Jogo de Espelhos
Nos teus olhos vítreos, me vejo refletido de maneira opaca, perdido em uma luminosidade pequena, como um resto de crepúsculo. Na sala de objetos móveis, as imagens se mesclam, em um sexo de matérias que entrecruzam. Na negatividade alheia de gosto ácido, sufocando o delicado paladar das falas. Quase é possível dissecar os corpos oprimidos pela visão cega, em uma uma dança ritual que revela e esconde, através das sombras que se multiplicam nas frestas luminosas. Fantasmas de carne perambulam com suas retas, magnetizando impressões.
Meia noite sem as doze badaladas. O relógio se move silencioso, com as luzes artificiais procurando rivalizar com a lua amarela. Os castiçais acesos tomados de uma avalanche de cera, que derrete e cria formas demoníacas, que serpenteiam a chama, em um sabá magnífico. Aberto sobre a mesa o livro negro impõe sua presença. Pesado e esquecido. Cada página dissolvida ao ser folheada, na busca de uma morte prematura.
O medo em relação a criatura que aparece no vidro embaçado. Um relance e tudo parece sombrio. As formas se misturam e a mente busca compreender se aquilo era uma ilusão. Terror verdadeiro. Na carne arrepiada sente as unhas que raspam sua pele. Ninguém está aqui. As mãos procurando a maçaneta, encontra teias muito bem trabalhadas, enredadas nos quadros tortos das paredes. Tudo está fora do lugar, esse é o lugar o comum. Na desarrumação organizada, onde cada coisa está nitidamente em um lugar de fora.
Já vejo a lâmina introduzida na barriga, depois na coxa, na nádega, talhando os braços, os seios, os dedos. O rosto chora lágrimas que se misturam ao sangue que escorre em cascata. A vítima erguida, sustentada pelos braços assassinos, conduzida até o leito de morte. Com o olhar perdido no livro pesado aberto sobre a mesa no centro da sala de estar. Figuras do papel de parede parecem saltar, como pequenos demônios a bailar diante do olho caído, quase a fechar. A pancada do sorriso duro, congelado nos lábios cruéis, coim a língua recuada de emoção, prazer, tesão.
A soma da decoração, com uma lâmina suja, deixada sobre o sofá de couro. As velas continuam queimando e o incenso agora perfuma os cômodos, com seu odor incômodo. Uma coruja empalhada observa. Predadora noturna imóvel, caçando apenas por dedução. Refletindo a brasa que consome a ponta do cigarro, com tragadas profundas e lufadas de névoa que paira na escuridão como uma neblina.
O cadáver esquecido sobre a bancada, com a expressão fossilizada na face. A nudez coberta de um sangue seco. Os lábios que provam o sangue sangue eu fazem molhado, decorando a boca, como um batom fúnebre, espalhado pelo rosto, alargando o sorriso, transformando-o em risada. Fitando o espelho quebrado, que aponta seus cacos de lâmina. A excitação e a penetração do corpo passivo morto, até o ápice do gozo, onde o sêmen se mistura ao sangue e escorre formando uma poça de morte que irá perdurar.