando tal, a culpa toda iria para meu pai e sua má linhagem, seu sangue ruim e violento.

Foi em uma noite, e chegara mais cedo do que o normal em casa, animado para passar um pouco mais de tempo com minha amada. Foi a facada no peito. Foi tudo culpa do meu chefe, então. Se tivesse demorado mais minha meia hora normal, talvez tudo não tivesse acontecido, eu estivesse ainda com um filho e feliz – traído sim, mas pelo menos sem saber. E quando não se vê, não se existe –. Mas não há como mudar o passado, e o que aconteceu foi que encontrei minha companheira, aquela que havia jurado sobre o brilho dos vitrais da sagrada igreja e sobre os olhos de homens e anjos que me amaria até que a morte nos separasse. Ela estava deitada com outro, um qualquer, um que eu se quer conhecia.

Ela morreu naquela mesma noite. O homem fugira correndo pela janela quando ameacei mata-lo a facadas, levando roupas e seminu. Ele viveu. Que injustiça, devia tê-lo matado e deixado a pobre e bela mulher intacta, mas eu não pensava naquele momento, minha mente era somente dominada pelos entorpecentes da raiva e do sentimento de traição. Ela tentou acalmar-me, tocando-me a face, e foi quando a chutei na perna em ódio intenso, fazendo-a cair no chão com um baque surdo. Lembro-me ainda do som gutural e roco que emitia enquanto eu pouco a pouco chutava-a na barriga, fazendo-a sentir as dores que estava sentido no coração.

No fim das contas, ela foi levada ao hospital e morreu dando à luz um natimorto. Eu, por outro lado, fora condenado a uma das piores torturas de um homem: reclusão. A luz apagou-se para mim, não havia mais túnel ou archotes para que me ajudassem a caminhar.

Achei que estava perdido lá naquela cela, e teria que aguentar a tortura por dez longos anos. Tentei conhecer algum detento, mas todos eram estranhos e sempre seriam. Tinha o neonazista loiro que odiava todos os detentos morenos da ala seis, e até me batera um dia alegando que eu era homossexual e desonrava meu sangue. Havia também o homem com pele leitosa, que havia matado o irmão para conseguir a herança de sua falecida mãe. Tinha uma mulher gorda que matara o filho, um baixo homem que arrombara cofres de um dos bancos mais importantes do leste. E eu sabia que eu era impuro como eles, um monstro como eles, estranho como eles e culpados como eles, mas eu achava-me superior. Não houve se quer um dia em que não me arrependi por ter matado minha esposa e meu pobre bebê que só chegara a conhecer quando eu tolamente falava com a barriga inchada da minha antiga companheira.

Por serviços prestados e participação na ordem sagrada de Deus que havia na prisão, consegui diminuir quatro meses de pena, e em nove anos e alguns dias eu finalmente podia ver o sol brilhar de verdade, sentir a brisa no rosto, sentir sabores na boca. E eu era livre, tão livre quanto Ícaro fora com suas asas.

– Deus o purificou, meu filho – disse o padre que ia semanalmente falar com os detentos. – Honre a segunda oportunidade que ele te deu.

– Com minha vida, padre, irei – respondi-lhe, confiante. Mas foi difícil, tão difícil quanto segurar o céu, eu tentava segurar minha vida.

O peso que carregava Atlas nada se compara ao que tive que suportar quando minha vida fora do confinamento veio de supetão para mim. As pessoas ainda me olhavam de forma estranha, e demorei dois anos para conseguir algum emprego. “Aquele assassino, na minha empresa?”, “Vai tratar de comer areia para pagar pelo que fez”, “Devia ter se matado. Olho por olho, dente por dente”. Eles não diziam na minha cara isso, mas eu sabia que falavam às costas, porque mesmo que nossos olhos só possam ver o que há adiante, o homem é criado para torturar-se com o que há atrás também.

Mas eles não entendiam... não entendiam que eu queria mudar, ser uma nova pessoa. Nunca esqueceria o que fizera – sonhara, torturava-me, lembrava dela, ela estendia sua mão –, isso era óbvio, mas queria uma nova vida. Uma que minha mulher, de onde estivesse, com o nosso bebê de colo pudesse aprovar.

E eu tentei. Tentei muito.

