Ashley

Acordo todos os dias e me vejo diante do espelho. O corpo está lá, mas odeio que esteja. Penso nos corpos que vejo nos programas da televisão, nos anúncios de internet. Meus seios não são adequados e vou cobrindo-os, como o restante do corpo. Já deixei de me banhar na frente de outras pessoas. Só tenho recordações de piscinas na infância. Agora fico sentada na sombra, embaixo de um guarda-sol. Sem coragem de me aproximar dos garotos e não deixando que se aproximem. Serei motivo de piada, quando tocada. Prefiro me manter intocada do que ser exposta diante de todos. Vi casos de meninas que tiveram seus corpos nus expostos na web e não desejo passar por algo semelhante. Identifico de imediato, estrias e celulites. Elas nascem e se espalham como se fossem uma espécie de peste, que contamina todo o corpo. As roupas curtas que no calor são agradáveis, foram descartadas. Nada mais resta de um passado de exposição.

Enfio a cara nos livros e passo pelas pessoas como se não existissem. Na verdade, espero que não me percebam. Algum conhecido acaba me chamando e procuro dizer frases curtas para não prolongar o assunto. O primeiro beijo foi estranho, o garoto tinha mau hálito e mascava uma bala com um sabor que dava náuseas. A quantidade de produtos é absurda. São cremes, óleos, remédios para isso e aquilo, a indústria dos cosméticos é uma farsa. Meus pais ficam dizendo que sou linda. Mentirosos. Falam apenas para me agradar. Meu diário eu já queimei para evitar que alguém saiba sobre o quanto me sinto. Na escola procuro ficar isolada. Muitas vezes sou hostilizada por meninos e meninas, que chegam algumas vezes a me agredir. Resolvi começar um dieta, já que o corpo está cada dia maior e detesto mais ele. Dizem que estou emagrecendo, mais diante do espelho estou cada vez mais gorda. Comprei uma balança e subo nela pelo menos a cada três horas.

Hoje na festa de aniversário de meu irmão, depois de comer doces deliciosos e malditos, fiz questão de vomitá-los. O dedo na garganta resolve na hora de colocar para fora o exagero. Para completar, acnes no rosto. Minha pele está horrível e devo parar de comer chocolates, refrigerantes e toda essa porcariada. Fiz uma bela escova nos cabelos, mas ainda me sinto horrível para ir ao casamento de meu primo. Ainda assim insistem que eu vá. Alguns dizem que estou definhando, que é possível ver meus ossos sob a pele. Já fui em médicos. Um psicólogo veio me dizer coisas de minha infância. Odeio tudo isso. Me sinto mais gorda e desgraçada a cada dia. Algumas vezes quando estou só, me corto com uma lâmina para me punir por meu estado de degradação. Dizem que esse sistema de purificação era feito por diversos grupos religiosos. Pode ser que funcione comigo. A dor ajuda mas não resolve.

Finalmente chegamos no casamento e as pessoas me olham como se eu fosse um fantasma. A festa está um saco e já bebi alguns drinques escondida. A festa está sendo realizada em um salão localizado em um luxuoso prédio. As pessoas se divertem e vão na sacada observar a vista. Subo as escadas que dão acesso ao terraço e fico lá sentada. Melhor do que aquelas companhias sem graça. Sento no parapeito e fico sacudindo os pés. Realmente, olhando por esse ângulo, parecem finos, como os de um espantalho. Mas amanhã acordarei e terei que lidar comigo e toda a angústia de volta. Encarar o rosto de piedade dos meus pais e ficar com aquela sensação de que sou um estorvo. Espero que algum dia alguém escreva alguma coisa a meu respeito, talvez isso me torne menos insignificante. Gostaria que meu primeiro beijo tivesse sido mais marcante. Isso poderia fazer com que eu tivesse uma lembrança melhor dessa vida. Talvez tenha sido melhor assim. Desculpe pai e desculpe mãe. Amo vocês. Mas agora preciso ir atrás da minha liberdade. — As pessoas da sacada se assustaram ao ver aquele pequeno corpo voando e passando por eles, formando uma mancha avermelhada ao se estilhaçar contra o solo, após uma queda de dez andares.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 26/12/2013
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