Em Previstos
Sigo o aro das rodas dos carros que circulam pela janela. Abro a página e deixo o marcador cari no chão, para que tenha a súbita sensação de estar perdido no livro. A memória age rápido e logo começo a conceber a última página, os últimos textos e finalmente a última letra. Penso na sensação de provar um chocolate e a boca saliva e isso não mata minha sede, fazendo com que beba um generoso copo de água. Que sorriso miserável daquele louco que foi confundindo com vagabundo e tratado como indigente. Deixado à margem, o que faz com que esteja na beira das lojas, das casas, das ruas, dos carros, das pessoas, quase da vida. Toco a parte de baixo do ferro de passar roupa depois de estar um tempo ligado. A queimadura é breve. Breve é a vida. Um espirro. Dois espirros. Saco o papel higiênico e faço dele um véu que corre pela casa, fazendo o rolo se movimentar rapidamente, até que rasgue a última fração, deixando-o só, magro e sem serventia.
As pessoas reunidas em um sítio afastado. A comida é servida aos cães, que se fartam, disputando ossos e demonstrando sua selvageria ainda resistente à domesticação. A decisão tomada. A arma em punho, o assalto em uma residência de luxo. O lenço sufocando os gritos de uma criança, que acaba engasgando e falecendo. O pai, com pancadas de coronhadas na cabeça, desmaiado próximo ao criado mudo. A esposa, trancada no banheiro em trajes de banho, com sua nudez protegida por um roupão. A fuga e a verificação das luvas para que nem um pelo e muito menos uma impressão tenha ficado para trás. No caminho a mulher sugere que busquem outro veículo. Antes que pudesse interceder, ela salta do carro e aborda um sujeito de outro veículo, disparando contra o peito. O sujeito se desespera, não há mais como voltar diante dos últimos fatos. Entram no novo carro adquirido, abandonando o antigo, que possuía identificação que poderia denunciá-los. A mulher salta na estrada. Ele segue dirigindo, nervoso e apreensivo. Um bloqueio da polícia à frente.
O cão late e depois de um estrondo se cala. Agora uma criança grita. Os donos encontram o corpo pequenino sendo abocanhado por aquela enorme fera, que até então parecia tão dócil. Espancam o animal, que resiste sem largar a criança, que perde os sentidos. Finalmente ele solta e um vizinho, policial aposentado, descarrega a arma de fogo no animal. Momento de lamentações e a corrida contra o tempo até o hospital. Médicos em passos rápidos em direção ao setor de emergência, com a equipe de cirurgia a postos, além de todo o suporte necessário. Hospital público, mas bem equipado e por sorte, com uma das melhores equipes de prontidão. Começam os procedimentos para ressuscitar a paciente. Os esforços são em vão, já que a morte é inevitável. A família recebe a notícia e não contém as lágrimas e o desespero, não se importando com os avisos de silêncio estampados no hall do hospital. Agora começam os preparativos para um velório que irá se estender pela madrugada com um enterro o mais rápido possível no dia posterior.
A máscara ninja sobre o rosto e a máscara de palhaço na tatuagem estampada na pele. Os tiros. Encurralado, sobe correndo a escadaria de um prédio, conseguindo se esconder em um recipiente de lixo hospitalar. Ainda se recorda da fuga, as mortes, os estupros. Chega em casa sujo e vitorioso. Passa dias recluso, deixa a poeira abaixar. Bebe bons tragos de vodka e acompanha os noticiários. O dinheiro é muito bem guardado. Nada de pistas. Volta à rotina, agora circulando tranquilamente. Nada o preocupa. Começa a sentir-se mal, a ponto de ter crises de vômitos, algumas vezes o quadro era seguido de sangue expelido em ataques tosse. No hospital, depois de vários exames, a constatação, estava com AIDS. A memória aguçada, faz buscar as aventuras e todas as vezes que se expôs. Mas naquele dia, durante a fuga, as seringas do lixo hospitalar que lhe picaram a pele. Tinha certeza que ali havia recebido a sua condenação. Pagou algumas mulheres para ter um sexo sem preservativo, desejando espalhar seu martírio. Dias antes de morrer, uma carta deixada, avisando sobre os crimes cometidos e que havia se tornado portador de um vírus. Último ato, roubo seguido de morte, pessoas estupradas e agredidas com violência. A polícia com os nervos a flor da pele puxou o gatilho. Esse era o seu desejo, uma morte mais rápida. Embaixo da máscara, um rosto doente, com a tatuagem do palhaço comida por hematomas e agora outro desenho havia sido feito em sua pele, uma máscara demoníaca, com a seguinte inscrição embaixo, “este sou eu”.