Necessidades

Os gatos fazem a sua higienização na caixa de areia, despejando grãos pelo solo ao cavar com patas impacientes. Nós afundamos nessa porção movediça, a ponto de restar pouca coisa perante a magnitude do que nos consome e absorve, a ponto de restar uma pequena brecha. Seria a abertura de uma das muitas cavernas, onde nos detivemos por livre e obrigatória vontade, a ponto de nos acostumarmos com o cárcere e desejarmos dar a ele um ar de liberdade. Livre da moda, que tenta me dizer que pele deveria utilizar, para cobrir essa vergonha chamada corpo, que a religião tornou tão casta e castrada. Mas continuo com esse falo pendurado, à mostra, diante de qualquer ato violento de usurpação. Violentado a cada instante, estuprado por um Estado que tenta me foder de todas as maneiras. Patriota? Jamais. A pátria não passa de pária e eu sou prático.

Quando vejo aquelas crianças em fileiras corporais, com gestos ensaiados e falsa emoção. Vamos popularizar o hino, eis o populismo. Pequenos meninos-soldados, prontos a dar a ida pela nação, que impede a verdadeira ação, que é tomada de consciência, crítica diante da passividade que a massificação impõe. Conversas de botequim são muito mais politizadas do que os absurdos que a mídia privada, que se diz social, todo dia massacra a mente do público. A publicidade procura mecanismos de convencer, para que vença as vontades e crie dependências. E nossa independência parece longe de ocorrer, já que corremos contra nossa própria maré. Um tsunami que arranca nossas raízes mais profundas, deixando apenas essa lama de superficialidade. Escorregando em direção a presas camufladas, que convidam com seu brilho de cristal, hipnotizando a fragilidade da visão, que irá se aproximar para o bote desta astuciosa serpente. Engolidos inteiros, onde o resto de nós será regurgitado posteriormente.

A visão de um paraíso parece a cada dia mais distante. Será que em algum momento esteve próxima? Os sonhos vão se diluindo como as nuvens, caindo sobre nossas cabeças como forte tempestade, com trovoadas que abalam nossos alicerces. Construímos novas formas de idealizar, mas continuamos formando bases insustentáveis, talvez por sabermos da incoerência em se enrijecer diante da efemeridade da vida. O céu se torna escuro pela sombra da incerteza que abraça os corações. O pulso pode ser sentido em batidas de uma percussão que desde os primeiros hominídeos na África já foi adorada. Adornados de todo um misticismo, que faz do sujeito um dos tantos membros de um rebanho, que pasta tranquilamente no solo cultivado por severos criadores. A facilidade da grama e a pouca disposição em romper as cercas, faz com que caminhemos rumo ao sacrifício, eis a lei que nos foi imposta. São tantos os impostos, que não distinguimos mais o que é de César, já que nada parece ser nosso.

Cada vez o mercado nos distribui mais livros que não observamos sentido. As academias estão lotadas de cientistas que não produzem algo que tenha real utilidade para a sociedade, salvo alguns grupos técnicos que lucram e enriquecem empresas bem específicas. Por falar em especificidades, quase caio em uma cratera aberta para conter um vazamento de esgoto. Estou sendo escoado em um ralo gigante que como uma poderosa ventosa, tende a atrair tudo para si, com intuito de alimentar-se do mundo. Fujo até perder o fôlego. Mas a cada esquina encontro novas possibilidades de sucção, já que os bueiros são vários nesse ambiente metropolitano. Nem em casa consigo uma segurança, já que os poros desse Leviatã urbano se espalham com uma ferocidade aterradora. O que me faz sair de carro e ultrapassar uma última barreira na estrada, caindo em um precipício, onde posso ver a realidade rodopiando, com uma pancada e a dor em seguida. Estou consciente, consigo ver a movimentação e luzes do resgate. Que não consigam chegar a tempo ou outro fator me tire dessa temporalidade.

O som das serras e o corpo sendo removido, com fraturas. Imobilizado em uma maca. O som da sirene é o anúncio de que continuarei atormentado. Dentro do campo de concentração, sou deixado medicado, após cirurgias feitas. As visitas chegam e começam a especular os motivos de ter saído da estrada. Nunca desejamos permanecer nesse caminho. Alguns conseguem se desviar. Escrevendo torto em linhas certas, ao contrário do Criador. A perícia ainda não chegou a um veredicto. Mais digo que logo irão ver. A porta trancada durante a madrugada e a enfermaria com os outros leitos vazios, pela troca constante de ocupantes. Os lençóis meticulosamente amarrados, envoltos no pescoço e a ida até a sacada, aqui ainda não foram postas as grades de contenção. Um salto e corpo é sustentado pelo pano resistente, feito para aguentar as rotinas emergenciais. Feito um pêndulo. Pendurado, o enforcado, balança. Feito apêndice em um galho de concreto, que sai discreto da árvore predial, destoando no conjunto de blocos hospitalares, aguardando o primo grito que venha lhe denunciar.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 28/10/2013
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