O Capeta

Em uma cidade interiorana do país, nasce uma criança, que os pais dão o nome de Liv Ed. Uma excentricidade. Mas que disseram ter sido inspirada por filmes e documentários televisivos. Como acreditava que Liv seria mais feminino, acresceram o Ed para equilibrar, já que era a varão. Mas o espanto veio a medida que foi evoluindo. Era uma criança feia, daquelas que as pessoas quando vão visitar, dizem ser linda e se olham de soslaio, para no aconchego dos seus lares, dizerem que nunca viram coisa mais horrível e pedindo a deus que o deles não viesse daquele jeito. O menino sofria bullying e quando passava pelas ruas, as pessoas comentavam. Na escola era hostilizado. Até mesmo um humorista decadente, afirmou que fez um jingle popular após ter esbarrado com essa criança em uma avenida, a letra era mais ou menos assim, “conheci, um capeta em forma de guri...”. A situação se complicava à medida que o tempo passava. Os pais eram pobres e isso impossibilitava uma operação plástica, que no seu caso, não era considerada de prioridade no serviço público de saúde.

Na adolescência a coisa se intensificou. Em uma tarde, diante do espelho, percebeu que crescia uma protuberância traseira. Era uma cauda, embora muitos, categoricamente, diziam se tratar de um rabo. O curioso é que não se parecia com o de outros animais, na ponta se formou um triângulo, assustando quem se deparava com o fato. Muitos já sentenciaram, dizer ser o filho do capeta. Sacerdotes foram consultados e acabaram por alimentar o medo popular, gerando maiores ofertas para suas paróquias. A família precisou se mudar de cidade. Agora, em um sítio, isolados, cuidavam de sua cria. Liv Ed agora possuía um par de cornos e sua risada era singular, chegando a acanhar até mesmo os animais domésticos. Sua cor se tornava cada dia mais avermelhada, apesar dos pais evitarem ao máximo sua exposição ao sol. Gostava de andar de noite. De dia, se mantinha trancafiado, até mesmo para não chamar a atenção de alguma pessoa que andasse por aquelas bandas. Gostava de ouvir rock e colecionava matérias sobre desastres, doenças e outras mazelas sociais. O pai já pensava em se livrar do filho e resistia por conta da mãe, que amava aquele seu preferido e único rebento.

Em certa ocasião, o rapaz foi visto roendo a carne de um bezerro morto. Não souberam afirmar se foi ele mesmo quem matou o animal, mas não havia dúvida que seu comportamento era estranho. Sua voz estava mais grossa e conseguia produzir fogo sem dificuldade,o que facilitava a vida dos pais, que na hora de acender o forno a lenha, podiam contar com o filho solícito. O rapaz andava sempre com um garfo de feno e aquilo se tornou a sua marca. O pai, com um livro de imagens religiosas, que havia conseguido com um conhecido, mostrou a mãe a imagem de um ser diabólico, com chifres, cor avermelhada, tridente e rabo. Mais outro detalhe, em vez de pés, o rapaz agora possuía cascos. A comunidade foi alertada e se embrenhou pelo sítio à noite, portando tochas e porretes. Iriam linchar o demônio que estava entre eles. O rapaz, de forma calma, disse que não deveriam dar sequer mais um passo. Apontando o dedo para o homem que liderava a pequena multidão enfurecida. Disse o nome do sujeito e que sabia que ele molestava as filhas pequenas e que se encontrariam em breve em outra realidade. Os olhares se voltaram para o sujeito, que paralisado, não conseguiu mais dizer uma palavra.

Liv Ed relatou as abominações cometidas por cada um deles, inclusive a de seus pais. Disse que viviam em um mundo que estava mais disponível a ele do que a qualquer outra divindade. Que não poderiam matá-lo, já que se alimentava e ressurgia das próprias criações humanas. Ali realizou um sabá, onde as pessoas se entregavam em orgias com todos os presentes e cultuavam Liv Ed. Um dos homens, que trabalha com ferragens, fez uma estátua do homenageado e esta foi colocada em uma gruta construída para celebrarem rituais de adoração. De tempos em tempos, uma criança nascida deveria ser ofertada, passando a se dedicar ao sacerdócio nas missas negras. Liv Ed se tornou popular e sua imagem estava estampada em camisetas. Chegou ao senado após expressiva votação. O mundo era o mesmo, mas os valores mudaram. Os ideais estéticos se modificaram, pessoas colocavam implantes para forjar cornos e tatuavam a pele de vermelho, para se aproximar do grande ídolo.

No seu discurso de abertura da câmara, anunciou que era o primeiro de muitos que estariam por vir e que o reinado do antigo deus havia acabado. A sua credencial possuía um número, 666, e possibilitava livre acesso ao que desejasse. Nunca a sociedade havia prosperado tanto. O dinheiro corria como se não houvesse fim. Quando existia alguma crise, um grupo se imolava, fazendo com que não existissem pobres nessa sociedade, fazendo com que mais e mais pessoas acreditassem nesse governo. Questionado em um de seus discursos, por um jornalista intelectual, que afirmou ter o planeta se tornado o Inferno, no sentido literal do termo. Mas Liv Ed, com seu sorriso diabólico a calma costumeira, completou, citando uma passagem de um famoso filósofo francês, “o inferno são os outros”.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 16/03/2014
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