Solução

Diante da solidão de granitos embaçados, quase se consegue enxergar o frio. Qualquer hora da madrugada poderia ser esta, já que os relógios paralisam em um determinado momento, tornando a realidade uma câmera lenta, com horas vagarosas de insônia. O som de pássaros noturnos dá o tom da fúnebre sintonia, como se fossem um presságio daquele hiato que se instala no peito angustiado. A lua cheia ocupa o céu de forma esplendorosa, se escondendo entre nuvens com sua coloração amarelada. Morcegos fazem seus barulhos sinistros, com rasantes sobre o teto da garagem. A estante repleta de livros que ainda não foram lidos, compondo uma parte do outro restante que já foi lido. Os fogos silenciaram no despertar de felinos, que se insinuam por bueiros, sorrateiros. Com uma flâmula tremulando depressiva, suspensa em um mastro esquecido. Um farol corta a escuridão noturna, como um vaga-lume estridente. Cena próxima a mendigos que dormem sobre calçadas, escorados nas portas dos pequenos comércios. Enquanto putas disputam as calçadas mal cheirosas de mijo.

Cada olhar perdido no fechar de pálpebras, tenta se insinuar através de sonhos, como se os olhos estivessem virados para dentro da órbita, perscrutando o cérebro, revolvendo a mente. Naquela loucura dos enfermos, agrilhoados em suas macas, espreitando por baixo das frestas das portas, como ratos cobaias. O aroma de vômito de sanitários doentios, com o arrastar daquela sombra que é o suporte do soro, nutrindo com agulhas que desnudam a pele. A imagem alva que oprime, a ponto de criar o pânico dos que precisam ser pacientes. Com caminhões de lixo seguindo vazios, estacionados em becos escuros, com lixeiros provando o seu lanche noturno, em meio ao aroma de restos que fazem parte da lida diária. O boa noite do desconhecido que com medo passa. A falsa felicidade no rosto dos nóias, que cantarolam músicas sem sentido, retorcendo o corpo esquálido. O sopro do vento assovia entre os prédios. Com sirenes vermelhas que rompem as trevas, em um deslocar lento, espreitando o perigo, quando não encarna o próprio inimigo.

Os calos nas mãos dos meninos, que ainda não retornaram para suas casas, arrastando carrinhos repletos de papelão. Velhos com rosto de pedra, sobem ladeiras lentamente, fuçando em lixo, bebendo sobras de cachaça. Miseráveis sem família, carregando o fardo da sobrevivência, ressurgindo a cada dia, como cães vira-latas, que até causam certa afeição, mas que logo desaparecem e não causam falta, nada de comoção. As moscas zumbindo no ouvido dos próximos ao que está em decomposição e os pernilongos incansáveis que atacam como famintos vampiros. O grito que atravessa a noite, suprimindo o que resta de ar nos pulmões. Ninguém presencia o corpo que cai na sarjeta, tombando com pouca vida, nos últimos suspiros. Movimentos trêmulos e olhos revirados. O sopro do vento faz ver a última cena, da folhagem espalhada e apenas uma das folhas, pousando sobre o dorso da mão esquerda. Nada mais além disso. O último instante é o único que se eterniza.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 23/06/2014
Código do texto: T4855948
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