Os problemas de verdade começaram em uma tarde de inverno, uma que amanhecera sombria e com nuvens a pairar sobre minha cabeça, que todo instante esperava uma tormenta a cair. Mas não caiu. E aquilo era bom, porque um novo parque de diversões havia aberto na cidade.

Nunca gostei de parques, porque sempre os achei totalmente inúteis, mas minha mulher os amava de uma forma sem explicação lógica. É como o desejo, que não há respostas para o desejar, somente há por quês e mais por quês. Eu havia sonhado com ela no dia anterior, segurando nosso bebê e sorrindo, com aquele sorriso que faria Narciso encantar-se mais que a si próprio. Eu precisava fazer aquilo. Não importava quantas vezes fosse necessário, eu sempre tinha que encarar o que haveria à frente, encarar os gostos delas, os desejos delas e suas aversões.

Porém, tudo foi um desastre.

Não sei dizer se fui eu que atraí a desgraça, mas quando me sentei para ir na mais veloz montanha russa – ela as adorava – que já chegara naquela cidade tão do interior, já algo no meu estômago revirava-se; mas eu ignorei, como um portador de insônia facilmente ignora o sono. E o desastre veio na quinta volta.

O carrinho ia a toda velocidade, e eu de tudo vivenciava, sentindo tensão, mas nem um pingo de animação como as pessoas atrás de mim estavam sentindo. Não estava ali por diversão, era minha seção de relembrar feridas que sempre tinha que fazer. E o carrinho girou, deu voltas e mais voltas, e eu era um unicamente êxtase, mas o pior dos êxtases: o nulo. O êxtase nulo, aquele que você deveria sentir e que seu corpo clama em altos brados para você agarrar o sentimento, mas algo o bloqueia. Normalmente, o seu ser.

Na quinta volta, quando o carrinho ia mais rápido que uma bala, foi que atraí a desgraça. Vi ali, tão perto, mas depois não vi mais. Em um instante, estamos correndo a mil por hora pelos trilhos, e então estamos caindo, com o brinquedo desgovernado e sem direção desabando do mais alto lugar que pudesse se ver. Um parafuso solto, uma fuselagem mal ajustava e tudo ia para baixo, levando-me e a todos que no brinquedo estavam. E naquele momento, me faltou ar, me faltou fala, me faltou tudo, menos pensamento. A minha cabeça funcionava bem, e ela piscava sempre a mesma coisa mil vezes e mais uma a cada milésimo: quero morrer.

Seria minha salvação.

Mas não fui tão sortudo. Acordei no hospital dois dias depois, para receber a visão da polícia. Não havia nenhum parente que pudessem contatar conhecido, então haviam me deixado só até que tinha apresentado sinais de ainda viver. Eles me contaram, eu, com o coração tão apertado quanto papel amassado, que era o único sobrevivente do terrível desastre do parque.

Boca seca. Olhos arregalados. Êxtase nulo. Depois nada, nada sentia. Era para sentir alguma coisa? Deveria, sei que deveria, mas o quê? O que sentia pela minha mulher?

A partir dali, minha vida foi condenada e eu vi-me pouco a pouco dissolvendo na paranoia. Tudo acontecia no hospital, toda a tormenta que se seguiu. E eu fiquei lá por um bom tempo. Alta só tive quando meu juízo já era tão forte quanto uma folha sulfite.

Só acontecia a noite, mas esse era o problema: acontecia. A primeira foi a pior. Quando fui dormir, ainda em choque pelo ocorrido e com os dentes incertos, eu sonhei. No meu sonho, eu era uma mulher – não, não a minha – e estava correndo. E eu sentia pânico. Não sabia como aquilo podia vir até mim por um sonho, mas eu sentia medo, e desespero e vontade de chorar e escapar ao mesmo tempo. Corria por um corredor esfumaçado. Jesus, sempre havia sido uma boa menina – tinha sido coroinha e havia quase terminado o convento –, então por que estava me deixando naquela situação? Eu corria, desesperada, tateando portas às escuras, portas que eu não via, mas que se não abrisse, seria minha perdição. Mas tudo que existe tem um fim, e o corredor também teve. Era a última porta, só que a maldita estava trancada. Havia começado a chorar. Por favor, que alguém me ajudasse logo.

E então ouvi passos – sons incertos, melodias que ressoavam por todos os quatro cantos do meu mundo agora resumido à tormenta e à fumaça. Mas eu esperei. Um. Ouvi o levantar de algo. Dois. Ouvi o murmurar baixo e gutural, inumano. Três. Eu morri no três.

