Um Demônio na Cozinha

Janaina acordou atordoada, o calor do verão e sonhos turbulentos dos quais não conseguia lembrar mais a fizeram levantar da cama lá pelas três da madrugada. Sua boca estava seca, e como já era costume, foi à cozinha procurar algo para beber. Era normal andar pela casa grande e vazia durante as madrugadas, às vezes quando ficava com insônia ia até a sala, acendia a luz e pegava algum livro para ler ou ligava a tevê e embora não passasse nada decente a noite, ficava assistindo sem muita empolgação até o sono decidir voltar. Nunca tivera um sono tranquilo e seus pais já haviam acostumado com a inquietude da menina e não se importavam mais com barulhos vindos da cozinha, da sala ou de qualquer outro cômodo durante a noite, especialistas e medicamentos nunca resolveram o problema da menina. Também não havia com o que se preocupar, a região era muito segura, nunca se ouvira falar de ladrões por ali.

Janaina caminhava sonolenta pelo corredor que dava acesso à cozinha, com os olhos semicerrados, arrastando as pesadas pantufas, mal levantava os pés. Uma surpresa a despertou totalmente de súbito, avistou alguém abrindo a geladeira. Inicialmente viu apenas as costas. Esperava que fosse sua mãe, apesar de não conhecer aquela camisola azul, parou de se aproximar e esperou que aquela pessoa fechasse a geladeira. Imaginou ser uma visita que nem sabia que estava por ali. Quando a desconhecida se virou, olhou diretamente nos olhos de Janaina, como se já soubesse que a outra estava ali observando. Era alguém exatamente igual a ela. Um clone de Janaina, apesar de ter uma expressão faminta, sanguinária, quase diabólica. A verdadeira Janaina gritou com toda a força de seus pulmões e desmaiou. A criatura deu um sorriso infame e desapareceu derrubando a jarra de suco de laranja que tinha nas mãos.

A menina acordou sendo ouvindo seu nome, estava em sua cama e tinha seus pais sentados ao lado, a mãe acariciava o cabelo vermelho da menina.

_ O que aconteceu?_ perguntou Janaina.

_ Nós que queremos saber, filha. O que aconteceu?

_ Eu não sei, eu fui a cozinha e tinha alguém lá. Ai minha cabeça.

_ É impossível Janaina, todas as portas e janelas estão bem trancadas, exatamente como deixamos antes irmos deitar e não há nenhum sinal de que outra pessoa esteve aqui.

_ Você devia estar sonhando acordada de novo, filha. Nós a encontramos desmaiada no chão da cozinha, ficamos desesperados pensando que algo tinha acontecido, mas felizmente acho que foi só um susto mesmo.

Janaina se sentia fraca, e preferiu não insistir na história de ter visto alguém. Talvez tivesse sonhado mesmo, embora não soubesse que era sonâmbula, mas sua dúvida de que aquilo tinha acontecido de verdade desapareceu quando, ao sentir o pulso esquerdo dolorido, constatou que existiam dois pequenos furos roxos. Algo ruim havia acontecido naquela noite.

Três dias depois do acontecido, até ali, Janaina ainda não tinha mais levantado da cama durante madrugada para nada, tinha medo. Não tivera mais pistas, sinais, ou dicas que pudessem lhe dizer o que havia acontecido naquela noite de quinta-feira. Mas com o tempo, o medo vai diminuindo e viu-se ali novamente perturbada pelo calor, foi praticamente obrigada a sair da cama em busca de algo gelado para beber. Um pouco mais prevenida, fez-se ter certeza de que estava bem desperta antes de por os pés fora da cama, pegou um guarda-chuva laranja que estava pendurado num cabide para usar como arma, caso fosse necessário se defender de alguém ou de algo. Caminhou na ponta dos pés pelo corredor, passando pela porta do quarto de seus pais, quando finalmente chegou à cozinha, viu que estava sozinha, foi tudo um sonho, disse para si mesma ao lembrar do vira na ultima vez em que estiver ali naquele horário. Deixou o guarda-chuva sobre a mesa e foi até a geladeira, pegou uma jarra de suco e quando a fechou deparou-se novamente com a menina que tinha o mesmo rosto que o seu. Agora, no lugar onde ela estava da última vez, as posições tinham apenas sido invertidas. A outra parecia agora ainda mais assustadora, faminta e diabólica que da última vez. Janaina não gritou e embora isso tenha exigido um esforço imenso, tentou não desmaiar. Pensou em pegar o guarda-chuva que trouxera, mas a outra o tomou mais rápido e o atirou para longe. Então, Janaina, jogou o líquido gelado da jarra na cara da macabra criatura, que apesar disso, não esboçou nenhum sinal, como se simplesmente não houvesse o sentido em seu rosto. Trêmula de medo, Janaina correu em direção ao corredor, mas quando pisou no suco que ela mesma havia derramado, escorregou e caiu de cabeça no chão, novamente desmaiou. Ela acordou alguns minutos depois, ainda no chão frio, porém muito mais fraca, muito mais tonta, totalmente exposta e em seu pulso o que antes eram dois pequenos furos, agora se faziam dois buracos, algo mais profundo, amedrontada, levantou-se e mesmo com dificuldades correu para o quarto, onde se enfiou debaixo de suas cobertas e dormiu profundamente, devido à exaustão que sentia.

