Boa noite BAILARINA
Induziram-na a fazer ballet clássico. Até que ela tentou, mas aquela coisa de ficar se equilibrando em cima dos dedos dos pés, abrir os braços como asas quebradas de gaivotas em pleno voo, vestir roupinhas rosinhas, tudo falado no diminutivo, excesso de mimo, definitivamente não era com ela. Fazia aquilo para agradar aos pais, mas no fundo no fundo, ela sabia o que queria. E esse seu querer e descoberta estavam no seu quarto, ao apagar das luzes. Ali se encontrava. Não tinha medo do escuro; não tinha medo dos pais; não tinha medo do horroroso; não tinha medo da morte; não tinha medo do Diabo; não tinha medo do inferno; pelo contrário, queria mesmo era ir ao encontro dele. "Lá não há nada que eu não conheça".
Fechava a janela, trancava a porta, ia ao guarda roupas e pegava a boneca, vestia-a de preto, desgrenhava-lhe os cabelos, torciam-lhe os olhos, acendia o abajur coberto com um pano preto e a sessão começava. No final, a roupa estava rota e totalmente em fiapos e a boneca com pintas de vermelho. Depenar a boneca era o seu passatempo predileto. “Pronto, por esta noite chega, ela está morta”.
Noite! Sempre à noite. Depois de muito ouvir que o crime não compensa e mesmo sem ser um ás da percepção, assim que atingiu a adolescência ela aderiu a Noite como companheira. Iniciava-se a semana contando os segundos para o fim de semana. Sexta, sábado e domingo. Por ela, o cabalístico sete dias da semana podiam resumir-se em apenas três. Por que tantos dias, se em apenas três estavam o conhecimento de suas intimidades. Com eles, os extravagantes lazeres.
Ela se coloria com as cores da noite, para tanto, quando mais escuro melhor. Noites eram noites; mas àquelas em que a devassidão do negrume baila cego sem luz no breu, eram as noites prediletas. Magos, bruxas, vampiros, duendes, morcegos. Dentuços. Sanguinários. Zaroios. Aterrorizantes. Fora os seus amigos de carne e osso, esses postulavam como figurantes nos ensaios. Nas comemorações, vestiam-se de preto. Preto com preto se completavam no escuro. Tocavam-se, drogavam-se, se amavam, enfureciam-se, matavam-se. Escondiam-se em meio ao preto. Ninguém à vista; quando muito deixavam as impressões digitais. Contrário das noites com lua, essas eram noites com sol. Iluminadas e não vistas por vistas comuns.
Para fugir dos bisbilhoteiros, criaram um código favorável aos planos. E expondo-o nas redes sociais, tramavam como seriam as noitadas. Escrevendo daquela forma, somente eles sabiam do que se tratava. Assim que findava a noite de domingo, imediatamente à segunda feira começavam a trabalhar os planos para a realização dos novos projetos do fim de semana.
Ela descobriu essa patota quando foi convidada pelos veteranos para um passeio nas grandes Galerias do Rock em São Paulo. Ao adentrar os corredores mal iluminados, lojas e mais lojas cheirando incenso, expondo camisetas com estampas cadavéricas e os vinis empoeirados de bandas de rock metálico, apaixonou-se. Foi como se saísse da salmoura e mergulhasse de corpo e alma numa banheira de águas melíferas. O êxtase foi tamanho, que vociferou a plenos pulmões, o que disse Arquimedes ao descobrir a lei do empuxo: “Eureca, eureca, eureca”.
Todos os que estavam no evento, abraçaram-se em círculo e vociferaram: “de hoje em diante mais uma vampira pertence ao universo daqueles que é o reverso dos que fazem versos. Detestamos poesia, em compensação, unimo-nos no rock and roll e ela é nossa parceira. Companheira”. Essa era uma das frases de ordem. Após a comunhão do ato ritualístico, berravam: “Deus salva e o rock alivia”. Por fim, colocavam as mãos uma sobre as outras e diziam: “Em nome do rock, dos aliados, do pai do LSD: Albert Hofmann e do proponente à expansão da consciência através do ácido lisérgico, que foi Tymothy Leary. Salve o agora para todo o sempre”.