Acordei pulando da cama, com o coração a sair pelo peito e o resfolegar sendo minha única saída para livrar-me da tensão. Tentava capturar ar, mas era difícil, e eu tinha medo. O medo da mulher agora era o meu medo. Trancafiei-me em meu corpo como uma bola e fiquei lá, tentando organizar os pensamentos. Um. Minha cabeça doía. Dois. Tinha desespero. Três. Melhorei no três.

“Melhorar” é uma forma de falar, porque não, nem um pouco. Não quando na noite seguinte houve mais. Eu era, dessa vez, um homem baixo e esguio, com estanhos olhos puxados e uma cidade de vidro às minhas costas. E eu estava também em pânico, mas não conseguia me mexer. Ouvia uma pessoa perto falando, mas nada entendia e nada via. Naquele momento, eu só era os sentimentos. Só era o medo. Só era o desespero. Só era o terror. Um. Vi uma faca entrar na minha vista. Dois. Um rosto branco a sorrir. Três. Minha garganta jorrou vinho no três.

Na noite seguinte, era uma indiana; no quarto dia, um africano; no sexto dia, um brasileiro. Morria envenenado, em um acidente provocado, em um tiroteio, de todas as formas possíveis. E eu bradava no meu interior para que Deus, que pouco chamara na minha vida, pudesse me ajudar e levasse as tormentas embora. Eram aquelas as minhas punições? Mas o que acontecera com a segunda chance? Deus, eu não aguentaria, eu não suportaria, eu não mais viveria. Chorava quando acordava, e minhas mãos tremiam, e meu espírito era incerto e titubeante como um badalar de relógio. E eu só queria duas coisas, ó Deus, que concedesse a esse pobre pecador pelo menos essas duas saídas. Ou a ida do pânico, que este me deixasse, que acabassem os sonhos. Ou a minha ida, que a vida me deixasse, que tudo se perdesse.

Depois da décima quarta noite, quando era um porto-riquenho morto afogado por uma mão gélida, fui procurar ajuda. Os homens do hospital sorriam para mim, falando palavras tranquilizadoras, mas sabia que quando me virava, eles riam de mim, falando da minha loucura. Um. Não entendiam. Dois. O computador entenderia. Três. Descobri respostas no três.

Tinha me esgueirado e conseguido acesso, mas não deveria ter feito. Não eram sonhos. Era Diana Mess, morta em uma fábrica; era Young Omi, morto em seu escritório em Seul; era Carlos Enterno; Marylia Brian; Jaqueline Duartes; era o mundo todo, e eu era a morte, e eu sentia a morte dia após dia, e eu morria com eles, e eu...

Meu Deus!

Era eu que estava morrendo dia após dia? Respondesse-me!

Tive minha resposta naquela noite. Dormi, e para minha surpresa, não era nem Diana ou Young, ou qualquer um outro se não eu. Mas não havia hospital, nem instrumentos que faziam bips e nada mais. Só escuridão. Só cólera. Só trevas. Só perdição.

– E é esse o meu castigo – disse, não perguntando, mas sim afirmando para o nada, para qualquer um que houvesse ali. – Estar lá, sentir tudo, e nada poder fazer.

– Morte é natureza. Não se para a natureza. – Aquela voz não era humana. Era doce, suave, mas grossa e ríspida, tudo ao mesmo tempo.

Estava pronto a responder, mas a súbita imagem de uma mulher aparece na minha frente, encarando-me com olhos vítreos e face morta. Pálida como o leite, olhos como órbitas sanguíneas. Minha mulher havia sido bela. Ela ainda era. Mas ela estava feia. Mas era bela. Era bela e feia ao mesmo tempo.

– Nem se para carrinhos. – Ela olhou minha expressão confusa. – Ninguém conseguiu escapar. Ninguém sairia. Era destino. O que a morte impõe como destino, o mundo aceita. – Ela estendeu-me a mão ossuda. – Bem-vindo a sua nova casa.

Um. Engoli em seco. Dois. Franzi o cenho. Três. Reencontrei minha mulher, brilhando e consumida por chamas, no três.

E tudo estava em paz

Artur Lima
Enviado por Artur Lima em 18/07/2015
Reeditado em 18/07/2015
Código do texto: T5314807
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