Clown
O palhaço chega em casa. Tira os sapatos dos pés cansados e deixa a maquiagem no rosto. Se observa diante do espelho. Pega no bolso o maço de cigarros amarrotado e acende um. A fumaça sobe. Senta na poltrona e coloca os pés pra cima. Liga a televisão e se irrita, só tema palhaçada. Vai até a mesa de centro e se serve de uma dose de whisky. Mistura com água e bebe uma boa golada. Segurar as cartas de baralho e se detém um pouco vendo a imagem do joker. Serve-se de um pedaço de pizza fria, que havia sido deixado dentro da caixa que o entregador deixara, dois dias atrás. O álbum de família com as fotos velhas. O menino comemorava o aniversário de palhaço, fantasiado com os amiguinhos em volta do bolo, pronto para apagar as velas. Abre a revista, mais palhaçada sobre política. No anúncio na quarta página, o anúncio do filme do Batman, com a foto do Coringa.
Os dentes estão amarelos. Resgata um toco de charuto e acende. Solta uma nuvem. Mais uma dose de whisky com água. Alguém bate á porta. Abre e se depara com um rapaz que é testemunha de jeová, está acompanhado de duas senhores. Pedem para entrar. O palhaço diz que á ateu e bate a porta na cara deles. Fica apenas de cueca, deitado no sofá. Serve-se da última dose. A garrafa está no fim. Um cheiro de mofo que não sabe identificar de onde vem. As unhas sujas. Pega uma folha de papel, dobra e passa a unha sobre a dobradura, depois corta o papel como se tivesse garras. A fruteira vazia e uma mosca tentando sair pelo vidro da janela da cozinha. Uma barata corre em direção ao cinzeiro jogado no canto da estante. A barata não tenta se comunicar, move as antenas e vai embora, indiferente. Vai até o banheiro e senta no vaso para mijar. Está cansado de urinar de pé. Sentado pode ir fumando e mijando.
Chuta a cueca para o canto da parede e fica andando nu. Se debruça na sacada da casa, que foi dividida em quatro moradias e alugadas. A sua era uma das partes de cima que davam para a avenida. Ficou observando a movimentação noturna. Um rapaz entregava um papelote de droga a outro. Tudo muito discreto. Conhecia o vendedor e o cumprimentou com um aceno sutil de cabeça. Acendeu outro cigarro e jogou o restinho do charuto na rua, com um peteleco que fez voarem as brasas. Uma prostituta velha se posicionava na esquina, com uma saia que mostrava as varizes das pernas. Demorou quase a noite todo para que aparecesse um cliente. O dono do bar da esquina, que talvez fosse o único cliente que ainda restasse. O sexo deveria ser ofertado em troca de um lanche ou algo do tipo. A patrulha a polícia passa observando, devagar, encosta no rapaz que trafica e pega a sua porcentagem. Silêncio da madrugada.
Dois cães começam a cruzar e ficam grudados. Um sujeito passa correndo e olhando para trás. A lua está enorme. O casal da casa de baixo começa a discutir e escuta-se bofetadas, provavelmente na mulher, que fica calada. Depois é possível ouvir um choro baixinho. O letreiro da padaria pisca, o nome panificadora só está com quatro letras acesas, o P, o I, o C, e o A. A carteira com cartões de lojas e um nota de dois reais. Rola sobre o parapeito uma moeda de cinco centavos. Senta no parapeito nu e fica sacudindo as pernas. O lugar está gelado e arrepia os pelos do saco. Tira um 38 detrás de um cacto e coloca o cano embaixo do queixo. Puxa o gatilho, o estrondo e o tampão da cabeça voando ao arrebentar e lançar um pouco de massa encefálica. O corpo despenca na calçada da avenida e fica caído de cócoras. Ninguém vem socorrer. Os cães continuam grudados e um morcego passa silvando.