Cabia à ela dizer sim ou não: “Sim. Fielmente, para o que der e vier, faço parte da religião dos pretos soturnos e das noites, breu noturno. Dizei isto e o rock estarás em minha morada para nunca mais sair”. Para solidificar o batismo e ser salvo, no primeiro voo pela noite o iniciado teria que vestir a caráter; comer abundantemente e tomar doses maciças de um líquido viscoso/gosmento; vomitar as tripas e sobre ele rolar em transe (diziam que era para reciclar/limpar a consciência); e por fim, duelar com morcegos, matar no mínimo um e comê-lo cru; sem, no entanto perder uma gota de sangue para o animal/vampiro. Dentes contra dentes. Pescoço contra pescoço. Jugular contra jugular.
Para tanto, o postulante passava por uma bateria de testes e aprendizado. Ela levou nota dez em todas as baterias de testes e provações.
- Nota dez! Definitivamente, és da patota. Foi o que disse o Mestre/Guru cerimonial. Brava! Siga avante. As noites pertencem aos corajosos vampiros e desafiadores morcegos. Tens futuro! YerrrArgghr. E contorcendo-se em rugidos, limparam os bofes e ambos cruzaram uma golfada de gosma inexplicável em nome da confraternização. As sobras escorriam-lhes pelos peitos. Babento! Nojento!
Exceto o Mestre cerimonial, à cada cinco anos de entrega e devaneios pela devassidão noturna; o restante do grupo teria que passar pelo mesmo ritual citado, cuja finalidade era mostrar, provar para o Guru, poder, bravura, aguerrimento, fidelidade e principalmente, força e vigor físico; pois, a fraqueza e debilidade motivava a exclusão da trupe. Não se admitia choro e lágrimas. Vagar pela noite extravagantemente exigia controle emocional e vigor-físico; tanto para os machos quanto para as fêmeas; como costumavam dizer.
Às vezes, para sair do comum e mesmices, as reuniões e festas eram realizadas em meio à Natureza. Nessas ocasiões, alteravam o local das festividades, indo para os recantos mais longínquos à área habitada. Lá caçavam, matavam, preparavam as caças e as comiam. Celebração campal, embebida com álcool, drogas e o mais puro som do rock. Orgias e testes de sobrevivência eram o ritual. Chamavam estes encontros de “Sobrevivendo ao caos”.
Os salões e galerias de grutas é outro local escolhido para a realização de eventos. Estes menos frequentes, porém, muito apreciados; uma vez que exigem grandes esforços físicos nas caminhadas; escaladas em despenhadeiros e cumes; passagem por caminhos espinhosos e pedregulhosos; banho em águas movediças, isso durante o dia. À noite refugiam nas grutas, sob revoadas de morcegos; corujas ululantes; gaviões carcarás carniceiros; uivos de lobos; ninhadas de serpentes; montoeiras de caveiras e o embalo furioso dos ventos. A justificativa é que nesses ambientes encontravam a paz do nirvana. A estes eventos chamam de “A vida imita o punk”.
Tais reuniões demandam o período mínimo de duas semanas para a realização do evento completo; sendo hoje o décimo dia do evento que está em curso, cuja denominação é “Conhecendo uma parte do inferno; pois, o todo é maior que o Planeta”. Especialmente este, provavelmente, demore mais de duas semanas para a realização. Essa é a realidade dessa comunidade de jovens metropolitanos. Caso se interesse, deixe comentários em: http://www.recantodasletras.com.br/autores/Riale. Estamos admitindo; os requisitos são os lidos. Vamos revolucionar, alterar os valores desta porcaria ilusória chamada Vida. Irada! Chamada Mundo. Imundo!
“Ela passou por duas baterias ritualísticas; ou seja, completava dez anos de penitência do batismo do experimentalismo das noites devassas; portanto, agora, faria sua terceira confissão e juramento. Antes, participara do evento “Terror sim, morte jamais”. Não perdia um. É o que sabemos sobre ela. Por favor”...
Chorando copiosamente, foi o que seus pais alegaram à Polícia Federal e local.