O Observado.

Depois de mais uma noite entediante de sábado, no sofá, vendo programas no Animal Planet, Ricardo pegou no sono lá mesmo com a sua boca escancarada cheias de dentes. Só acordou quando o sol já ia alto, no domingo. Levantou, coçou o traseiro tirou a cueca, e a atirou para longe, sem se interessar onde ia cair. Muitas outras peças de roupas já estavam espalhadas pelo apartamento mesmo. Com a vista ainda embaçada e pelado, caminhou a passos lentos até o banheiro. Sentando no seu trono de cerâmica, limpou os olhos e enquanto seu corpo cumpria a primeira missão fisiológica das manhãs viu algo estranho próximo ao teto do banheiro: uma câmera. Subitamente, como se acordasse pela segunda vez, tapou suas partes íntimas com as mãos, puxou uma toalha que estava próxima e atirou-a contra o objeto. A toalha bateu no teto e caiu, a câmera já havia desaparecido. Ricardo bateu na testa como se chamasse a si mesmo de idiota e tratou de continuar o que fazia tentando esquecer aquilo que considerou um leve delírio de quem ainda não havia acordado completamente. Essa foi a primeira vez que Ricardo viu o que seria, em breve, sua companhia pelo resto de seus dias.

A segunda vez em que viu a tal câmera fora alguns meses depois, em um elevador, não achou nada estranho ela estar ali, afinal esse era um lugar onde sempre havia câmeras, embora pensou ser engraçado a câmera parecer segui-lo. Andou de um lado para outro no elevador e ela continuava a apontar a sua lente insensível para ele.

Na terceira vez que Ricardo viu claramente a estranha câmera que lhe vigiava, foi quando fez grandes descobertas. Ia saindo da cozinha com um pacote de batatinhas e uma lata de refrigerante de laranja quando viu na sua frente a câmera. Pela primeira vez pode observar bem o seu aspecto, tinha um formato esférico, era cinza e parecia feita de plástico, embora sua cor quase prateada lembrasse metal. Sua lente era grande e tinha acima dela uma pequena luzinha azul que piscava sem parar. Ricardo se lembrou das outras duas vezes que encontrara o estranho objeto. Soltou o que segurava e se moveu de lado lentamente, a câmera, como era de se esperar continuou acompanhando-o com sua lente. Deu alguns passos para trás, voltando até a cozinha. Pegou um rodo que estava ao lado da pia, lentamente, como se a câmera não estivesse registrando os seus lentos movimentos e de repente, PAAAFTS! Bateu com o rodo na câmera, fazendo o estranho objeto ser arremessado na parede e se despedaçar imediatamente. Observou sem se aproximar muito e viu que havia poucos circuitos e fios dentro do objeto. Foi até a cozinha pegar uma pá para limpar a sujeira, mas quando retornou, nada mais havia no canto da parede. Foi quando pode ouvir que a TV que antes não estava ligada agora mostrava imagens. Aproximou-se e viu que a câmera que ele havia destruído quase naquele instante, estava na frente da TV com um pequeno laser azul apontado para o aparelho, como se projetasse as imagens. Demorou para Ricardo entender o que se passava, mas logo viu quem estava no vídeo: sua mãe no leito do hospital, segurando um bebê. Ele era esse bebê (porque era o único filho) Seu pai estava logo ao lado. A imagem começou a acelerar e se misturar, às vezes se distorcendo ou simplesmente apagando. Mas de vez em quando desacelerava e Ricardo via-se em todos os vídeos. Desde pequenino, brincando com os amigos. Jantando com a família. Correndo na praia. Com a primeira namorada. Na formatura do colegial. Brigando com o pai, chorando no velório do mesmo. Até que mostrou a mais recente filmagem, ele destruindo a câmera. Ricardo ficou pasmo com tudo o que estava diante de seus olhos e pode, não sem choque, entender que aquela câmera estivera o filmando por toda a sua vida. Conseguia agora se lembrar de tê-la visto mais vezes, principalmente quando ainda era criança ou quando estava bêbado. A câmera apagou sua luzinha e voltou a fita-lo.

Como conviver com aquilo? Ricardo avançou em direção da câmera e tentou segurá-la, mas foi inútil. Neste momento ela desapareceu. Mas ele sabia que ela ainda estava a espreita-lo, como estivera naqueles 23 anos.