Na manhã seguinte, ao se levantar, procurou seus pais, mas os mesmo já haviam saído para o trabalho, pensou em ligar para eles, mas sabia que seria uma história difícil de explicar por telefone. Janaina estava de férias, não tinha muito que fazer e nem sentia vontade de fazer nada, o desanimo era seu companheiro naquele dia. Ficou o tempo todo trancada no quarto. À noite quando sua mãe chegou foi lhe perguntar o que novamente havia acontecido, pois tinha encontrado a cozinha bagunçada pela manhã, Janaina contou que novamente havia visto alguém dentro de casa. Sua mãe pensou em acreditar na possibilidade, mas quando a menina disse que esse alguém era exatamente como ela e que achava que era algum tipo de fantasma, a mãe concluiu que se tratava de outro pesadelo, afinal, fantasmas não existem. A menina não mostrou para a mãe o vestígio real do acontecido que tinha estampado no pulso, pois temia ser levado ao médico e a coisa que mais detestava era hospital.

Quando a noite já ia pelas mais de vinte, Janaina se deitou cedo, estava com muito medo de aquela criatura surgir novamente e tinha certeza agora que por mais que sentisse vontade de tomar algo, não iria até a cozinha durante a madrugada. Nada a faria levantar depois da meia-noite. Queria ter o sono pesado o suficiente para não acordar mais durante as madrugadas, começou achar aquele habito terrível. Se não o tivesse, aquilo nunca teria acontecido.

A mãe disse ao pai, que Janaina havia lhe contado algo sobre um fantasma na cozinha, este, preocupado com o aparente sonambulismo da filha, decidiu que quando a menina pegasse no sono trancariam a porta do quarto e para que não sentisse sede na madrugada, deixariam uma jarra com água bem gelada sobre a escrivaninha da filha. “Mas não vamos avisá-la que vamos trancá-la?” “Acho melhor não, ela se sentiria muito mais desconfortável, coloquei um calmante no suco dela para que ela não acorde, amanhã mesmo a levaremos em um especialista”. Assim fizeram, trancaram a menina assim que a mesma começou a ressonar.

A noite foi passando e o calor que tanto incomodava Janaina fez com que ela despertasse. Lentamente abriu os olhos, quando viu que agarrada ao seu braço esquerdo estava a criatura assustadora que já era sua conhecida, sugando-lhe o sangue. Ficou imóvel, observando seu sangue ser roubado, podia senti-lo correndo por suas veias e indo alimentar o monstro. Não ficou parada por muito tempo, uma dor aguda fez com ela começasse a tremer e, ao perceber que a vítima despertara, a outra, que estranhamente tinha a mesma aparência que ela, largou o pulso da menina e caminhou de costas até o canto da parede. Seus olhos estavam acesos numa cor de fogo intenso que quase iluminava o quarto iluminado por um discreto abajur. Janaina correu em direção à porta, e se apavorou quando viu que a mesma estava trancada. Desesperou-se e começou a chamar por seus pais.

A criatura maligna, com ar tranquilo e calmo começou então a falar, embora não movesse os lábios, disse:

_ Não adianta chamar por seus pais, eles já estão mortos, já esgotei cada gota do sangue deles.

_ Mentira! Mentira! O que diabos é você, afinal?

_ Estou presa na cozinha dessa casa há décadas.

_ Cozinha? Mas aqui não é a cozinha! Vá embora, por favor_ implorou a menina, quase chorando.

_ A cozinha está aqui. Não irei enquanto não terminar o que comecei. Seu sangue, eu preciso do seu sangue- disse o demônio caminhando lentamente em direção à Janaina que mais aterrorizada gritava por socorro e corria em círculos pelo quarto sendo perseguida pela criatura que parecia não ter pressa. Apenas virava-se com os braços esticados em todas as direções para qual a menina fugia. Janaina atirou tudo o quanto via, travesseiros, porta-joias, seu ursinho de pelúcia, o copo com água no criado-mudo, mas nada fazia aquele monstro cada vez mais feio e cheio de raiva parar de querer terminar seu serviço. Chegando à escrivaninha, Janaina atirou os livros que ali estavam, foi quando se deparou com a jarra de água que seus pais haviam lhe

preparado. Segurou o objeto de vidro com as duas mãos, quando assim o fez, já pronta para atirar na direção do demônio, ele parou. Ficou imóvel, como se esperasse que a menina não jogasse aquele utensílio de vidro contra ele, como se fosse algo precioso com o que se preocupasse, mas foi questão de segundos para a jarra voar contra a parede, Janaina tinha uma péssima pontaria, e se despedaçar em um milhão de pedaços. O demônio finalmente desapareceu.

***

Leia também: "O Observado".